Interesse Público

Disfarçando as evidências na renovada Lei de Improbidade Administrativa

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20 de janeiro de 2022, 8h00

No dia 13 de marco de 2020, publiquei nesta coluna o artigo "A indisponibilidade de bens nas ações de improbidade e a (in)utilidade das leis" [1], cujo conteúdo dava notícia da afetação, em 28/2/2020, ao rito dos recursos repetitivos no STJ, de dois recursos especiais, o REsp 1.862.792 e o REsp 1.862.797, que tratariam da possibilidade de a medida cautelar de indisponibilidade de bens na ação de improbidade administrativa, abranger, além do dano, a potencial multa civil a ser aplicável como pena ao final da demanda.

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Em agosto de 2021, ambos os recursos foram apreciados pela 1ª Seção do STJ, dando ensejo ao Tema Repetitivo 1.055 da jurisprudência daquele sodalício, aprovando a seguinte tese: "É possível a inclusão do valor de eventual multa civil na medida de indisponibilidade de bens decretada na ação de improbidade administrativa, inclusive naquelas demandas ajuizadas com esteio na alegada prática de conduta prevista no art. 11 da lei 8.429/1992, tipificador da ofensa aos princípios nucleares administrativos".

A decisão corroborou a tendência jurisprudencial existente no STJ, no sentido de compreender que a medida de indisponibilidade de bens prevista no artigo 7º, caput e parágrafo único, da Lei 8.492/92 (antes da sua reforma pela Lei 14.230/21), configurava hipótese de tutela de evidência, tornando desnecessária a presença do periculum in mora.

Segundo a fundamentação utilizada no caso citado, "o sistema da Lei de Improbidade Administrativa admitiu, expressamente, a tutela de evidência. O disposto no art. 7º da aludida legislação, em nenhum momento, exige o requisito da urgência, reclamando, apenas, para o cabimento da medida, a demonstração, numa cognição sumária, de que o ato de improbidade causou lesão ao patrimônio público ou ensejou enriquecimento ilícito".

Assim sendo, para a maioria do STJ, "inegável que a medida cautelar instituída pela Lei de Improbidade Administrativa apresenta-se com caráter especial – que realça a necessidade de segurança jurídica, não estando submetida, por essa razão, à compreensão geral das cautelares, sob pena de serem suplantados os próprios propósitos da tutela a ser alcançada pela ação de improbidade administrativa".

Tal entendimento jurisprudencial, sobre a natureza da tutela de evidência na Lei 8.429/92 (redação originária), pacificou-se mercê do Tema 701 do STJ (REsp 1.366.721/BA), cujo teor expressou que: "É possível a decretação da indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro" [2].

O advento da Lei 14.230/21 tende a descortinar novos horizontes quanto a esta temática. Sobre retirar a ação de improbidade administrativa do campo das ações civis públicas [3], reconhecendo sua natureza "penaliforme", o legislador da Lei 14.230/21 terminou por direcionar dispositivos legais específicos para produzir superação na jurisprudência do STJ acerca da medida de indisponibilidade de bens dos réus.

Nesse sentido, o antigo artigo 7º da Lei 8.429/92 foi totalmente repaginado pelo legislador (cuida agora de representação ao Ministério Público), e a medida de indisponibilidade de bens migrou para o artigo 16 da Lei 8.429/92, apresentando com nova dimensão normativa, a colidir frontalmente com a jurisprudência pacificada do STJ, notadamente com os Temas Repetitivos 701 e 1.055.

De acordo com as novas disposições do artigo 16 e seus parágrafos da Lei 8.429/92, com a redação dada pela Lei 14.230/21 (LIA), restou afastada a natureza jurídica de tutela de evidência especial da medida de indisponibilidade de bens na ação de improbidade, seja porque seu deferimento apenas se pode dar com a demonstração no caso concreto do perigo de dano irreparável ou com a presença de risco ao resultado útil do processo (§3º do artigo 16), não podendo a urgência ser presumida (§4º do artigo 16, parte final), seja porque o §8º do artigo 16 dispõe que se deve aplicar a ela, no que for cabível, o regime da tutela provisória de urgência (tutela de urgência cautelar), nos exatos termos do artigo 300 do Código de Processo Civil) [4].

Como consequência, qualificando-se a medida cautelar de indisponibilidade pelo caráter de reversibilidade (em face da sua natureza cautelar), passando o legislador a exigir a presença dos requisitos inerentes à tutela de urgência — probabilidade de dano e perigo na demora — para a respectiva decretação, a persistência de medidas desse tipo nas ações de improbidade administrativa em andamento dependerá da comprovação contemporânea e simultânea de ambos os requisitos, pena de indeferimento ou de reversão da medida, neste último caso se decretada antes da vigência da Lei 14.230/21.

Relativamente à questão da inserção do montante da multa potencial na medida de constrição, o §10 do artigo 16 da LIA foi enfático ao prescrever que a tutela cautelar recairá apenas sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita.

As alterações da LIA pela Lei 14.230/21 têm uma dimensão reorientadora inegável, afetando interpretações que se firmaram sob a égide da redação originária da Lei 8.429/92. O potencial de mudança do status quo em matéria de improbidade administrativa é bastante expressivo, apresentando-se tal desiderato como característica central de uma nova e legítima opção política do legislador democrático.

Nesse sentido, os impactos da nova Lei 14.230/21 sobre as medidas cautelares de indisponibilidade de bens são evidentes. Desnecessário procurar por novas evidências…

De toda sorte, para quem continua a acreditar que assim não deve ser, talvez a música: "Vou negando as aparências. Disfarçando as evidências. Mas pra que viver fingindo. Se eu não posso enganar meu coração?…".

 


[1] FERRAZ, Luciano. A indisponibilidade de bens nas ações de improbidade e a (in)utilidade das leis. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-ago-13/interesse-publico-indisponibilidade-bens-improbidade-inutilidade-leis. Acesso em 18/2/2022.

[2] Convém verificar que o julgamento do RE 1.366721/BA se deu sob a égide do CPC/73, que embora já previsse hipóteses de deferimento de tutela provisória sem exigência de periculum in mora (artigos 273, II, e 1.102-A), não previa a figura da tutela de evidência, tampouco a definição dos seus requisitos. O CPC/15 trouxe regramento específico para a tutela de evidência, prevendo requisitos mais enfáticos para a sua concessão. Em outras palavras, o novo código manteve a dispensa do periculum in mora, mas tratou de definir a forma de demonstração do fumus boni iuris para fins de deferimento da medida (artigo 311, especialmente os incisos II e IV), o que simplesmente passou ao largo do voto de condução do acórdão do Tema 701.

[3] Nesse sentido, dois artigos publicados na ConJur, a ver: SANTOS, Alexandre da Silva Medeiros. Sobre o novo regime de prescrição da LIA: diálogo com o professor Tiago Martins, Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-dez-26/opiniao-regime-prescricao-lei-improbidade. Acesso em 18/1/2022. MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt. NÓBREGA, Guilherme pude da. A separação entre ação de improbidade e ação civil pública. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-dez-17/improbidade-debate-separacao-entre-acao-improbidade-acao-civil-publica. Acesso em 18/2/2020.

[4] A tutela provisória no CPC pode se fundamentar em urgência (satisfativa ou cautelar) ou evidência (artigo 294 do CPC). "As tutelas provisórias de urgência (satisfativa ou cautelar) pressupõem a demonstração de 'probabilidade do direito' e do 'perigo da demora' (artigo 300 do CPC). A tutela provisória de evidência pressupõe a demonstração de que as afirmações de fato estejam comprovadas, tornando o direito evidente. O artigo 311 do CPC, prevê quatro hipóteses de tutela de evidência satisfativa" (DIDIER JUNIOR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandre de. Curso de Direito Processual Civil, 12ª ed., Salvador Juspodium, 2017, Vol. 2, p. 648).

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