Tribunal do Júri

A utilização dos antecedentes do réu no plenário: três fatores impeditivos

Autores

  • Marcos Eberhardt

    é doutorando e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS professor da Escola de Direito da PUC-RS e sócio do escritório do Marcos Eberhardt Advogados Associados.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

2 de julho de 2022, 8h02

Apesar da importância histórica da fixação constitucional de competência, garantindo o julgamento do acusado pela prática dos crimes dolosos contra a vida por seus pares, as decisões do conselho de sentença situam-se extremamente vulneráveis a influxos externos ao caso penal (como já abordamos em outras oportunidades, o júri sofre intensamente com essas agruras processuais, mas não é algo exclusivo a ele). Distante do dever de fundamentação e orientado pelo livre convencimento ou, em alguns pontos, pela íntima convicção [1], o jurado pode julgar norteado por estereótipos, mostrando na decisão seu preconceito em relação à raça, cor, etnia, religião, aparência ou profissão do réu (repita-se: ocorrência não exclusiva no júri).

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É nesse contexto que se discute a exploração dos antecedentes criminais e sociais do acusado, como argumento de autoridade, pela acusação em plenário. Foi na mesma frequência que a Lei nº 11.689/08 incluiu o artigo 474, § 3º, no Código de Processo Penal, vedando o uso de algemas em plenário, e conferiu nova redação ao artigo 478, indicando como causa de nulidade as referências que possam configurar argumento de autoridade (pronúncia e decisões posteriores; uso de algemas; e silêncio do acusado), deixando, no entanto, de vedar expressamente a utilização dos antecedentes.

Atualmente, os tribunais, majoritariamente, admitem o emprego da folha de antecedentes criminais como integrante da argumentação acusatória, nos debates processuais e, da mesma forma, perante os jurados. Para além do equívoco em julgar-se o autor, e não o fato, pelos menos três outros fatores informam que os antecedentes do acusado não devem integrar o conteúdo acusatório dos debates.

Primeiro. Grave violação à presunção de inocência no seu viés regra de tratamento em que são abordadas referências em curso, sem que se tenha decisão condenatória transitada em julgado.

Segundo. A plenitude de defesa estará garantida apenas quando o debate e a determinação dos fatos considerarem as provas produzidas em contraditório.

Terceiro. A lealdade processual exige que a acusação utilize apenas informações que tenham relação com a imputação penal de um fato descrito na pronúncia.

No que tange à presunção de inocência, em diversos casos, ainda que haja impugnação defensiva, a acusação se vale de anotações referentes a procedimentos de investigação, termos circunstanciados e até a boletins de ocorrência, todos caracterizados pela ausência do início de uma acusação formal em juízo.

Noutro aspecto, ainda que seja considerado como possível à defesa contraditar os antecedentes do acusado, mostrando cada um dos procedimentos, o ponto nevrálgico situa-se no argumento de autoridade. A defesa não conseguirá desfazer o imaginário dos jurados ao redor da suposta tendência do acusado em delinquir. Deve considerar-se ainda a dificuldade da defesa, em curto tempo, em contextualizar cada um dos procedimentos indicados na folha de antecedentes, sem falar no espaço exíguo que sobrará para a defesa do fato em plenário. A impossibilidade de contraditório pela via recursal também é relevante, já que não seria dado à defesa demonstrar a influência dos antecedentes na tomada de decisão pelo Conselho de Sentença.

Além de tudo isso, a referência aos antecedentes não representa versão fática de acusação, já que relação alguma tem com a imputação delimitada na pronúncia, tornando, portanto, um argumento meramente retórico. Em sequência, como sabido, os eventuais antecedentes criminais endereçam-se tão somente à aplicação da pena (artigo 59, CP) o que foge do grau de competência adstrito aos jurados, conforme estatui o artigo 482, caput, CPP.

Não se pode esquecer que o progresso do contraditório e seu reconhecimento pela moderna caracterização da experiência democrática do processo judicial devem ser perfilhados pelo conceito de aprimoramento dos métodos e condições do debate [2], para ambicionar sua função de construção de conhecimento, de determinação da verdade procedimental [3] (leia-se, probatória) e, portanto, para o exercício de influência [4] e estruturação da decisão penal como instrumento de compreensão dos argumentos probatórios exibidos na dialética processual.

Como se não fosse suficiente, é preciso dizer ainda que o contraditório está diretamente conectado ao um processo penal ético, que exige uma posição paritária entre a acusação e a defesa [5]. Quando a decisão do caso penal for tomada por presunção, pode se dizer que: "o alcance da paz jurídica não se concretiza" [6]. É possível apontar ainda que a própria licitude do uso dos antecedentes como prova — e muitas das vezes dissociados da imputação fática — é questionável, considerando-se o potencial desleal de influência no jurado.

O Superior Tribunal do Justiça já compreendeu pela vedação absoluta da menção aos antecedentes criminais do acusado durante o julgamento em plenário, a exemplo do recurso em Habeas Corpus nº 94.434/RS [7]. Com acerto, a Corte Superior referiu não haver proibição de juntada de documentos após a pronúncia, tais como a folha de antecedentes do acusado, mas que esta não deveria ser objeto de debate durante o julgamento, sob pena de formação de culpa com base na figura do autor, e não do fato. Infelizmente, este entendimento logo foi superado, formando-se posicionamento uníssono nas cortes superiores pela taxatividade do artigo 478 do Código de Processo Penal.

Apesar desse panorama, o entendimento de que o uso de documentos contendo infrações penais pretéritas do réu configura violação ao contraditório foi trazido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na apelação-crime nº 70077697415 [8]. O julgamento pelo júri popular foi considerado nulo porquanto o Ministério Público, ao ler as informações constantes dos registros de ocorrência perante a Polícia Civil, buscou "sacramentar a suposta personalidade desviada da parte acusada", ao invés de ater-se aos fatos imputados, objeto do caso penal. Em seu voto, o desembargador Diógenes Ribeiro assentou que não é "[…] cabível utilizar elementos informativos que, eventualmente, por constarem de informações e investigações policiais, sem qualquer base firmada no princípio do contraditório e que, eventualmente, podem até conter informações absurdamente incorretas, sirvam para emulações ou convencimento no sentido condenatório" [9].

No entanto, recentemente, o Supremo Tribunal Federal entendeu, no recurso em Habeas Corpus nº 213.705/SC [10], pela inexistência de ilegalidade no julgamento em que o representante do Ministério Público leu, em plenário, folha de antecedentes criminais de homônimo do réu. Ou seja, o acusado era primário, mas seu homônimo, não. E, com isto, restou condenado. A Corte Suprema, neste caso, entendeu que havia prova nos autos capaz de "justificar a opção dos jurados", e que o artigo 478 do Código de Processo Penal seria taxativo, não abrangendo a menção aos antecedentes criminais.

Em rápida conclusão ao alerta sobre práticas não dirigidas à busca de uma decisão pautada pelos elementos de prova e sim com proximidade à argumentação retórica, podemos afirmar que três parâmetros constitucionais, de identificação de um processo justo, são violados quando da utilização da folha de antecedentes criminais do acusado em plenário do júri:

1º. Presunção de inocência (quando o antecedente não está caracterizado pelo trânsito em julgado da decisão condenatória);

2º. Plenitude de defesa (uma vez que o debate transcende ao quadro probatório);

3º. Lealdade processual (através de uma referência ética ao devido processo penal traçada por fator objetivável à discussão).

 


[1] LOPES JR., Aury; STRECK, Lenio Luiz. "Não é admissível que, em pleno século 21, sigamos julgando por íntima convicção". [Entrevista concedida a] HIGÍDIO, José; ALVES, Mateus Silva. Revista Consultor Jurídico, 24 jan. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-24/entrevista-lenio-streck-aury-lopes-jr-professores-advogados. Acesso em: 17 jun. 2022.

[2] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade II. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 27. E não apenas pela presença de um melhor argumento, como seguem as críticas à teoria do discurso racional de Habermas. Cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. 4ª ed. Trad. António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.p. 411.

[3] PICARDI, Nicola. Il principio del contraddittorio. In Rivista di Diritto Processuale. Fasc. 3, 1998, p. 681.

[4] Neste sentido, Cabral observa o contraditório como a compreensão do direito de influência, expressão da democracia deliberativa no processo, em que fornece elementos para interferência nos atos decisórios do Estado a partir de discussões argumentativas. Cf. CABRAL, Antonio do Passo Cabral. Coisa Julgada e Preclusões Diâmicas. Entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. Niterói: JusPodivm, 2013, p. 316s.

[5] VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Cadeia de Custódia da Prova. 3. ed., Coimbra: Ebook Almedina, 2021. p. 43.

[6] VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Processo Penal. 3. ed., rev. atual. e aum. Coimbra: Almedina, 2010. t. 1. p. 201.

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso ordinário constitucional em Habeas Corpus nº 94.434/RS. Recorrente: Sergio Bechaira. Recorrido: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Relator: min. Reynaldo Soares da Fonseca. 5ª Turma. Brasília, 13 mar. 2018. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201800209061&dt_publicacao=21/03/2018. Acesso em: 17 jun. 2022.

[8] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação-crime nº 70077697415. Apelante/apelado: Ministério Público. Apelante/apelado: E.L.C. Terceira Câmara Criminal. Porto Alegre, 22 ago. 2018.

[9] BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação-crime nº 70077697415. Apelante/apelado: Ministério Público. Apelante/apelado: E.L.C. 3ª Câmara Criminal. Porto Alegre, 22 ago. 2018.

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental no recurso ordinário constitucional em habeas corpus nº 213.705/SC. Recorrente: Eduardo de Medeiros. Recorrido: Ministério Público Federal. Relatora: min. Cármen Lúcia. 1ª Turma. Brasília, 23 mai. 2022. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=760917164. Acesso em: 17 jun. 2022.

Autores

  • é advogado criminalista, sócio no escritório Marcos Eberhardt Advogados Associados, doutor e mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), especialista em Ciências Penais pela PUC-RS, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, da Escola de Direito da PUC-RS, professor adjunto da graduação da PUC-RS, coordenador da Especialização em Ciências Penais e da Especialização em Direito Penal e Criminologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS UOL Ed.Tech) e do Núcleo de Prática Jurídica da Escola de Direito da PUC-RS.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

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