Opinião

Sobre o novo regime de prescrição da LIA: diálogo com o professor Tiago Martins

Autor

  • Alexandre da Silva Medeiros Santos

    é advogado graduado em Direito pela UFBA especialista em Direito Público ex-subprocurador-geral municipal professor de Direito Administrativo na pós-graduação em Direito Público municipal da UCSAL e em cursos para concursos.

26 de dezembro de 2021, 14h09

Em artigo publicado na ConJur em 03/11/21 [1] , Tiago Martins defendeu a irretroatividade do novo regime prescricional contemplado pela Lei 14.230, que entrou em vigor dia 26/10/2021, alterando a Lei de Improbidade Administrativa  LIA (Lei 8.429/92). Em síntese, o citado articulista comunga dos argumentos apresentados pelo MPF, na Nota Técnica nº 01/2021, emitida pela 5ª CCR, em 12/11/2021. Segundo Martins:

i) o estabelecimento da data do fato como marco inicial da fluência do prazo prescricional é inadequada, porque inobserva a teoria actio nata, inspirada no artigo 25, da Lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção), e destoa da orientação do artigo 142, §1º, da Lei 8.112/90, que prevê como termo a quo da prescrição a "data em que o fato se tornou conhecido";

ii) o prazo máximo de suspensão da prescrição (180 dias), decorrente da abertura da investigação por meio de inquérito civil ou de processo administrativo, é inferior ao tempo limite para a conclusão da investigação (365 dias com possibilidade de prorrogação), "o que não ocorre sequer na seara penal, cercada de maiores garantias, em que há de se observar unicamente a prescrição geral". Assim, Martins critica o fato de que "a prescrição é suspensa apenas por até 180 dias, não pelo prazo total da investigação";

iii) o prazo de prescrição intercorrente (quatro anos) não é suficiente, pois a "média de tempo entre o ajuizamento e o julgamento da ação de improbidade é de quatro anos e três meses" e, com a nova lei, a instrução teria ficado ainda mais complexa;

iv) a prescrição ordinária (oito anos — artigo 23, caput, LIA) seria "um instituto de direito material" e, por este motivo, não pode retroagir, devendo "preponderar a garantia do ato jurídico perfeito e a segurança jurídica que lhe inspira (artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal)";

v) a prescrição intercorrente (artigo 23, § 4º, LIA) teria "índole processual". Logo, "é de ser reconhecida sua aplicação imediata aos processos em curso (artigo 14 do CPC), no que tange a atos processuais não concluídos". Para Martins, como a prescrição intercorrente da nova LIA se reporta a fases processuais, caso a fase respectiva já tenha iniciado, não se pode aplicar a ela a prescrição intercorrente, de modo que "para processos em curso em 26 de outubro, é inviável aplicação retroativa da Lei 14.230/2021, pelo que não se há de exigir que esses processos sejam julgados em quatro anos a contar do ajuizamento"; cogita, no entanto, a possibilidade de aplicação imediata da prescrição intercorrente, mesmo em relação às fases processuais já iniciadas, desde que a contagem seja realizada a partir da entrada em vigor da nova LIA.

Apesar da didática exposição contrária à retroatividade do novo regime prescricional da LIA, os argumentos utilizados por Martins não merecem prosperar, conforme será demonstrado a seguir:

i) prescrição é matéria que se submete à reserva legal. Portanto, tendo sido feita uma opção pelo legislador, ainda que não se concorde com ela, não é possível desconsiderá-la, sob o argumento de que ela é "inadequada", "teoricamente inapropriada" ou "destoa de estatutos que também miram o fenômeno da corrupção". O Código Penal, por exemplo, em especial o seu Título XI ("Dos Crimes contra a Administração Pública"), integra o sistema normativo de combate à corrupção e, nem por isso, o curso da prescrição da pretensão punitiva inicia apenas com o conhecimento do ilícito pelo titular da ação; diversamente, o termo a quo da prescrição no que tange aos crimes contra a administração pública inicia a partir da prática do fato, independentemente de seu conhecimento. Deste modo, é possível argumentar que se até no caso do Direito Penal (DP), em tese mais grave que o Direito Administrativo Sancionador-DAS (que engloba a LIA), a regra é a data da prática do fato, então não será proporcional que o tratamento conferido à prescrição, em relação aos atos de improbidade administrativa, seja mais gravoso do que aquele dado pelo próprio DP aos ilícitos criminais. Conforme o novo artigo 23, caput, da Lei 8.429/92, o prazo prescricional inicia "a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência", assim como acontece em relação às infrações criminais (artigo 111, incisos I e III, CP), e é com essa realidade que devemos lidar. Houve uma clara intenção do legislador de aproximar os dois sistemas (improbidade e criminal) [2] e essa opção precisa ser respeitada, sob pena de ofensa ao regime democrático;

ii) o argumento de que o estabelecimento de um prazo máximo para que a prescrição fique suspensa é uma garantia maior ao réu do que aquelas previstas na seara penal é, data venia, flagrantemente contraditório, porque, ao contrário do que inferiu Martins, não houve um tratamento mais favorável ao réu na ação de improbidade em relação ao DP; pelo contrário, como o próprio articulista afirmou, há de se observar, na seara penal, "unicamente a prescrição geral", não havendo, portanto, suspensão da prescrição com a instauração de investigação. A previsão de suspensão da prescrição, constante do artigo 23, §1º, da LIA, é medida mais desfavorável ao réu. Para o réu, por óbvio, seria melhor que o curso da prescrição continuasse correndo sem interrupções ou suspensões, de modo que, neste ponto, o regime da improbidade é mais grave que o DP, o qual não prevê essa suspensão. No entanto, uma vez aplicada, a suspensão da prescrição não permanece, necessariamente, durante todo o período da investigação, pois há muito é consolidada a jurisprudência no sentido de limitar o tempo máximo de suspensão da prescrição decorrente de investigação administrativa. Em relação, p. ex., aos servidores públicos federais, malgrado o §3º, do artigo 142, da Lei 8.112/90, estipule que a "abertura de sindicância ou a instauração de processo disciplinar interrompe a prescrição, ATÉ A DECISÃO FINAL PROFERIDA POR AUTORIDADE COMPETENTE", o STJ, que até já sumulou o tema [3], e o STF [4] consolidaram a jurisprudência no sentido de que a paralisação da prescrição não está vinculada ao final da investigação administrativa, aplicando-se o prazo máximo de interrupção de 140 dias, sem embargo da investigação poder continuar após esse prazo. Logo, ao estipular um prazo máximo para a suspensão da prescrição, a Lei 14.230/21 não discrepou da jurisprudência firmada sobre o assunto;

iii) a afirmação de que o prazo de quatro anos não é suficiente, porque a média entre o ajuizamento e o julgamento da ação de improbidade é de quatro anos e três meses, não autoriza o descumprimento da lei; eventuais insurgências devem ser dirigidas ao Legislativo, não cabendo ao Judiciário estabelecer novo prazo, usurpando a competência legislativa. Ademais, o argumento, data venia, também parece ser contraditório, pois se o prazo médio até o julgamento é de "quatro anos e três meses", isso significa que há muitos processos que são julgados em menor tempo, enquanto outros em maior tempo. Cabe, dessa forma, ao MP e ao Judiciário aprimorarem, cada vez mais, as suas competências e rotinas, de modo a cumprirem os prazos legais, não podendo o ônus da demora recair sobre os ombros dos jurisdicionados, mormente em face do inc. LXXVIII, artigo 5º, da CF ("razoável duração do processo");

iv) a natureza de direito material da prescrição, em vez de servir como justificativa para a não aplicação retroativa da nova LIA, sob a alegação de proteção ao ato jurídico perfeito e à segurança jurídica, deve funcionar, justamente, para o efeito oposto, ou seja, a sua aplicação retroativa, exatamente como ocorre no DP, em face da previsão do inc. XL, do artigo 5º, da CF, que não se limita ao ilícito criminal, estendendo-se a todo o Direito Sancionador, inclusive o DAS, conforme exaustivamente reconhecido pelo STJ [5] . Ademais, cumpre registrar que o anteprojeto elaborado pela Comissão de Juristas, que deu origem à Lei 14.230/21, previu a inclusão na LIA do artigo 23-C, dispondo que "o prazo prescricional a que se refere o artigo 23 desta lei aplica-se apenas aos fatos ocorridos após a sua vigência". Este dispositivo, todavia, foi descartado pela Câmara, o que deixa evidente que a intenção do Legislativo foi aplicar o novo regime de prescrição aos fatos ocorridos antes da vigência da nova lei. Como se não bastasse, a Emenda nº 40 ao PL 2.505/2021 no Senado, que previa a aplicação integral das disposições do novo texto legal aos processos em andamento, não foi acolhida pela CCJ, sob o argumento de que "já é consolidada a orientação de longa data do Superior Tribunal de Justiça, na linha de que, 'considerando os princípios do Direito Sancionador, a novatio legis in mellius deve retroagir para favorecer o apenado’'(Resp nº 1.153.083/MT, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 19/11/2014)". Ou seja, a Emenda nº 40 foi rejeitada não pela discordância com o seu conteúdo, mas por ela ter sido considerada desnecessária. Aplica-se ao caso a lição de Carlos Maximiliano, no sentido de que "se um preceito figurava no Projeto primitivo e foi eliminado, não pode ser deduzido, nem sequer por analogia, de outras disposições que prevaleceram, salvo quando a supressão se haja verificado apenas por considerarem-no desnecessário ou incluído implicitamente no texto final" [6] ;

v) Por fim, o argumento de que a prescrição é de natureza processual e por esse motivo, nos termos do artigo 14, do CPC, não deve retroagir é, no mínimo, bastante inusitado. Isso porque Martins conseguiu uma verdadeira proeza hermenêutica ao concluir que o novo regime prescricional não retroage seja porque, segundo ele mesmo aduz, seria tema de direito material, seja porque seria tema de direito processual. Isto é, conforme Martins, as novas regras de prescrição, caso benéficas, não retroagem porque são de direito material e também não retroagem porque são de direito processual  em verdade, o que parece é que, para ele, independentemente da natureza da prescrição, ela nunca irá retroagir. Sucede que qualquer paralelo em relação ao tratamento da prescrição na LIA há de ser feito com o DP, ramo integrante do Direito Sancionador, assim como o DAS, e não com qualquer outro ramo do Direito. Neste contexto, Luciano Ferraz, em artigo publicado no ConJur [7], ensina que as ações de improbidade são ações judiciais de "colorido penal", que se socorrem de princípios hauridos do Direito Criminal e Processual Criminal, até porque tocam no âmago de direitos e liberdades individuais dos cidadãos (patrimônio, trabalho, honra); seriam ações "penaliformes", subordinadas muito mais de perto à "principiologia" típica do Direito Penal e do Processo Penal. Ainda no mesmo sentido, o ministro Gilmar Mendes, relator da Rcl 41.447, consignou em seu voto, em 15/12/2020, que "a ação civil de improbidade administrativa trata de um procedimento que pertence ao chamado direito administrativo sancionador, que, por sua vez, se aproxima muito do direito penal e deve ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal e do sistema criminal. Nesse sentido, considera-se ‘a lei de improbidade administrativa uma importante manifestação do direito administrativo sancionador no Brasil' (OLIVEIRA, Ana Carolina. Direito de Intervenção e Direito Administrativo Sancionador. 2012. p. 190)". No DP não há qualquer dúvida de que uma nova legislação mais benéfica envolvendo prazos prescricionais irá retroagir; o mesmo tratamento deve ser conferido à nova LIA. Aliás, Rogério Greco acata a lição de Cezar Roberto Bitencourt segundo a qual a prescrição "para o ordenamento jurídico brasileiro … é instituto de direito material" [8] . Por sua vez, ensina Capez que as "normas que tratam de prescrição são de Direito material, e não processual, pois não dizem respeito ao procedimento que deve ser seguido, mas afetam diretamente o próprio direito de punir do Estado. Toda norma que extingue, cria, aumenta ou reduz a pretensão punitiva tem natureza de Direito material e, dessa forma, retroage para beneficiar o sujeito, nos termos da CF, artigo 5º, XL" [9] . Por esta razão, arremata Capez, a "identidade principiológica entre as garantias do processo penal e do processo por improbidade faz com que a prescrição dos atos de improbidade receba o mesmo tratamento da prescrição penal e, assim, retroagir para incidir sobre todos os processos em andamento, alcançando fatos praticados antes de sua entrada em vigor, em obediência ao princípio da retroatividade in mellius", posição com a qual concordamos.

O combate à corrupção e a eventuais retrocessos é uma tarefa de todos, mas tal mister deve ser cumprido dentro do sistema jurídico, e não fora dele, sob pena de tentarmos acabar com a doença ministrando veneno ao doente. É preciso lembrar que a finalidade da prescrição não é apenas "punir o negligente"; mas também conferir segurança e estabilidade às relações sociais. Como disse Capez [10], a proteção deficiente à probidade administrativa não deriva da prescrição, mas da violação à duração razoável do processo. Devemos ter convicção absoluta de que a melhor forma de combater a corrupção é respeitando as leis e a Constituição; o desrespeito ao ordenamento jurídico e ao Direito, inclusive por meio de malabarismos hermenêuticos, apenas traz mais instabilidade ao quadro de desmandos que já é alarmante.

 


[2] Abordando a aproximação da nova LIA com o Direito Penal e Processual Penal, vale conferir o artigo Retroatividade in mellius da prescrição intercorrente na Lei de Improbidade, de Fernando Capez (https://www.conjur.com.br/2021-dez-02/controversias-juridicas-retroatividade-in-mellius-prescricao-intercorrente-lei-improbidade)

[3] Súm. 635 (DJe 17/06/2019)

[4] STF: RMS 33989 AgR, Rel. LUIZ FUX, 1ªT, j. 22/05/2020; RMS 36803 AgR, Rel. ROSA WEBER, 1ªT, j. 15/04/2020; RMS 30010, Rel. ROBERTO BARROSO, 1ªT, j. 15/12/2015; MS 23262, Rel. DIAS TOFFOLI, Pleno, j. 23/04/2014; RMS 29405 AgR, Rel. CELSO DE MELLO, 2ªT, j. 04/02/2014; MS 23299, Rel. SEPÚLVEDA PERTENCE, Pleno, j. 06/03/2002; RMS 23436, Rel. MARCO AURÉLIO, 2ªT, j. 24/08/1999; MS 22728, Rel. MOREIRA ALVES, Pleno, j. 22/01/1998.

[5] STJ: AgInt no RMS 65.486, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, 2ªT, j. em 17.08.2021; REsp 1.402.893, Rel. Min. SÉRGIO KUKINA, 1ªT, j. em 11.04.2019; AgInt no REsp 1.602.122, Relª. Minª. REGINA HELENA COSTA, 1ªT, j. em 07.08.2018; RMS 37.031, Relª. Minª. REGINA HELENA COSTA, 1ªT, STJ, j. em 08.02.2018; REsp 1.153.083, Rel. Min. SÉRGIO KUKINA, 1ªT, j. em 06.11.2014.

[6] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 130.

[7] FERRAZ, Luciano. Reforma da Lei de Improbidade e novatio legis in mellius implícita (https://www.conjur.com.br/2021-out-28/interesse-publico-reforma-lei-improbidade-novatio-legis-in-mellius-implicita)

[8] GRECO, Rogério, Curso de Direito Penal. 18. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2016, v. I, p. 854.

[9] CAPEZ, Fernando. Op. cit.

[10] Idem.

Autores

  • é advogado, graduado em Direito pela UFBA, especialista em Direito Público, ex-subprocurador-geral municipal, professor de Direito Administrativo na pós-graduação em Direito Público municipal da UCSAL e em cursos para concursos.

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