Escritos de Mulher

Estupro e poder: crimes sexuais em instituições de saúde

Autor

  • Maíra Fernandes

    é advogada criminal coordenadora do Departamento de Novas Tecnologias e Direito Penal do IBCCrim professora convidada da FGV Rio e da PUC Rio mestre em Direito e pós-graduada em Direitos Humanos pela UFRJ.

13 de julho de 2022, 15h54

No Hospital da Mulher, uma gestante foi estuprada pelo médico no momento de maior vulnerabilidade, e que deveria ser o de sublime alegria: o do parto.

Spacca
Câmeras posicionadas pelas funcionárias do local — desconfiadas da quantidade de sedação aplicada pelo anestesista nas pacientes, bem como de seus movimentos durante as cesárias — possibilitaram o registro do crime e a prisão em flagrante do autor do fato.

A notícia estarrece: pelo asco, o absurdo, a crueldade. "Doente", gritarão alguns, que atribuirão ao abusador uma possível patogenia, identificando-o como um homem incapaz de controlar seus impulsos sexuais [1]. "Monstro", xingarão outros, indignados. Mas a verdade é que o médico — até prova em contrário — não parece sofrer de qualquer doença, tampouco pode ser considerado um ser imaginário. Ao que tudo indica, ele é um homem comum.

Um sujeito qualquer, consciente de seus atos e impulsionado pela cultura machista das sociedades patriarcais. Diz-se isso, sem maiores elementos sobre a pessoa, porque este é, via de regra, o perfil dos criminosos sexuais: o de um rapaz que tira fotos no espelho do elevador, dá bom dia para a vizinha e pode ser boa gente no prédio. Um pai atencioso, marido zeloso, colega de trabalho gentil. Segundo Heleieth Iara Bongiovani Saffioti e Suely Souza de Almeida:

"Nunca se conseguiu traçar o perfil do agressor físico, sexual ou emocional de mulheres. Do ponto de vista sociológico, eles são cidadãos comuns, não só na medida em que têm, via de regra, uma ocupação e desempenham corretamente outros papéis sociais, mas também porque praticam diferentes modalidades de uma mesma violência estrutural. Se não apenas as classes sociais são constitutivas das relações sociais, estando neste caso também o gênero e a raça/etnia, não há razão para se buscarem características específicas dos agressores, pelo menos da perspectiva aqui assumida. A psicologia fez numerosas tentativas de detectar as especificidades do agressor, com resultado negativo. Ou seus instrumentos de mensuração do que considera anormalidade são insuficientes para alcançar esse objetivo, ou o agressor é normal. Do ângulo sociológico aqui esposado, não faz sentido procurar características individuais no agressor, quando a transformação de sua agressividade em agressão é socialmente estimulada [2]."

A notícia do estupro à parturiente jogou luz para a prática de crimes sexuais em instituições de saúde. Segundo o Intercept, "somente em nove estados brasileiros, foram registrados 1.734 casos do tipo entre 2014 e 2019. São 1.239 registros de estupros e 495 de casos de assédio sexual, violação sexual mediante fraude, atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor" [3], número que deve ser ainda maior se considerado todo o país e o alto índice de subnotificação desse tipo de crime.

Que contradição: aquele em quem a mulher deposita sua confiança pode abusar dela. Ver o conhecimento da área médica ser utilizado para ludibriar as vítimas ("confia em mim", devem dizer os perversos) é uma distorção tremenda. Difícil mensurar a quantidade de pacientes — enfermas, nas cirurgias, no parto, em exames com sedação — que, impotentes, tiveram seus corpos violados por quem jurou protegê-las.

No caso em questão, não é difícil supor que o anestesista tenha afirmado — como argumento de autoridade — que aquela dose exagerada de sedativo era necessária e que, ali, somente ele teria o domínio técnico. Pode-se imaginar que as próprias gestantes — ou as enfermeiras — tenham pensado que aquilo era grotesco demais para ser verdade. Decerto, as profissionais de saúde posicionaram o telefone para gravação, por suspeitarem que, sem provas, ninguém acreditaria naquela desconfiança abominável.

Em uma sociedade na qual os homens 1) adoram explicar algo óbvio para as mulheres, como se elas não fossem capazes de entender (mansplaining); 2) fazem com que elas se creiam equivocadas sobre determinado assunto ou sobre sua própria sanidade (gaslighting) e 3) não atribuem credibilidade à palavra feminina… é possível supor que as vítimas ou testemunhas, em um primeiro momento, não tenham sequer acreditado nelas próprias, o que dirá na possibilidade de êxito da acusação.

Não é à toa que a subnotificação dos crimes sexuais seja tão elevada. A pesquisa "Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde", produzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), indica que apenas 10% dos casos são registrados em sedes policiais e estima que, no mínimo, 527 mil pessoas sejam estupradas por ano no país [4]. Os dados oficiais já são alarmantes: no Brasil, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos — aproximadamente 47.646 casos em 2014 — segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública [5].

A vergonha, o sentimento de culpa, o medo de ser julgada por sua própria família, o fato de, muitas vezes, o autor da violência sexual ser conhecido da vítima, ou de seu âmbito familiar, ou até mesmo o tratamento recebido na delegacia e no hospital podem levar a mulher a não realizar o registro de ocorrência. É preciso coragem para denunciar casos de estupro, especialmente contra pessoas em posição de poder.

Afinal, é isso que no fundo está em jogo: o poder exercido pelos homens, sobre as mulheres. Não apenas pelo agente que pratica o crime de estupro, mas em todos os sistemas ou microssistemas, nos locais de trabalho, nos três Poderes da República, nas mais variadas áreas e profissões, inclusive no âmbito da medicina, ou da justiça.

No sistema de justiça criminal, por exemplo, é comum que a vítima, no decurso do processo, sinta-se desamparada e arrependida de ter levado em frente uma acusação de crime sexual, especialmente diante de atores bem mais "poderosos" do que ela, entendendo-se como "poder", o que ensina Foucault:

"O que caracteriza, por outro lado, o 'poder' que analisamos aqui, é que ele coloca em jogo relações entre indivíduos (ou entre grupos). Pois não devemos nos enganar: se falamos do poder das leis, das instituições ou das ideologias, se falamos de estruturas ou de mecanismos de poder, é apenas na medida em que supomos que “alguns” exercem um poder sobre os outros. O termo 'poder' designa relações entre 'parceiros' (entendendo-se por isto não um sistema de jogo, mas apenas — e permanecendo, por enquanto, na maior generalidade — um conjunto de ações que se induzem e se respondem umas às outras)" [6].

Não faltam evidências desse "poder dos homens sobre as mulheres". Em processos de estupro, é comum que o histórico sexual da vítima seja utilizado contra ela (um incentivo ao silêncio). Caso possua vida sexual ativa e liberal, a credibilidade de seu testemunho pode ficar comprometida. O passado do homem, contudo, não é levado em consideração em momento algum [7].

Segundo o estudo do Ipea, a cultura do machismo "termina legitimando e alimentando diversos tipos de violência, entre os quais o estupro" no Brasil, especialmente, por dois caminhos: "pela imputação da culpa pelo ato à própria vítima (ao mesmo tempo em que coloca o algoz como vítima); e pela reprodução da estrutura e simbolismo de gênero dentro do próprio Sistema de Justiça Criminal, que vitimiza duplamente a mulher" [8].

A verdade é que, nessa sociedade, a mulher parece estar sempre errada, e sob julgamento. Recentemente, vimos uma menina, aos 10 anos, ser impedida de realizar o aborto legal, autorizado em caso de estupro. Uma atriz, vítima do mesmo crime, teve o parto e a adoção divulgados, contra a sua vontade. Não importa o que as mulheres façam, elas sempre figuram como culpadas e são desrespeitadas, em todos os seus direitos, notadamente o da privacidade.

É como se os corpos, as histórias, as vidas das mulheres e até a sua própria fé fossem públicas. Não são.

Nem mesmo agora, durante a divulgação do caso de estupro no Hospital da Mulher, a vítima foi preservada: a cada veiculação da notícia, o vídeo do ato criminoso era reproduzido a mais não poder, em absoluta violação à sua privacidade e imagem.

A cultura do machismo ainda está impregnada na sociedade brasileira (e no mundo) em todas as esferas e se reflete não só nas formas de violência — sexual, obstétrica, doméstica, psicológica — mas em outros aspectos que, mais sutis, reforçam a ideia de soberania do poder masculino sobre as mulheres.

O crime de estupro possui uma das mais altas penas do Código Penal. Quem o pratica, de modo geral, tem ciência da proibição legal, e comete o delito, mesmo assim. Prevenir sua prática, portanto, implica em acabar com a cultura que alimenta, estimula e acoberta esse tipo de crime.

É indispensável falar em políticas de segurança pública para mulheres, mas, também, em educação de gênero nas escolas, igualdade salarial entre os sexos, maior participação feminina na política e nos cargos de poder, melhor divisão do trabalho doméstico. É dizer não para a piada machista, sexista, misógina que parece inofensiva. Não é um caminho fácil, mas é o único remédio para uma sociedade que se pretenda, verdadeiramente, civilizatória e respeitadora dos direitos das mulheres. Estamos na barbárie, precisamos sair dela.


[1] SMART, Carol. Law, Crime and Sexuality. Essays in Feminism. Sage Publications.1995, p 117.

[2] SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani e ALMEIDA, Suely Souza de. Violência de gênero. Poder e Impotência. Ed. RevinteR. Rio de Janeiro, 1995, p. 138.

[4] CERQUEIRA, Daniel e COELHO, Danilo de Santa Cruz. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Brasília, março de 2014. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf.

[5] Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. ISSN 1983-7364. Ano 9, 2015. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/anuario_2015.retificado_.pdf.

[6] FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. MICHEL FOUCAULT. Uma Trajetória Filosófica.Para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2a. Edição Revista. Trad. Vera Portocarrero e Gilda Gomes Carneiro. Introd: trad. Antonio Cavalcanti Maia. Rev. Vera Portocarrero. Coleção Biblioteca de Filosofia. Coordenação editorial: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 9.

[7] SMART, Carol. Op. Cit., p. 122.

[8] CERQUEIRA, Daniel e COELHO, Danilo de Santa Cruz. Op. Cit., p. 02.

Autores

  • é advogada criminal, mestre em Direito pela UFRJ, especialista em Direitos Humanos pela mesma instituição, professora convidada da PUC-Rio e da FGV-Rio, vice-presidente da Abracrim-RJ e conselheira da OAB-RJ. Foi presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro e coordenadora do Fórum Nacional de Conselhos Penitenciários.

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