Opinião

Cadeia de custódia é regra indispensável no "jogo" processual penal

Autor

  • Rodrigo Casimiro Reis

    é defensor público do estado do Maranhão assessor de ministra do Superior Tribunal de Justiça membro da Comissão Criminal do Condege e especialista em Direito Constitucional.

16 de julho de 2022, 15h19

A Lei nº 13.694/19 promoveu uma série de alterações no Código de Processo Penal, dentre as quais a inserção, de forma expressa, da necessidade de observância da cadeia de custódia da prova penal, instituto que visa, em breves palavras, garantir o registro e o caminho dos vestígios coletados na cena do crime, assegurando que a prova material do delito, analisada pelas partes e pelo Estado-Juiz, seja a mesma supostamente apreendida na posse do acusado (princípio da mesmidade [1]).

Destaco que o referido instituto está regulado pelos artigos 158-A a 158-F, todos do CPP, tendo o presente ensaio o objetivo de examinar de forma mais pormenorizada o artigo 158-D do mencionado diploma legal, dispositivo que dispõe sobre a obrigatoriedade do vestígio ser guardado em recipiente lacrado.

Dissertando sobre o tema da cadeia de custódia, Eugenio Pacelli et al leciona que [2]:

"A finalidade precípua é garantir a lisura e validade das provas que serão valoradas pelo julgador, maximizando-se o devido processo legal, sob duplo vetor: a) tanto sob a ótica da necessária apuração dos fatos na sua maior inteireza (sendo decorrência das denominas obrigações processuais penais positivas); b) como também para permitir o exercício da ampla defesa e do contraditório a partir de provas e indícios que sejam considerados como válidos à luz do ordenamento jurídico".

A inobservância do devido acondicionamento dos vestígios e da respectiva incolumidade do lacre previsto no artigo 158-D, §1º, do CPP acarreta 1) a imprestabilidade da prova como elemento de reconstrução de um fato histórico e 2) a impossibilidade do pleno exercício do contraditório sobre a prova, impedindo que a defesa contribua, de forma efetiva, para a formação do convencimento do julgador (artigo 155, caput, do CPP).

Nesse sentido, Salah Khaled Jr. enuncia que "a operação de reconstrução narrativa do passado é, por excelência, uma operação de interpretação, de busca de restabelecimento retrospectivo de um percurso que foi apagado pela passagem do tempo. (…) A partir dessa perspectiva, podemos dizer que, para condenar, o juiz terá que elaborar narrativamente um texto amparado em provas que foram estabelecidas ao longo do processo, momento no qual a verdade irá se mostrar como uma exigência: a exigência de representar o passado" [3].

Em nosso sistema penal acusatório (lido sob a ótica constitucional), o ônus de comprovar a imputação delitiva, nos termos do artigo 156, caput, do CPP, recai única e exclusivamente sobre o órgão acusatório.

É dizer, cabe ao MP carrear aos autos elementos de convicção válidos e idôneos sobre a autoria e a materialidade da infração imputada, revelando-se inadmissível a valoração de prova com qualidade epistêmica comprometida, fato que, se acatado, irá redundar no indevido rebaixamento do standard probatório exigido para a sentença condenatória (que demanda produção de prova além de toda a dúvida razoável).

Conforme preceitua Aury Lopes Jr., "cadeia de custódia da prova nos remete ao conjunto de procedimentos, concatenados, como elos de uma corrente, que se destina a preservar a integridade da prova, sua legalidade e confiabilidade. Uma corrente que liga duas pontas, que vai da identificação dos vestígios até o seu descarte. A quebra equivale ao rompimento de um dos elos da corrente" [4].

Fixadas essas premissas, constata-se que a Sexta Turma do STJ, em julgamento realizado no ano de 2014, concedeu a ordem postulada para determinar a anulação das provas produzidas em interceptações telefônica e telemática, sob o fundamento de que parte das provas obtidas na interceptação foi extraviada e o conteúdo dos áudios telefônicos não foi disponibilizado da forma como captado, havendo descontinuidade nas conversas e na sua ordem, com omissão de alguns áudios.

 Embora não tenha examinado o dispositivo ora em debate (até mesmo porque, conforme retromencionado, o instituto da cadeia de custódia somente foi inserido de forma categórica em nossa legislação no ano de 2019), o mencionado precedente, abaixo transcrito, revela-se de extrema importância ao consignar que a prova colhida não serve apenas aos interesses do acusador, sendo imprescindível a preservação e disponibilização de sua integralidade a ambas as partes, sob pena de afrontar o direito à ampla defesa:

"(…)
XI. A prova produzida durante a interceptação não pode servir apenas aos interesses do órgão acusador, sendo imprescindível a preservação da sua integralidade, sem a qual se mostra inviabilizado o exercício da ampla defesa, tendo em vista a impossibilidade da efetiva refutação da tese acusatória, dada a perda da unidade da prova.
XII. Mostra-se lesiva ao direito à prova, corolário da ampla defesa e do contraditório – constitucionalmente garantidos -, a ausência da salvaguarda da integralidade do material colhido na investigação, repercutindo no próprio dever de garantia da paridade de armas das partes adversas.
XIII. É certo que todo o material obtido por meio da interceptação telefônica deve ser dirigido à autoridade judiciária, a qual, juntamente com a acusação e a defesa, deve selecionar tudo o que interesse à prova, descartando-se, mediante o procedimento previsto no artigo 9º, parágrafo único, da Lei 9.296/96, o que se mostrar impertinente ao objeto da interceptação, pelo que constitui constrangimento ilegal a seleção do material produzido nas interceptações autorizadas, realizada pela Polícia Judiciária, tal como ocorreu, subtraindo-se, do Juízo e das partes, o exame da pertinência das provas colhidas. Precedente do STF.
XIV. Decorre da garantia da ampla defesa o direito do acusado à disponibilização da integralidade de mídia, contendo o inteiro teor dos áudios e diálogos interceptados. (…)
XVII. Ordem concedida, de ofício, para anular as provas produzidas nas interceptações telefônica e telemática, determinando, ao Juízo de 1º Grau, o desentranhamento integral do material colhido, bem como o exame da existência de prova ilícita por derivação, nos termos do artigo 157, §§1º e 2º, do CPP, procedendo-se ao seu desentranhamento da Ação Penal 2006.51.01.523722-9" (HC nº 160.662/RJ, relatora ministra Assusete Magalhães, Sexta Turma, julgado em 18/2/2014, DJe de 17/3/2014).

Referido posicionamento firmado pelo STJ foi adotado em recente decisão monocrática proferida pelo ministro Gilmar Mendes [5], na qual o Relator, apesar de não ter examinado questão em torno do artigo 158-D do CPP, concedeu parcialmente a ordem pleiteada, em razão da ausência da disponibilização integral dos áudios captados durante interceptação telefônica, fato que, em tese, impede a defesa o direito de contrapor os diálogos imputados ao denunciado.

Confira-se trecho do referido decisum, abaixo transcrito, que constatou possível violação da cadeia de custódia:

"O que não se admite é a negativa do fornecimento ou a disponibilização parcial, seletiva ou aleatória dos arquivos que contém a gravação de diálogos mantidos entre os acusados, sob pena inclusive de violação à garantia da manutenção da cadeia de custódia da prova.
Ao tratar desse tema, a doutrina afirma que 'um dos aspectos mais delicados da aquisição de fontes de prova consiste em preservar a idoneidade de todo o trabalho que tende a ser realizado sigilosamente, em um ambiente de reserva que, se não for respeitado, compromete o conjunto de informações que eventualmente venham a ser obtidas dessa forma'". (PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 77).

Em que pese os citados julgados tenham examinado tese em torno da quebra da cadeia de custódia em tema de interceptações telefônicas, constata-se que a ratio decidendi adotada por esses precedentes aplica-se perfeitamente aos casos de inobservância do artigo 158-D do CPP, regra que tem por escopo, ao fim e ao cabo, resguardar a integridade do conjunto da prova coletada e permitir que a defesa a ela se contraponha de acordo com as regras do "jogo" processual.

O desrespeito ao contido no artigo 158-D do CPP implica, em nosso entendimento, na nulidade absoluta da prova material do delito imputado ao assistido, já que viola norma cogente que tutela o interesse público e que causa prejuízo não só ao acusado, mas à toda coletividade, que ficará sujeita a um processo penal no qual não se observam os direitos e garantias fundamentais (artigos 563 e 566, ambos do CPP).

Nesse ponto, Alexandre Morais da Rosa assevera que "o efeito da quebra de cadeia de custódia consiste na declaração da ilicitude ou ilegitimidade da prova para fins de valoração judicial, com a exclusão física de seus elementos e dos que dela decorrerem (…)" [6].

Nas palavras de Francesco Carnelutti, "o processo penal é um banco de prova da civilização" [7], detendo as regras processuais tanto a função de: 1) garantia em prol do jurisdicionado (de que as provas eventualmente utilizadas em seu desfavor foram colhidas em observância aos ditames legais/constitucionais); 2) quanto de limitação do poder punitivo estatal, neutralizando eventuais abusos de poder por parte de agentes estatais.

Corroborando a argumentação em torno da imperiosa necessidade de que toda e qualquer intervenção do Estado no âmbito privado do cidadão seja expressamente motivada à luz dos ditames constitucionais, colho trecho de decisão exarada pelo ministro Celso de Mello nos autos do HC 186.421 [8], no qual Sua Excelência delimita os contornos de um processo penal que pretenda ser denominado de garantista:

"A razão desse entendimento resulta do fato, juridicamente relevante, de que o processo penal figura como exigência constitucional ('nulla poena sine judicio') destinada a limitar e a impor contenção à vontade do Estado, cuja atuação sofre, necessariamente, os condicionamentos que o ordenamento jurídico impõe aos organismos policiais, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário.

O processo penal e os Tribunais, nesse contexto, são, por excelência, espaços institucionalizados de defesa e proteção dos réus contra possíveis excessos e o arbítrio do Poder, especialmente em face de eventuais abusos perpetrados por agentes estatais no curso da 'persecutio criminis' (…)".

Importante frisar que os direitos e garantias individuais previstos na Constituição da República são resultado de um lento e gradual processo de conquistas no campo dos direitos humanos, sendo regidos, portanto, pelos princípios da proibição de retrocesso e da interpretação pro homine que, de acordo com André de Carvalho Ramos, "implica reconhecer a superioridade das normas de direitos humanos, e, em sua interpretação ao caso concreto, na exigência de adoção da interpretação que dê posição mais favorável ao indivíduo" [9].

Por fim, trago à colação julgado da Sexta Turma do STJ, abaixo transcrito, que, embora tenha registrado que as irregularidades decorrentes da quebra da cadeia de custódia devam ser sopesadas pelo julgador no caso concreto, concluiu pela ausência de elementos seguros para respaldar a tese acusatória e absolveu acusado da suposta prática do crime de tráfico de entorpecentes (artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/06), em razão da prova material do delito estar acondicionada em saco plástico fechado por nó, desprovido de lacre:

"(…)
9. O fato de a substância haver chegado para perícia em um saco de supermercado, fechado por nó e desprovido de lacre, fragiliza, na verdade, a própria pretensão acusatória, porquanto não permite identificar, com precisão, se a substância apreendida no local dos fatos foi a mesma apresentada para fins de realização de exame pericial e, por conseguinte, a mesma usada pelo Juiz sentenciante para lastrear o seu decreto condenatório. Não se garantiu a inviolabilidade e a idoneidade dos vestígios coletados (artigo 158-D, §1º, do CPP). A integralidade do lacre não é uma medida meramente protocolar; é, antes, a segurança de que o material não foi manipulado, adulterado ou substituído, tanto que somente o perito poderá realizar seu rompimento para análise, ou outra pessoa autorizada, quando houver motivos (artigo 158-D, §3º, do CPP).
10. Não se agiu de forma criteriosa com o recolhimento dos elementos probatórios e com sua preservação; a cadeia de custódia do vestígio não foi implementada, o elo de acondicionamento foi rompido e a garantia de integridade e de autenticidade da prova foi, de certa forma, prejudicada. Mais do que isso, sopesados todos os elementos produzidos ao longo da instrução criminal, verifica-se a debilidade ou a fragilidade do material probatório residual, porque, além de o réu haver afirmado em juízo que nem sequer tinha conhecimento da substância entorpecente encontrada, ambos os policiais militares, ouvidos sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, não foram uníssonos e claros o bastante em afirmar se a droga apreendida realmente estava em poder do paciente ou se a ele pertencia. (…)
15. Ordem concedida, a fim de absolver o paciente em relação à prática do crime previsto no artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/2006, objeto do Processo nº 0219295-36.2020.8.19.0001. Ainda, fica assegurado ao réu o direito de aguardar no regime aberto o julgamento do recurso de apelação". (HC nº 653.515/RJ, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 23/11/2021, DJe de 1/2/2022.)

Ante o exposto, verifica-se que o acondicionamento de vestígio em desconformidade com a regra do artigo 158-D do CPP redunda na inexorável ilicitude da prova, nos termos do artigo 157, caput, do CPP e do artigo 5º, LVI, da CF/88.


[1] PRADO, Geraldo. "Ainda sobre a quebra da cadeia de custódia das provas", in Boletim do IBCCrim, nº 262, setembro de 2014, p. 16-17 apud LOPES JR, Aury et al. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-jan-16/limite-penal-importancia-cadeia-custodia-prova-penal#_edn2>. Acesso em 10 jul. 2022.

[2] Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 12. Ed. São Paulo: Atlas, 2020. P. 497.

[3] A busca da verdade no Processo Penal. 3. Ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. P.  305.

[4] Direito Processual Penal. 18. Ed. São Paulo: Saraiva, 2021. P. 460.

[5] HC nº 208.614 AgR, julgado em 06/07/2022

[6] Guia do Processo Penal Estratégico. 1. Ed. Florianópolis: Emais, 2021. P. 406.

[7] As misérias do processo penal. 3. Ed. Leme: Edijur, 2019. P. 7.

[8] DJe 22/07/2020

[9] Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2020. P. 119.

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