Limite Penal

Quando a Síndrome do Pequeno Poder comparece nas audiências

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

15 de julho de 2022, 10h39

Partindo da premissa de que punir é exercício de poder e de que o processo é um caminho necessário para apuração de um fato e correto exercício do poder punitivo estatal, é imprescindível compreender como se estabelece essa dinâmica e também seus abusos. O ritual judiciário é um ritual de exercício de poder (Garapon), daí a imprescindibilidade de sua contenção, demarcação, limitação, pela via dos direitos e garantias fundamentais que estruturam o devido processo penal. Em democracia processual, a forma estabelecida em lei é garantia, limite, legalidade.

Spacca
Poder Estatal: comportamentos e Estrutura de Incentivos (prêmios e punições). Se o Poder, entendido como a possibilidade de impor "ao outro" ou "a si mesmo", determinado comportamento, prêmio ou punição, é estruturante do Estado democrático de Direito, a arquitetura do aparato normativo estabelece as atribuições, as funções, as competências, as formas e os mecanismos de "exercício do poder" às diversas Instituições estruturantes do estados, relacionados a mecanismos de limitação e de controle. Do contrário, cada agente estatal poderia agir de modo aleatório, incompatível com as premissas democráticas de estabilidade, previsibilidade e segurança jurídica. Segue-se que a legitimidade dos atos estatais, materializados por agentes estatais (delegado, membro do Ministério Público, julgador etc.) deve guardar conformidade formal e material com o suporte normativo.

O Poder é exercido por alguém que nunca é o "dono do poder" (embora às vezes acredite). Se o exercício do poder tende ao abuso, os mecanismos democráticos objetivam controlar a forma e o conteúdo dos comandos estatais. Na monarquia os critérios da decisão se confundiam com a "vontade" do detentor eventual do "poder", isto é, com o rei ou a rainha e seus mandatários, sob o controle pessoal da autoridade máxima (poder moderador supremo; absoluto). As ditaduras e os regimes autoritários reiteram a figura do "todo poderoso". O desafio democrático é o de evitar a concentração do poder, nas mais variadas esferas, tanto assim que se restringe o espaço de incidência do poder por meio das normas de competência e de atribuição (limites de lugar, função, tempo e espaço). Além disso, regulamenta-se o relacionamento institucional entre os ocupantes dos poderes (legislativo, executivo e judiciário), no que classicamente se denominou de "freios e contrapesos". Por isso, ninguém deveria se sentir rei ou rainha ao ocupar, sempre transitoriamente, uma função pública. Mas a sedução pelo exercício do poder, na ausência de controles efetivos, tende ao abuso.

O lugar do Processo Penal é o de criar mecanismos de mitigação e de controle sobre os comportamentos dos agentes procedimentais que agem em nome do Estado (relação de agente-principal). O problema comparece quando o agente faz prevalecer seus interesses pessoais em detrimento ao interesse público, denominado de “problema de agência”.

"Se quiseres saber como uma pessoa é, dê-lhe um lugar de Poder". A sabedoria popular nos ensina que aquele que detém o poder (familiar, chefe, policial, juiz, porteiro, membro do Ministério Público, dentre outros) tende ao abuso, motivo pelo qual, no Estado democrático de Direito, estabelecem-se mecanismos de transparência (ativa e passiva) e de controle (prévio ou reparatório).

O controle da tentação autoritária depende da existência e da eficácia dos instrumentos de prevenção, restrição e/ou contenção dos agentes com atribuição para o exercício de parcela do poder estatal. Aprendemos com Michel Foucault (e com a história) que o ninguém é o "dono do poder", porque ele é exercido conforme as circunstâncias. A ascensão e queda de personagens históricos deveria nos ensinar o atributo transitório e volátil do poder. O tema foi tratado por Maquiavel (O Príncipe), Étienne de La Boétie (servidão voluntária), Hanna Arendt (Eichmann em Jerusalém e a banalidade do mal), dentre outros. Em todos os casos, a ascendência e a queda de governantes (latu sensu: presidentes, magistrados, Delegados, procuradores e promotores etc.) é suscetível às condições reais do exercício do poder (sempre situada no tempo e no espaço), já que ao término dos mandatos, da aposentadoria e/ou da perda da função, nem todos conseguem lidar com a condição de não mais "exercer o poder" (alguns querem dar golpe: Trump e quejandos).

Sedução do Exercício do Poder. É impossível discorrer sobre as causas da "sedução do poder" nos limites da proposta do artigo, ao mesmo tempo em que assumimos a premissa de que a tentação pelo abuso de poder, decorrente do "exercício do lugar de poder" (imaginário, em geral), estará presente no domínio do Processo Penal e, também, de que a tendência ao "abuso", especialmente quando os instrumentos de contenção são inexistentes, inoperantes ou falhos, deve ser considerada na atividade de gestão do caso penal. Afinal de contas, a mentalidade autoritária e os agentes oportunistas ainda comparecem nos atos e nas decisões dos agentes estatais.

Síndrome do Pequeno Poder. Denomina-se de Síndrome do Pequeno Poder o comportamento do agente que, dispondo de certo espaço de poder, na linha da Economia da Confiança (Scott Shapiro), assume postura autoritária e/ou opressiva contra os submetidos ao poder que exerce (comum em ambientes hierárquicos). Opera de modo sutil ou ostensivo, com práticas humilhantes, opressivas e truculentas, em que o agente se aproveita das circunstâncias para se prevalecer, às vezes sob o argumento cínico de que somente está fazendo o seu papel. Engloba comportamentos de rebaixamento (rispidez, humilhação, maltrato etc.), valendo-se do suposto poder (sempre passageiro e da ordem do imaginário) que usufruiu em nome de algum regramento (legal, contratual ou situacional) para impor padrões de comportamento abusivos, desarrazoados em desconformidade com o interesse protegido (no caso dos agentes estatais, o Interesse Público). Abrange desde o porteiro da unidade judiciária ao Ministro do STF.

Segurança Pública. No domínio da Segurança Pública, a truculência, a humilhação, o rebaixamento e a violência situacional são constantes, dado que agentes da lei, diante da herança autoritária do Brasil, tendem a agir orientados pela Síndrome do Pequeno Poder (em geral, valendo-se da covardia e da própria insegurança subjetiva; a violência é um sintoma de insegurança). Daí a importância de que procedimentos possam ser aptos à identificação e ao controle dos comportamentos espúrios.

Opressor e Oprimido. A relação de opressão se dá, muitas vezes, pelo recalque, isto é, agentes oprimidos (p.ex. na estrutura da Polícia Militar pelos superiores) aproveitam a chance de reproduzir comportamentos opressivos quando a situação lhes favorece, mesmo sabendo da valoração ilícita da conduta, porque apostam na não responsabilização.

Rastros Tecnológicos. O mundo com aparatos tecnológicos sempre deixa rastros, sendo cada vez mais presente a descoberta de práticas ilícitas por meio de gravações as mais variadas que, não fossem as gravações, seriam rejeitadas (alguns agentes negam o que fazem sem nenhum pudor e/ou culpa). O desafio democrático é o de controlar o aparecimento dos sintomas, por meio de mecanismos de identificação e mitigação, além da formação sobre a possível incidência da Síndrome do Pequeno Poder.

"Sabe com quem está falando?" No domínio da antropologia o tema foi objeto de diversos estudos. Roberto da Matta apontou uma vertente da síndrome, em que o agente se sente melhor (seja lá o que isso queira significar) ao ponto de se acreditar privilegiado ao não cumprir normas. A frase clássica é a: "Sabe com quem está falando?"

Em audiência, nas varas e secretarias. Se o processo penal é marcado pelo contraditório, com regras de objeção, critérios de análise e fundamentação, com a possibilidade de responsabilização dos agentes procedimentais (administrativa, civil e penal), a negativa autoritária ao direito de protestar, objetar e de se insurgir, configura espécie da Síndrome do Pequeno Poder Jurisdicional.

Embora os lugares e funções dos agentes procedimentais estejam demarcados, com a atribuição da condução e do controle dos atos judiciais aos magistrados, assim como o Ministério Público e a Defesa devem agir em conformidade, o magistrado também deve se orientar pelo dever de conformidade procedimental (Regras de Bangalore, Código de Ética da Magistratura), em que o processo justo confere os meios de que todos possam requerer a palavra pela ordem, entendida como o direito de protestar contra a condução de determinado ato judicial, ser ouvido com respeito, seguida da oitiva da parte contrária, se necessário, com a deliberação subsequente.

As restrições ao exercício das prerrogativas das partes (quem manda aqui sou eu) é incompatível com o Estado democrático de Direito.

Comportamento inadequado da parte. O comportamento inadequado da parte pode se fazer presente por meio da ausência de profissionalismo quanto ao conteúdo das decisões, especialmente quando engajadas subjetivamente. Aliás, certo afastamento do objeto do caso sempre é necessário, motivo pelo qual é tão difícil e não recomendável atuar em casos de parentes, amigos e/ou em causa própria.

Os agentes públicos inclusive são declarados impedidos ou suspeitos justamente porque certo afastamento sempre é condição à prevalência da racionalidade. A sabedoria popular diz que quem defende causa própria tem um burro como cliente. O apaixonado pela causa exclui o afastamento subjetivo necessário à gestão profissional do caso penal

As estratégias de enfrentamento. Ainda que do ponto de vista normativo o comportamento seja inválido e a perseverança da Síndrome do Pequeno Poder decorra da postura do opressor, a ausência de resposta adequada por parte do oprimido também colabora com o estado de coisas.

O enfrentamento agressivo, com a escalada de gritos, de ameaças e de agressões até que a turma do "deixa disso" compareça, mostra-se ineficaz. A aquisição de indicadores de realidade sobre o comportamento abusivo, em geral gravações, serve de suporte à subsequente responsabilização dos agressores, conforme aliás é a tônica de transparência e publicidade de toda a audiência (efeito positivo da pandemia). É que sem objeção respeitosa, adequada e dentro das prerrogativas das partes, em caso de recurso ou ação impugnativa autônoma, o pedido tende a ser rejeitado por ausência de impugnação no momento do ato tido por violador, por meio do reconhecimento da preclusão.

A eficácia do mecanismo depende muito da tolerância do oprimido e na crença do poder inexistente do opressor (vale consultar a dialética do senhor e do escravo em Hegel).

Dever de boa-fé objetiva processual. A "cláusula geral" da boa-fé objetiva associa-se ao "dever de conformidade" (compliance) e accountability dos sujeitos processuais no exercício de direitos e deveres no processo. Consiste no dever de orientar o comportamento pela ética, lealdade, honestidade, lisura, probidade, confidencialidade, confiança, dever de informação, proporcionalidade, coerência e observância normativa. Conjuga-se com diversos deveres implícitos ou extensivos, não decorrentes diretamente de regras jurídicas, deduzidos dos pressupostos democráticos do exercício do poder no campo do processo penal.

A partir da boa-fé objetiva pode-se corrigir/suplementar (função integradora: criação de deveres, ônus), interpretar ou limitar o exercício de direitos subjetivos. A boa-fé objetiva se materializa, dentre outros institutos: i) na proibição de comportamento contraditório — venire contra factum proprium (vir contra fato próprio); ii) no dever de mitigar o próprio dano (duty to mitigate the loss); iii) na cooperação processual; iv) e na supressio; v) surrectio; e, vi) tu quoque. Em todos os contextos procedimentais, a orientação pela boa-fé objetiva deve ser sustentada e exigida.

Quando nós mesmos… O mais interessante é que reclamamos quando somos vítimas, mas não nos damos conta de que em muitas práticas profissionais (estagiários que o digam), familiares, conjugais, familiares etc., ainda que de modo inconsciente, reproduzimos a Síndrome do Pequeno Poder. É um desafio cotidiano a autocontenção para com as manifestações da Síndrome do Pequeno Poder no Processo Penal e no nosso cotidiano em que, do nada, assumimos o lugar da autoridade abusiva.

Tarefa de todos. O dever de conformidade procedimental e de accontability é atribuído a todos, com a respectiva assunção dos direitos e dos deveres inerentes ao lugar e a função que voluntariamente aceitamos exercer (podemos nos exonerar, não aceitar o caso). O que não podemos é usurpar e/ou violar os deveres das funções públicas exercida no contexto do Processo Penal, responsabilizando os portadores da Síndrome do Pequeno Poder Jurisdicional.

P.S.: Um abraço ao Mário de Oliveira Filho.

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