Improbidade em Debate

A separação entre ação de improbidade e ação civil pública

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17 de dezembro de 2021, 8h00

Bastante frequente, no passado recente, o uso da ação civil pública para formulação de pedidos de caráter sancionatório sob a rubrica da Lei de Improbidade. Essa subversão, chancelada pela prática, sempre contou com nossa crítica, eis que os instrumentos, em nossa visão, ostentavam escopos distintos.

Spacca
É que a Lei nº 7.347/1985 criou espécie de ação coletiva em defesa de interesses difusos e coletivos de natureza indivisível, a reger-se pelo rito especial nela previsto. A Lei de Improbidade, de sua vez, regulamentando a regra constitucional do §4º do artigo 37 da Constituição, estabeleceu regras de Direito material e de Direito processual, dispondo sobre rito e legitimidade próprios.

À primeira vista, seria trivial a cisão. A gênese da fusão, sem embargo, parece dever-se a um raciocínio que acabou por contemplar, com a transindividualidade da ação civil pública e com a proteção ao patrimônio público, a defesa punitiva do erário.

O ruído não foi sem fundamento face à diversidade de perspectivas. Ilustrando, Arnaldo Rizzardo tratou como banal a relação continente-conteúdo a justificar a sobreposição entre as pretensões fundadas em improbidade e o veículo ação civil pública:

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"(…) O objeto da ação civil de improbidade está na proteção de bens e princípios públicos, como o erário, a moralidade, a probidade, e a decência. Ora, tais entes enquadram-se na categoria de interesses difusos, já que não restritos a uma ou várias pessoas, e sim a todos quantos se relacionam com a Administração Pública" [1].

Hugo Mazzilli, de sua vez, concedeu haver identidade entre os bens jurídicos tutelados por um e outro institutos, mas asseverou ser ela imparcial, e não de uma relação necessária e peremptória:

"Tomada, pois, a acepção lata de patrimônio público, nem todos os interesses que o integram são transindividuais. Assim, p. ex., um valor estritamente econômico, de que seja titular a Fazenda Pública, sem dúvida deve ser considerado patrimônio público, como um crédito fiscal, mas não é nem interesse difuso, nem coletivo, nem individual homogêneo" [2].

Nesse cenário de dissonâncias, entendíamos que a marca distintiva entre ação civil pública e ação de improbidade não haveria de residir na transindividualidade ou na classificação do bem jurídico remotamente tutelado (direito difuso). Ao contrário, o elemento preponderante, segundo sempre se nos afigurou, foi a abordagem imprimida por uma e outra tutelas, isto é, o enfoque dado por cada uma das vias, como muito bem percebido pelo saudoso ministro Teori Albino Zavaski:

"O ponto de referência, aqui (ação civil pública), já não é o de preservar ou recompor o patrimônio público ou os atos da administração (objetivo primordial da ação civil pública e da ação popular), mas sim, fundamentalmente, o de punir os responsáveis por atos de improbidade. (…) Trata-se, portanto, de ação com caráter eminentemente repressivo, destinada, mais que a tutelar direitos, a aplicar penalidades. Sob esse aspecto, ela é marcadamente diferente da ação civil pública e da ação popular" [3].

Não destoou a percepção de Calil Simão, novamente a realçar, na improbidade, o viés sancionador:

"(…) A ação de improbidade administrativa tem a função principal de punir o corrupto na Administração Pública e uma função secundária, de ressarcimento do erário. Esse desiderato a distingue da ação popular e da ação civil pública. Impossível o autor de uma ação popular cumular pedido de natureza punitiva, tal como suspensão dos direitos políticos. O procedimento é incorreto e falta a ele legitimidade para o pedido. De igual forma, não pode o Poder Judiciário apreciar pedido de natureza punitiva nos moldes da Lei da Ação Civil Pública. Embora o Ministério Público seja legitimado extraordinário (Lei nº 8.429/1992, artigo 17), as sanções só podem ser aplicadas mediante procedimento especial rígido" [4].

É dizer que a ação civil pública, ao ter como norte principal a prevenção e a reparação de direitos muito caros, observava um desenho processual que favorecia e instrumentalizava essa proteção de modo bastante sofisticado, inclusive espraiando efeitos da coisa julgada. Já no que toca à ação de improbidade, de cariz fundamentalmente punitivo, o poder estatal haveria de reconhecer no procedimento limites concretizadores dos direitos fundamentais de réu sujeito a pesadas sanções.

A questão não era, pois, cosmética: ao mesclar rito que impulsiona pretensão com procedimento que deveria atenuar a tenacidade punitiva estatal, produziram-se em nosso senti muitos dos problemas práticos que macularam a improbidade no passado, a exemplo do in dubio pro societate.

Sem embargo de tudo isso, ainda que se entendesse haver ali uma miscigenação justificada, fato é que a reforma empreendida pela Lei nº 14.230/2021 eliminou muitos dos traços comuns que poderiam sugerir uma aproximação entre ação civil pública e ação de improbidade: a legitimidade, antes partilhada por pessoas jurídicas de direito público e pelo Ministério Público, reduziu-se a esse último; e os procedimentos, tidos antes, ambos, como especiais, observaram na improbidade a migração para o rito comum (artigo 17, caput).

Mais impermeabilidade à mudança poderia sugerir que a mescla ainda se faria possível à vista da cumulação de pedidos e da norma inserta no artigo 327, §2º, do Código de Processo Civil. Nada obstante, a par de os ritos nos parecem absolutamente incompossíveis, o artigo 17-D da Lei de Improbidade, com redação dada pela reforma, pôs fim ao debate ao rezar, realçando precisamente a diferente de fundamentos a erigir uma e outra investidas, que a "ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos".

Daí que, malversada a ação de improbidade para pretensão que não eminentemente sancionadora, caberia ao juízo, à luz do artigo 17, §16, realizar conversão, aplicando fungibilidade a convolar em civil pública a original ação de improbidade administrativa. Que parâmetro orienta esse crivo? Não será, como dissemos, a transindividualidade, e, sim, a causa de pedir próxima a embasar o pedido: se decisivamente punitivo, correto o uso da improbidade; se preponderantemente preventivo ou reparador, o caminho é a alternância para ação civil pública.


[1] RIZZARDO, Arnaldo. 2ª ed. Ação civil pública e ação de improbidade administrativa. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2012, p. 368.

[2] MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 246.

[3] ZAVASKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 7ª ed. São Paulo: RT, 2017, p. 101.

[4] SIMÃO, Calil. Improbidade administrativa. Teoria e prática. 2ª ed. Leme: JHMizuno, 2014, p. 354.

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