Senso incomum

O lidador do direito conhece das coisas o que ele mesmo põe nelas!

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28 de maio de 2020, 8h00

Spacca
Resumo: tratado sobre o solipsismo retrô!

Coluna de hoje é como constitucionalista espalha roda, para usar um epíteto dado a mim e Pedro Serrano: a coluna não é muito atrativa nestes tempos de memes, lives, textinhos curtos. Aceito, porém, o risco do “espalhamento da roda”.

Ontem, no Estado da Arte — revista de ideias hospedada na home do Estadão — publiquei ensaio sobre hermenêutica filosófica no direito. Na verdade, falei sobre hermenêutica como condenação à interpretação.

Também foi lá no Estado da Arte que li interessante texto de Filipe Campello, falando sobre as teses negacionistas de Agamben sobre o coronavírus que, por uma ironia paradoxal, são repetidas pela extrema-direita.

O bom texto de Filipe inspirou-me a escrever esta coluna; não, não sobre o que disse Agamben sobre a pandemia, mas sobre a reflexão maior do autor: De onde fala a filosofia?

A partir da bola levantada por Filipe, quero falar um pouco sobre o problema da filosofia no direito, e o problema de não se reconhecer os paradigmas filosóficos no direito.

Vejam o seguinte trecho:

Se na modernidade há um deslocamento de perspectiva a partir do princípio da subjetividade, a relação entre metafísica e ciência continuaria embaralhando as cartas da filosofia. Num certo sentido, esse quid pro quo se agudiza na medida em que a reflexão filosófica passa a ser mais propriamente assumida em primeira pessoa — o filósofo como alguém que, parafraseando Kant, conhece das coisas o que ele mesmo põe nelas. Poderíamos esperar que esse deslocamento para a primeira pessoa — o filósofo que fala enquanto um sujeito em particular, nos limites do seu conhecimento, de sua experiência e de sua visão de mundo — poderia ter trazido um pouco de modéstia para a filosofia. Não foi o que aconteceu.

Esta é uma passagem a partir da qual, com as devidas adaptações de contexto, poderíamos ver, quase que desenhado, alguns dos problemas que marcam o direito até hoje. Brincando, quando lia o texto pela primeira vez, pensava: “Será que o autor não estaria falando da comunidade jurídica?”

Sim, porque é exatamente nesse paradigma que estão assentadas teoria e prática do direito no Brasil. A subjetividade sem modéstia, que vira subjetivismo. Sem pudor. O sujeito que conhece das coisas o que ele mesmo põe nelas. Aquele que só pensa em primeira pessoa. O solipsista retrô.

Esse é o problema paradoxal de uma mentalidade positivista, sem saber que é positivista, no direito: de uma escola de pensamento jurídico que nasce no empirismo, e postula em teoria que o direito é um fato social, deriva-se uma prática subjetivista (por isso não se preocupa com a decisão!) que é resquício de um paradigma irrefletido da metafísica moderna. Dizem: “Direito é fato”. “Posto pelo sujeito”. Digo eu: Que conhece das coisas o que ele mesmo põe nelas. Que só pensa em primeira pessoa.

Dizem, via senso comum, que positivismo é aplicar a lei. Ledo engano. Ignoram que o positivismo jamais se preocupou com a decisão judicial. Dá nisso… que está aí.

Até hoje, no Brasil, o direito recusa o paradigma da intersubjetividade. A “linguagem” privada se sobrepõe à pública. Triunfa ainda o “decido conforme a consciência” e que a decisão provém de um ato de sentimento pessoal. Não bastou que o CPC consagrasse, depois de muita luta, a exigência de coerência e integridade nas decisões judiciais. Não há critério, não há constrangimento institucional consolidado; a práxis jurídica brasileira é uma verdadeira waste land de Eliot.

E a teoria, a doutrina, que é quem deveria corrigir isso é exatamente o que dá origem ao problema. Porque juízes (e promotores, e defensores) são formados nas faculdades. Faculdades que ensinam e repetem o velho senso comum teórico. Enunciados assertóricos, respostas prontas e igualmente irrefletidas que foram construídas sob o mesmo paradigma, o mesmo resquício metafísico. Respostas antes das perguntas. “Legítima defesa não se mede milimetricamente” e quejandos e quetais.

E aí dizem que filosofia não importa. Ora, o que o Lenio Streck está falando de metafísica? Importa é a prática.

Pois bem. É exatamente porque não se discutiu isso que a prática é esse caos. Porque a teoria foi tornada um caos. Tratada com descaso, como mera perfumaria ou como glacê. O ponto? Esquece-se que é a teoria que dá suporte a qualquer prática.

Assentado em um paradigma já superado, sem saber que está, o direito brasileiro é concebido sob uma racionalidade instrumental. Direito é só um fato social que serve para alguma coisa. E isso depende do poder. E, afinal — eis o meme vencedor — cada um tem a sua opinião… Mais ou menos como na charge abaixo:

Reprodução

Foi essa negligência teórica que ajudou a cavar este buraco. Onde juiz age como político e é aplaudido por fazê-lo. Onde o bacharel fala contra a Constituição. Onde se tira um “princípio” do bolso para justificar qualquer decisão. O que é isto — o princípio? Diz a velha dogmática que são “valores”. O que é isto — o valor? Boa pergunta. Reivindicam uma abertura interpretativa que contraria exatamente a história dos valores na filosofia — sim, exatamente isso que fazem – e o caráter institucional dos princípios no direito (ver verbete Valores, no meu Dicionário de filosofia, em que demonstro a falsidade do enunciado “princípios são valores”).

De onde fala a filosofia? Pois é, caro Filipe. No direito, o problema é ainda mais grave. Nem mesmo importa de onde ela fale. Ninguém está ouvindo.

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