Direito Civil Atual

É preciso repensar a dogmática publicista da Teoria da Prova (parte 1)

Autor

  • Pedro Eduardo Clemesha

    é advogado; mestrando em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; bacharel pela mesma instituição; pós-graduado em Direito Privado; e pesquisador vinculado à Rede de Direito Civil Contemporâneo.

4 de julho de 2022, 12h34

Na primeira metade do século 20, os processualistas tomaram, quase sem resistência, uma das filhas do Direito Civil[2]: a Teoria da Prova.

ConJur
As normas sobre provas, presentes na maior parte dos códigos civis do século 19, e tradicionalmente estudada pela civilística, passaram a ser identificadas e estudadas como normas processuais, e atualmente não há — com raras exceções — quem conteste o posicionamento enciclopédico da Teoria da Prova no âmbito do Direito Processual.

Vários motivos parecem ter contribuído para essa mudança paradigmática.

O primeiro deles é, pura e simplesmente, que o Direito Processual florescia enquanto ciência. Embora já antes a temática da prova tivesse sido abordada no contexto do estudo do processo (como se pode observar, por exemplo, das obras de Mattirolo, Mortara e Lessona, e no próprio movimento de codificação processual civil), é na primeira metade do século 20, pelos esforços teóricos de juristas como Chiovenda, Calamandrei, Carnelutti, e Redenti, que o Direito Processual realmente conquista bases dogmáticas sólidas,[3] sem as quais não haveria como ser travado o debate em torno da natureza jurídica das normas sobre prova.

Em segundo lugar, o estudo civilístico da prova era assistemático, sobrevivendo resquícios dessa falta de sistematização até os dias de hoje.[4] A prova documental era estudada em conjunto com o negócio jurídico, o que levou a diversas indistinções conceituais.[5] A prova oral e as presunções simples eram, por uma herança canônica, estudadas lado a lado com as presunções legais absolutas (e por vezes até mesmo com as ficções jurídicas), que não são normas processuais. A causalidade era e continua a ser estudada como mero subtema da responsabilidade civil (estudo do nexo causal como requisito da responsabilidade civil), embora muitos dos problemas enfrentados nessa seara transbordem aos seus quadrantes, por dialogarem fortemente com a Teoria (Geral) da Prova (como, por exemplo, as discussões a respeito da causalidade alternativa, causalidade probabilística etc).

Em terceiro lugar, a civilística estudava a prova sob um enfoque preponderantemente estático. Embora a contraposição de uma "velha perspectiva estática" a uma "moderna perspectiva dinâmica" seja um verdadeiro mainstream retórico da contemporaneidade, no presente caso ela é bastante reveladora. Era estática a concepção de prova criada em torno da gradual distinção haurida da velha confusão entre prova e forma do negócio jurídico. Isso porque a civilística tradicionalmente enxergava o grosso do fenômeno probatório, à exceção da confissão,[6] como eminentemente pré-processual, e, por assim dizer, como não-processual, sempre com preponderante enfoque na prova documental.[7] Essa circunstância, além de implicar uma concepção setorizada[8] e estática da prova, e desidiosa da relação entre fonte de prova e cognição judicial, contribuiu para que perdurassem anacronismos e incompreensões de que são exemplos, respectivamente, a noção de forma ad probationem dos atos jurídicos, e as relações entre forma ad substantiam, força probatória e fé dos atos jurídicos.

Em quarto lugar, alguns dos mais brilhantes processualistas do século 20 — entre eles alguns daqueles pais fundadores da dogmática processual-civil italiana — se dedicaram a um estudo aprofundado da natureza jurídica da prova, enquanto que entre os civilistas o tema não despertou equiparável interesse doutrinário.[9]

Em quinto e último lugar, tem-se que os séculos 19 e 20 foram palco de disputas ideológicas para a definição e positivação de modelos processuais nacionais, e cada uma dessas distintas correntes ideológicas do processo apresentavam uma particular visão quanto à função da prova, quanto à extensão dos poderes instrutórios do juiz, e quanto às relações entre prova e princípio dispositivo, o que assegurou à Teoria da Prova uma posição de destaque na ciência processual.

Ademais, não se pode olvidar que, em nossa tradição romano-germânica, as provas civil e penal nunca haviam sido objeto de maiores aproximações conceituais e tampouco de estudo comparativo sistemático.[10] O grande esforço nesse sentido surgiu com os defensores da Teoria Geral do Processo (alguns deles, observe-se, grandes estudiosos da Teoria da Prova, a exemplo de Carnelutti).[11]

Mesmo quando a distinção entre direito material e direito processual era mais pragmática do que dogmática, a civilística nunca negou que certos aspectos do Direito Probatório dizem respeito preponderantemente – quando não exclusivamente — ao processo (ou, se quiser, a um vetusto "direito judiciário"). Assim é que, por exemplo, ordem de inquirição de testemunhas, duração de prazos dilatórios, forma de tomada de depoimento etc. são temas nunca reivindicados pelo Direito Civil como atinentes à sua ciência.

Assim, quando se trata de aferir a natureza jurídica do Direito Probatório, nesta noção não se inclui o procedimento probatório, isto é, ficam de fora as normas que não regulam o conteúdo de situações jurídicas ativas e passivas das partes no processo. Daí a observação de Chiovenda de que a identificação da natureza jurídica das regras atinentes ao procedimento probatório não é objeto de discussões sérias.[12] O objeto do Direito Probatório, excluídos aspectos procedimentais, são as normas concernentes à admissibilidade, exclusão, dispensa e valoração de provas, assim como as que disciplinam iniciativa e ônus probatórios, e as que cuidam da relação entre atividade probatória e princípio dispositivo.

Tecidas essas considerações de caráter retrospectivo, vale uma reflexão quanto às perspectivas da Teoria da Prova no presente. O processo civil da contemporaneidade brasileira não é o processo civil do início do século 20.[13] A legislação processual vigente conforma um modelo processual muito distinto daquele concebido no início do século passado, por exemplo, na codificação processual de 1939.

Não passou incólume pelas reformas processuais mais recentes o publicismo[14] [15]subjacente à formulação teórica de diversos dos postulados ainda aceitos e repetidos entre nós. A existência de uma cláusula geral concessiva de autonomia negocial para celebração de negócios jurídicos processuais (artigo 190 do CPC),[16] a possibilidade de produção antecipada de prova sem o requisito de urgência (artigo 381, inc. II e III, do CPC), a derrocada dos corolários do chamado princípio da oralidade, o avanço da desjudicialização da produção prova e também da execução, e o próprio reconhecimento (praticamente unânime) de caráter jurisdicional à arbitragem, são apenas algumas das muitas mudanças que ensejam uma revisão dos postulados publicistas clássicos da ciência processual.

Para exemplificar a necessidade de revisão da dogmática do direito processual, especificamente no campo da prova, analisaremos na segunda parte desta coluna o postulado de que "o juiz é o destinatário da prova". 

Continua parte 2.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[2] É verdade que a discussão quanto à natureza jurídica das normas sobre prova não opõe o Direito Civil ao Direito Processual, mas sim o Direito Material ao Direito Processual. Contudo, o Direito Civil, e o próprio Código Civil, historicamente ocuparam um inegável papel de centralidade conceitual na dogmática jurídica. O recurso às categorias e conceitos do Direito Civil para a primeva sistematização de disciplinas como o Direito Administrativo, o Direito Processual, entre outros ramos, é um inegável reflexo dessa realidade em nossa tradição jurídica. Além disso, o foro da discussão quanto à natureza jurídica das normas sobre prova se deu principalmente no embate entre o Direito Civil e o Direito Processual Civil, e não entre Direito Penal e Processo Penal, por conta da grande relevância do papel da vontade, e principalmente do contrato, na conformação obrigacional.

[3] CARNELUTTI, Francesco. Metodi e risultati degli studi sul processo in Italia. Il Foro Italiano, 1939, Vol. 64, 1939. p. 75-77. Confiram-se também as obras de José Rogério Cruz e Tucci dedicadas a cada um dos referidos juristas: TUCCI, José Rogério Cruz e. Giuseppe Chiovenda: vida e obra – contribuição para o estudo do Processo Civil. 1. ed. São Paulo: Migalhas, 2010; TUCCI, José Rogério Cruz e. Piero Calamandrei: vida e obra – contribuição para o estudo do Processo Civil. 1. ed. São Paulo: Migalhas, 2012; TUCCI, José Rogério Cruz e. Francesco Carnelutti: vida e obra – contribuição para o estudo do Processo Civil. 1. ed. São Paulo: Migalhas, 2017; TUCCI, José Rogério Cruz e. Enrico Redenti: vida e obra – contribuição para o estudo do Processo Civil. 1. ed. São Paulo: Migalhas, 2019.

[4] Gustavo Tepedino e Francisco de Assis Viégas, reconhecendo a necessidade de sistematização da matéria, propõem seja essa tarefa realizada à luz do chamado diálogo das fontes. Para uma crítica a essa metodologia, confira-se: SOUZA, Fernado Speck de. Diálogo das fontes: fundamentos, experiência jurisprudencial e crítica metodológica. 2019. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

[5] TEPEDINO, Gustavo; VIÉGAS, Francisco de Assis. A evolução da prova entre o direito civil e o direito processual civil. Pensar – Revista de Ciências Jurídicas, v. 22, 2017, p. 554.

[6] DAMASKA, Mirjan. Evaluation of Evidence: Pre-Modern and Modern Approaches. Cambridge: Cambrige Univeristy Press, 2019. p. 69 e 118.

[7] Confira-se a análise de Twining da recepção do Tratado das Obrigações de Pothier nos Estados Unidos e na Inglaterra, e as diferenças entre as tradições da Civil Law e Common Law em matéria de prova: TWINING, William. Rethinking Evidence. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2016. p. 45-49.

[8] Observe-se que na tradição romano-germânica nunca se chegou a uma visão realmente sistemática e unitária do fenômeno probatório: nunca se chegou a uma verdadeira teoria geral da prova. Embora o conteúdo da Law of Evidence norte-americana seja substancialmente diverso do que os sistemas jurídicos de tradição civilista enxergam como conteúdo da disciplina legal das provas, a Rationalist Tradition of Evidence logrou uma considerável sistematização e unificação do estudo da prova no direito norte-americano.

[9] Alguns civilistas brasileiros da primeira metade do Século XX se ocuparam do tema da prova, inclusive da identificação de sua natureza jurídica, a exemplo de Pontes de Miranda. Contudo, a diminuta importância atribuída à discussão da natureza jurídica das normas sobre prova se releva, por exemplo, na opção de Pontes por não se dedicar à questão em seu Tratado de Direito Privado, embora já tivesse se debruçado anteriormente sobre ela em seus comentários à Theoria das Provas e sua applicação aos actos civis, de Francisco Augusto de Neves e Castro (2. ed. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Editor, 1917).

[10] Alguns autores clássicos da Teoria da Prova analisaram a questão, mas com pouco fôlego e esforço comparativo. É o que se verifica, por exemplo, na Lógica das provas em matéria criminal, de Nicolà Framarino dei Malatesta.

[11] No Brasil, Cândido Rangel Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover são exemplos de cultores da Teoria Geral do Processo que muito se aprofundaram na temática da prova.

[12] CHIOVENDA, Giuseppe. La natura processuale delle norme sulla prova e l'efficacia della legge processuale nel tempo. In: Saggi di Diritto Processuale Civile (1900 – 1930). Vol. 1. Roma: Societá Editrice Foro Italiano, 1931. p. 242.

[13] Sobre o avanço de concepções privatistas do processo, confira-se: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O neoprivatismo no processo civil. Temas de Direito Processual (nona série). São Paulo: Saraiva, 2007; e também RODRIGUES JR, Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. 1. ed. São Paulo: Forense, 2019. p. 74-77.

[14] Sobre o publicismo da concepção de Jurisdição delineada por Chiovenda: PISANI, Andrea Proto. Nel centenario del magistero di Giuseppe Chiovenda: la tutela giurisdizionale dei diritti nel sistema di Giuseppe Chiovenda. Il Foro Italiano, abril/2002, vol. 125, n. 4, p. 126. Proto Pisani identifica como duas as principais premissas teóricas do pensamento de Chiovenda: a atipicidade do direito de ação, e a natureza pública da jurisdição. Nossa crítica não é direcionada à identificação do caráter público do processo, que é uma conquista da ciência processual, mas sim a uma visão extremada desse caráter público, como se verifica entre os autores filiados ao chamado neoprocessualismo. Ademais, questionamos a atribuição de escopos metajurídicos à Jurisdição, como faz a Teoria Geral do Processo de Dinamarco, Grinover e Araújo Cintra. Para uma metadogmática da Teoria Geral do Processo: DIDIER JR., Fredie. Teoria geral do processo, essa desconhecida. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

[15] É possível repensar um modelo publicista do processo à luz da própria obra de Chiovenda. A ênfase dada por este autor ao que, na linguagem da Teoria Geral do Processo, podemos identificar como escopo jurídico da jurisdição, associada à centralidade do papel das partes em sua obra (especialmente em seus Principii), são fatores que parecem demonstrar um profundo distanciamento de parte da publicística processual contemporânea, no Brasil, das linhas mestras do grande discípulo de Scialoja.

[16] Para uma análise dessa que seria "a maior transformação da dogmática do processo civil brasileiro em muito tempo": DIDIER JR, Fredie. Ensaios sobre os negócios jurídicos processuais. 2. ed. São Paulo: Juspodivm, 2021.

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  • é advogado; mestrando em Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; bacharel pela mesma instituição; pós-graduado em Direito Privado; e pesquisador vinculado à Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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