Público & Pragmático

Compliance ambiental: um horizonte muito além do combate à corrupção

Autores

  • Inês Virgínia Prado Soares

    é desembargadora no Tribunal Regional Federal da 3ª Região mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e realizou pesquisa de pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo - NEV-USP (2009-2010).

  • Otavio Venturini

    é consultor jurídico professor universitário doutorando e mestre em Direito pela Fundação Getulio Vargas-SP presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade) e advogado com destacada atuação em temas de direito público corporativo e compliance.

13 de fevereiro de 2022, 8h00

Em dezembro de 2021, foi amplamente noticiada, inclusive pela ConJur, sentença proferida no âmbito de ação popular (Processo 1015425-06.2019.4.01.3400) na qual a juíza Diana Wanderlei, da 5ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, confirma a decisão que antecipou parcialmente a tutela (decisão de 2019), no sentido de condicionar a aprovação da compra da mineradora Ferrous pela Vale na ordem dos US$ 550 milhões (R$ 2,24 bilhões) à apresentação de plano de compliance ambiental [1]. A decisão foi emitida em ação popular que questionava a decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) de autorizar a aquisição da mineradora Ferrous pela Vale S/A. Foi argumentado, durante todo processo, que essa aquisição ampliava a atuação da Vale no país, sem que fossem analisadas questões estruturais da empresa adquirente, especialmente se a empresa estaria a cumprir as suas obrigações no país. Foi destacado o fato de que, em um lapso temporal curto — de três anos —, a companhia protagonizou dois desastres ambientais gravíssimos em Minas Gerais: o do Mariana e o de Brumadinho.

Na sentença, a juíza ponderou que:

"Na audiência de conciliação e instrução realizada pelo juízo, restou evidente que a Vale não possui uma estrutura preventiva organizacional adequada para a amplitude da atividade que exerce no Brasil, tudo a ensejar gravosa repercussão na esfera ambiental, e consequentemente, nos desastres a envolver várias vidas humanas.
No cotejo da audiência e nos documentos solicitados pelo juízo, constata-se que a Vale não possui uma estrutura preventiva global, apenas, a partir dos dois desastres ambientais consecutivos, passou a adotar alguns procedimentos mais estruturantes. Contudo, a política de governança e de compliance ainda não está implantada no âmbito de atuação da Vale no Brasil, embora passe impressão distinta à opinião pública em propaganda noticiada".

A decisão chama a atenção por vincular o compliance à temática ambiental em um contexto que se distancia do combate à corrupção e das previsões da Lei 12.846/13, e que se aproxima da sustentabilidade e da responsabilidade socioambiental das empresas. Ao mesmo tempo, embora a decisão não faça menção ao direito dos desastres, na fundamentação da sentença, fica nítido que a ocorrência dos dois rompimentos das barragens — em Brumadinho e Mariana — teve imenso peso na ponderação dos argumentos e valores jurídicos, destacando-se a afirmação da magistrada de que "a Vale não possui uma estrutura preventiva global".

Convencionou-se chamar de compliance ambiental o programa de conformidade que se destina a prevenir, detectar ou mesmo sanar desvios, fraudes e irregularidades relativos a atuações consideradas como impactantes ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. No que se refere à fundamentação jurídica, o compliance ambiental encontra sustentação no regime de responsabilização inaugurado pelo caput do artigo 225 da CF de 1988 e seu parágrafo 3º, que preveem, inclusive, a responsabilização criminal de pessoas jurídicas [2]. Demais disso, a legislação ambiental consagra, em diversos diplomas, a responsabilidade objetiva para reparação e indenização de danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados — como, por exemplo, na Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), na Lei dos Danos Nucleares (Lei n°6.453/77), na Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/05), na Lei de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/10) e no novo Código Florestal (Lei nº 12.651/12). A jurisprudência ambiental pátria, notadamente as súmulas do STJ, também refletem a ideia de não aceitação dos danos ao meio ambiente e de ampliação da responsabilidade civil ambiental [3] [4].

Ao adotar um programa de compliance, uma organização incorpora princípios e normas ambientais (inclusive os entendimentos sumulados e de precedentes das cortes) em suas boas práticas empresariais. Não é demais lembrar, entre os princípios ambientais, o da precaução, que melhor respalda o desenho e a execução de um programa de compliance, por se tratar de um princípio que valoriza a prudência e a vigilância em detrimento do enfoque da tolerância e da certeza científica.

As normas de responsabilização e a tônica do seu enforcement pelas autoridades de controle e Poder Judiciário têm conduzido as empresas e corporações a buscarem formas de "autorregulação" ou de adesão voluntária para lidar com a temática socioambiental, elaborando diretrizes que indiquem um caminho de respeito aos direitos vinculados à sustentabilidade.

Nessa linha, além das exigências quanto à adoção de planos de compliance ambiental, que são amplos e com capacidade de maior impacto a longo prazo, vale destacar os "princípios do Equador" [5] — referenciados nas diretrizes de meio ambiente, saúde e segurança do Grupo Banco Mundial —, que trazem uma proposta de proteção socioambiental, desde a perspectiva e atuação dos financiadores/instituições bancárias. Lançado em 2003, em Washington, nos Estados Unidos, esse documento apresenta um conjunto de regras utilizadas pelos maiores bancos internacionais para a concessão de crédito às empresas. Os princípios do Equador se tornaram uma referência para instituições financeiras privadas no campo do financiamento de projetos, ao oferecer subsídios para que o investimento e o crédito sejam concedidos após a análise da magnitude dos riscos e impactos socioambientais potenciais, incluindo aqueles relacionados com direitos humanos, mudanças climáticas e biodiversidade.

É interessante destacar que as condicionantes indicadas nos "princípios do Equador" dialogam muito bem com o sistema normativo brasileiro e mostram como todos os atores precisam se envolver na questão da proteção socioambiental. Esses princípios conversam também com o atual debate sobre o aperfeiçoamento das normas, sendo possível imaginar que, em breve, a adesão voluntária das empresas a programas de compliance ambiental será um elemento a mais para compreensão do exercício da liberdade econômica e para a consolidação do mosaico normativo socioambiental.

A influência dos "princípios do Equador" e dos desastres nas reflexões sobre o aprimoramento normativo brasileiro encontra exemplo inspirador no Projeto de Lei (PL) nº 5442/19, que se propõe à regulamentação dos programas de conformidade ambiental em empresas públicas e privadas que exploram atividade econômica potencialmente lesiva ao meio ambiente. Na justificativa do mencionado PL, destaca-se a necessidade de desenvolvimento de novos instrumentos de preservação do meio ambiente, especialmente depois dos desastres nas cidades mineiras de Mariana e Brumadinho. O PL veda a concessão de subvenções econômicas, financiamentos em estabelecimentos oficiais públicos de crédito, incentivos fiscais e doações à pessoa jurídica que não possua um programa efetivo, com exceção de microempresas e empresas de pequeno porte.

Todavia, para além do entusiasmo com as obrigações relacionadas a programa de compliance ambiental, as exigências não devem se limitar à mera existência do programa, ensejando também parâmetros e engajamento dos atores envolvidos para a fiscalização do seu efetivo funcionamento; sem o que, aumenta-se o risco de não atingimento dos seus objetivos (prevenção, detecção ou remediação de ilícitos ambientais), ou mesmo de condescendência com a adoção de sham programs (ou programas "de fachada").

Existem, em suma, três caminhos possíveis para aprimorar o monitoramento e a fiscalização das obrigações pelas autoridades celebrantes: 1) ações de auditoria externa conduzidas pelo próprio órgão público fiscalizador; 2) exigência de monitoramento independente; e 3) exigências relativas a certificações de programa de compliance baseadas em standard reconhecido e obtidas mediante auditoria independente [6].

Cada uma dessas opções possui suas especificidades, de modo que a definição de obrigações de compliance ambiental deve ser precedida de exercício de ponderação e realizada com motivação que preconize a finalidade de evitar no caso específico a validação de programa de compliance ambiental inefetivo, em prejuízo às ações prevenção e preservação do meio ambiente. Nesse sentido, ações de auditoria externa conduzidas, por exemplo, pelo próprio órgão público fiscalizador devem estar condicionadas à capacitação do órgão. Por sua vez, a exigência de monitoramento independente pode ser recomendável a casos de maior complexidade, uma vez que implica significativos custos adicionais às organizações e enseja ponderação quanto à sua ability to pay [7]. Por fim, exigências relativas a certificações de programa de compliance devem ao menos ser baseadas em standard reconhecido sobre a temática em questão e obtidas mediante auditoria independente, o que são fatores de mitigação de riscos relacionados à idoneidade e robustez da certificação.

Ao falarmos de engajamento dos atores, de responsabilidade das empresas na temática ambiental e de fiscalização efetiva do programada de compliance, voltamos ao início do texto e à complexidade de levar ao Judiciário um problema que encontra solução em outras instâncias e esferas de poder. A sentença buscou uma resposta célere e justa à demanda ao valorizar os órgãos de controle e a autorregulação, tornando-a "quase" compulsória, dentro dos parâmetros constitucionais do artigo 170 da CF, especialmente dos princípios ali esculpidos. Mas esse já é assunto para outro texto.

 


[2] Nos termos do parágrafo 3º deste dispositivo: "as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados".

[3] Cf., dentre outros entendimentos: "Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental" (Súmula 613); "A inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental" (Súmula 618); "As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor"; e (Súmula 623) "Quanto ao dano ambiental, é admitida a condenação do réu à obrigação de fazer ou à de não fazer cumulada com a de indenizar" (Súmula 629).

[4] SOARES, Inês Virgínia Prado; VENTURINI, Otavio. Termo de Ajustamento de Conduta e programas de compliance ambiental: critérios para exigência e parâmetros para monitoramento e fiscalização. In: Terence Trennepohl; Natascha Trennepohl. (Org.). Compliance no Direito Ambiental. 1ed.: Revista dos Tribunais, 2020, v. 2, p. 145-172.

[5] Os Princípios do Equador encontram-se referenciados nos Padrões de Desempenho sobre Sustentabilidade Socioambiental da International Finance Corporation (IFC) e nas Diretrizes de Meio Ambiente, Saúde e Segurança do Grupo Banco Mundial.

[6] SOARES, Inês Virgínia Prado; VENTURINI, Otavio. Termo de Ajustamento de Conduta e programas de compliance ambiental: critérios para exigência e parâmetros para monitoramento e fiscalização. In: Terence Trennepohl; Natascha Trennepohl. (Org.). Compliance no Direito Ambiental. 1ed.: Revista dos Tribunais, 2020, v. 2, p. 145-172.

[7] Em relação à experiência norte-americana, o Department of Justice (DOJ) em orientações mais recentes tem sinalizado a redução do número de acordos que exigem a figura do compliance monitor (October 11, 2018 memo). CASSIN. Richard L. DOJ reduces compliance role for monitors. The FCPA Blog. Disponível em: http://www.fcpablog.com/blog/2018/10/15/doj-reduces-compliance-role-for-monitors.html.

Autores

  • é desembargadora federal no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e realizou pesquisa de pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo - NEV-USP (2009-2010).

  • é advogado, professor, mestre e doutorando em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas/SP, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

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