Opinião

Gravidez resultante do crime de estupro. Quando é possível o aborto?

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23 de julho de 2022, 15h21

Conforme prevê nosso Código Penal, o aborto, em princípio, constitui crime. É, como regra geral, uma conduta típica constante em norma proibitiva, e caso perpetrada, deverá ser punida pela via do direito penal. No entanto, há exceções. Como Lenio Streck gosta de nos lembrar, no direito não há respostas prontas [1].

O artigo 128 do CP, logo após tratar das espécies de aborto (sim, existem espécies do crime de aborto), vem delimitar esse assunto tão debatido no Brasil e no mundo afora. O dispositivo é uma resposta direta do legislador para a questão das possibilidades de aborto.

A doutrina trata do artigo 128 como sendo o dispositivo regulamentador do "aborto legal". Naquelas hipóteses e presentes seus requisitos o aborto é permitido sem que haja perigo de punição na seara penal. Rogério Greco trata do assunto exatamente desta forma, sustentando que o artigo 128 do Código Penal prevê duas modalidades de aborto legal, ou seja, hipóteses de aborto realizado em virtude de autorização direta da lei. Quais sejam: a) aborto terapêutico (curativo) ou profilático (preventivo) e; b) aborto sentimental, também conhecido como humanitário [2].

Eis o dispositivo legal para depois fazermos algumas reflexões:

"Artigo 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro: II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal".

Pois bem.

A norma que nos interessa neste momento é manifestada pelo inciso II do artigo 128. O dispositivo trata exatamente da permissão que é dada à vítima de estupro para que realize o procedimento, posto que a gravidez resultante do ato criminoso, na grande maioria das vezes, será uma espécie de violência que a gestante não deseja sofrer e, no nosso entendimento, não pode ser imposta contra sua vontade mediante suposta ponderação entre direitos fundamentais como o direito à vida e a integridade física.

Como explica Bitencourt, essa espécie de aborto se torna possível quando a gravidez resulta de estupro e a gestante consente com o procedimento. O autor ressalta que nossa legislação não faz limitação temporal para que a gestante opte pelo procedimento. Vale dizer, não há que se discutir em que momento se encontra a gestação, pois esta circunstância não é requisito para o aborto legal [3].

O que se entende na doutrina, a partir de competente interpretação da lei, é que são necessários os requisitos da gravidez resultante do crime de estupro e o prévio consentimento da gestante ou, sendo incapaz, de seu representante legal. Devendo ser manifesta a prova da ocorrência do estupro e do consentimento da vítima para a realização do procedimento abortivo.

Para demonstrar o consentimento, basta que seja obtido por escrito ou, em caso de impossibilidade, por outros meios idôneos na presença de testemunhas, gerando garantia para o profissional que irá realizar o aborto. Utilizamos o termo "profissional" mesmo quando a lei diz de forma literal que o ato deve ser realizado por médico. Ora, não podemos esperar que existam médicos presentes em todas as situações em que o aborto seja necessário.

Diante de circunstâncias dificultosas como essa, compartilhamos do entendimento de Greco acerca da utilização de analogia in bonam partem estendendo o alcance da norma para outras pessoas que possam realizar o procedimento no momento necessário, como parteiras que atuem em localidades de difícil acesso [4].

No entanto, como parte da honestidade acadêmica, vale citar que alguns dos mais renomados autores discordam de nosso posicionamento, entonando que deve haver a presença de médico como requisito para a realização do aborto [5].

O mais importante no sentido de garantir a atuação da pessoa que irá realizar o procedimento é certificar-se da autenticidade da afirmação da gestante, por meio da verificação de inquéritos policiais, boletins de ocorrência ou outras diligências que possam ser realizadas para conferir veracidade à afirmação de que houve estupro.

Desta forma, caso venha à lume o fato de que a gestante mentiu acerca da ocorrência de estupro, apenas esta responderá criminalmente. Como ressalta Cezar Roberto Bitencourt, a atuação de boa-fé do médico revela erro de tipo que, como consequência, exclui o dolo, afastando a tipicidade de seus atos.

E quanto ao requisito do consentimento? A vontade livre e consciente sempre tem suas nuances, e cabe a nós ao menos pincelar sobre o assunto.

Mas antes, um breve desvio.

Este artigo não teve surgimento espontâneo, a partir de um sonho ou epifania de seu autor. Nosso escrito foi provocado por acontecimentos atuais acerca da legalidade do aborto, como o caso em que determinada juíza, no Brasil, indeferiu o pedido de uma criança de 11 anos, que teria sido vítima de estupro, para a realização de aborto [6] e pela discussão do assunto nos Estados Unidos, onde a Supreme Court decidiu pela reversão do precedente Roe v. Wade, quando havia fixado entendimento segundo o qual mulheres grávidas teriam a opção de realizar aborto sem restrições de cunho governamental, garantindo sua liberdade individual.

Inclusive, acerca deste último tópico, recomendamos a leitura de texto do professor Lenio Streck, com visão crítica sobre a postura supostamente textualista e originalista da Corte Suprema norte-americana [7].

Sigamos para o requisito do consentimento. O assunto por certo não é pacífico. Tema desse jaez, como percebemos pela postura da Suprema Corte norte-americana, não se cristaliza, não se resolve.

Dessa forma trazemos o questionamento: há, como diz Greco, a necessidade imperiosa de que a gestante consinta com a realização do aborto? Pergunta-se pois há situações em que a vítima de estupro, grávida e absolutamente incapaz (conforme o Código Civil, absolutamente incapazes são aqueles menores de 16 anos) pode ter vontade diversa da de seu representante legal.

Imagine-se, por exemplo, se no caso mencionado da menina de 11 anos, esta resolvesse por manter a gestação, por motivos íntimos. Mas, por outro lado, sua mãe discordasse de forma adamante da decisão de sua pequena filha. Como vimos anteriormente, no caso do absolutamente incapaz sua manifestação de vontade é suprida pela vontade de seu representante legal, no caso, sua mãe.

Pela interpretação literal do artigo 128, inciso II, do Código Penal, a vontade prevalecente seria a da representante legal. Mas o caso não se resolve com interpretação literal (muito pouco se resolve com a literalidade das leis), pois estão em jogo direitos fundamentais de extrema relevância, e a Constituição Federal é expressa no sentido de que devemos pautar o direito na proteção integral da criança e adolescente [8].

Parte da doutrina sustenta que, nesse caso, onde há discordância entre a vontade do absolutamente incapaz e de seu representante legal deve exsurgir a proteção sobre a vida do feto [9]. Sendo assim, o suprimento do consentimento da vítima gestante só poderia ser no sentido de realizar o aborto, caso contrário, realiza-se uma espécie de fusão dos interesses em jogo, cumulando-se a vontade da vítima com a proteção da vida do feto, que supostamente sobrepujam a simples decisão de eliminar o nascituro.

A questão aparentemente não é um tópico sobre o qual a doutrina se debruça (diferente do caso do feto anencefálico). O fato é que o tema é muito complexo, por envolver direitos fundamentais tão sensíveis e estruturais do nosso ordenamento jurídico.

Nosso entendimento acerca do requisito consentimento nos casos de divergência é de que deve ser analisado conforme as peculiaridades de cada caso, particularidades estas que são das mais variadas ordens, o que afasta, desde já, qualquer solução abstrata pronta, para aplicação genérica a todo e qualquer caso de discordância entre vontades da gestante e de seu representante legal.

Para findar este breve artigo, citamos um importante elemento da discussão, e que toma especial relevo diante do caso da juíza que negou a realização do procedimento abortivo. A desnecessidade de autorização judicial para a configuração da norma permissiva. Vale dizer, não é necessária autorização do judiciário para que a gestante busque a realização do aborto.

A doutrina é pacífica nesse ponto, afirmando ser bastante que o médico (ou outra pessoa que realize essa função, a depender do caso concreto) se assegure de que tenha ocorrido o crime de estupro, por meio de certidões e cópias de ocorrências policiais, declarações, atestados e outros elementos similares [10].

É verdadeira questão de cautela do profissional da saúde, para evitar futura persecução penal contra si. No entanto, o importante neste momento é entender que decisões judiciais são despiciendas.

Concluímos então dizendo: se o caso se encaixa nos parâmetros inicialmente discutidos, o procedimento deve ser realizado. Sem a necessidade de pleitos perante o Poder Judiciário. Basta que a vítima leve ao médico algum documento suficiente para provar a ocasião do crime e manifeste sua vontade certa na realização do aborto.

Caso a vítima seja absolutamente incapaz, ou seja, menor de 16 anos, pessoa que necessita de representação para a prática da grande maioria dos atos da vida civil, sua intenção deve ser exteriorizada por meio de seu representante legal.

No caso de conflito de vontades, a questão, no nosso sentir, deve ser levada ao Judiciário, onde deverão ser analisados os detalhes de cada caso e a fundamentação das divergências.


[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/senso-incomum-lidador-direito-conhece-coisas-ele-mesmo-poe-nelas Acesso em: 02 de julho de 2022. Outros artigos do professor podem ser encontrados no site Conjur onde repete-se: o direito não possui respostas prontas.

[2] GRECO, Rogério. Curso de direito penal: volume 2: parte especial: artigos 121 a 212 do código penal. 19ª ed. Barueri, Atlas, 2022, p. 318.

[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Parte Especial: crimes contra a pessoa. 20ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 610.

[4] GRECO., op. cit., p. 326.

[5] MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. IV, p. 219; PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 2, p. 108.

[8] Artigo 227 da Constituição Federal: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[9] GRECO., op., cit., p. 327

[10] PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte especial, São Paulo: RT, 1992, p. 121-122.

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