Opinião

A renúncia tácita à prescrição pelo poder público

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11 de fevereiro de 2022, 16h07

O apelo por métodos consensuais de solução de controvérsia já se fazia presente na redação original do Código de Processo Civil de 1973 (CPC-1973), que estabelecia no inciso IV do artigo 125 o dever de o juízo tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes. Ao menos quanto aos "direitos patrimoniais de caráter privado" (artigo 448), no sistema do código atualmente revogado, a instrução e a solução jurisdicional não se poderiam dar sem que o juízo buscasse a conciliação das partes; havendo acordo, caberia ao juízo homologá-lo dando ensejo à formação de título executivo (artigo 584, II).

Instaurado processo com vistas à obtenção de uma deliberação estatal sobre situações controvertidas, a lei estimulava que a solução fosse obtida pelas próprias partes envolvidas, via transação. O acordo, a que não chegaram espontaneamente as partes antes do processo, era um norte a ser buscado pelo juízo. Não raramente, a bilateralidade do conflito só era configurada por ocasião do processo. Em certo sentido, o processo judicial era visto como um ambiente adequado e necessário ao consensualismo. Era como se fosse preciso litigar formalmente para depois buscar o consenso. Quando da entrada em vigor do CPC/1973, a legislação não refletia maior preocupação com a criação, estímulo e reconhecimento de métodos extrajudiciais de solução de controvérsias.

Porém, nas quatro décadas de vigência do CPC/1973 registramos no nível legislativo alguns avanços rumo ao consensualismo. Nessa linha, a Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1984, que dispôs sobre a criação e funcionamento dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, e a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que tratou dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, reafirmaram o ideal da conciliação como método de tratamento de litígios, possibilitando que sua condução ficasse a cargo de conciliadores ou juízes leigos. Cabe mencionar também o advento da Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, que, ao organizar Defensoria Pública, colocou entre suas funções institucionais a promoção extrajudicial da conciliação (artigo 4º, I), e a superveniência da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, que dispôs sobre a arbitragem como método extrajudicial para "dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis" (artigo 1º).

Nova abordagem sobre a solução extrajudicial de controvérsias veio com Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, que instituiu o Código de Processo Civil (CPC) em vigor. Pela codificação, o dever de conciliação não recai apenas sobre o órgão jurisdicional, mas sobre o Estado como um todo, mesmo antes do processo (§2º do artigo 3º). Além disso, estipula-se que "a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial" (§3º). Pode-se dizer, assim, que a preferência pelo consensualismo é anterior e independente da existência da judicialização de conflitos.

Há, todavia, entendimentos e posturas tribunalícias que direta ou indiretamente vão contra o ideal de solução extrajudicial de controvérsias. A extrapolação dos limites da garantia da inafastabilidade da jurisdição e o esquecimento do instituto processual do interesse de agir pelos tribunais, por exemplo, concorrem amiúde para robustecimento da ideia de que não há justiça possível fora ou antes da sentença judicial, como já tive oportunidade de expor nos artigos "O interesse de agir em demandas previdenciárias" [1] e "Assoberbamento judicial e esquecimento do interesse de agir" [2]. Mas não é só. Os tribunais também desestimulam a solução extrajudicial quando conferem à administração transigente, que reconhece administrativamente direitos, tratamento até mais gravoso do que aquele que lhe seria conferido em caso intransigência.

Exemplo preocupante dessa postura judicial encontra-se em julgados do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema relativo à possibilidade ("tese A") ou impossibilidade ("tese B") de considerar o ato de reconhecimento administrativo de direitos como renúncia tácita à prescrição.

Em um dos primeiros julgados que abraçaram a "tese A", a 5ª Turma do STJ, por ocasião do julgamento do REsp nº 174.001/PR, na sessão de 2 de setembro de 1999, nos termos do voto do relator, ministro Gilson Dipp, considerou que seria renúncia tácita à prescrição o fato de o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) em demanda ajuizada em 1992 ter reconhecido administrativamente em 1993 direito a auxílio suplementar acidentário de 20% a contar da alta médica ocorrida em 1978. Para o relator, "houve renúncia tácita", nos termos do artigo 161 do Código Civil de 1916 (CC-1916) que dispunha que "tácita é a renúncia, quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição". Com isso, além de fazer jus às prestações futuras, pôde o segurado retroagir os efeitos patrimoniais da condenação a 1978, não se lhe aplicando a prescrição quinquenal a favor da Fazenda Pública prevista no artigo 1º do Decreto nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932, e no artigo 2º do Decreto-Lei nº 4.597, de 19 de agosto de 1942. Por sua vez, se o INSS tivesse se mantido irredutível, sem reconhecer o direito, no cenário mais gravoso os efeitos patrimoniais da condenação retroagiriam até 1987, podendo até evitar uma condenação relativamente a parcelas futuras caso se entendesse que a prescrição "do fundo do direito" se consumou em 1983.

Embora não haja uniformidade, a "tese A" foi reiterada, entre outros, nos seguintes julgados: REsp nº 236.064/CE, 5ª T., relator ministro Jorge Scartezzini, j. 16.5.2000; Agravo Regimental (AgRg) no REsp nº 249.535/MG, 6ª T., relator ministro Hamilton Carvalhido, j. 6.2000; REsp nº 702.923/RS, 5ª T., relatora ministra Laurita Vaz; j. 9.8.2005; Agravo Regimental (AgRg) no REsp nº 723.962, 5ª T., relator ministro Felix Fischer, j. 20.4.2006; AgRg no REsp nº 701.595/RS, 6ª T., relator ministro Paulo Medina, j. 2.5.2006; Agravo Interno (AgInt) no REsp nº 1.323.569, 1ª T., relatora ministra Regina Helena Costa, j. 19.9.2017; REsp nº 1.696.952/PR, 2ª T., relator ministro Herman Benjamin, j. 3.5.2018; REsp nº 1.641.117/DF, 2ª, T, relator ministro Og Fernandes, j. 21.2.2019; AgInt no AREsp nº 1.643.924/SP, 1ª. T., relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, j. 31.2020.

Já a "tese B" foi abraçada pelo STJ por ocasião julgamento pela 6ª Turma dos Embargos de Declaração (EDcl) no AgRg no REsp nº 1.115.292/RS, em 6 de novembro de 2012, sob a relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior. Na oportunidade, considerou-se que "o reconhecimento  pelas Orientações Normativas MPOG nº 3, de 18/05/2007, e nº 7, de 20/11/2007  do direito à contagem de tempo de serviço especial não importa em renúncia à prescrição, pois não foram expressamente incluídos por aqueles atos os servidores que, à época, já se encontravam aposentados e tiveram suas pretensões submetidas aos efeitos da prescrição". A "tese B" foi seguida, entre outros, pelos seguintes julgados: AgRg no REsp nº 978.991/RS, 6ª T., relator desembargador convento Alderita Ramos de Oliveira, j. 4.2013; AgRg no AgRg no REsp nº 1.405.953/RS, 2ª T., relator ministro Herman Benjamin, j. 111.2013; AgRg no REsp nº 1.242.708/RS, 2ª Turma, relator ministro Humberto Martins, j. em 8/4/2014, DJe 14/4/2014; AgRg no REsp 1147273/RS, relator ministro Antonio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, julgado em 27/09/2016, DJe 13/10/2016; EDcl no REsp 1393373/RS, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, julgado em 27/02/2018, DJe 14/03/2018; AgInt no REsp 1639267/RS, relator ministro Francisco Falcão, 2ª Turma, julgado em 12/06/2018, DJe 18/06/2018; AgInt no REsp 1638140/RS, relator ministro Og Fernandes, 2ª Turma, julgado em 27/11/2018, DJe 30/11/2018; DJe 23/04/2019; AgInt no AREsp 1312817/RS, relator ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 11/06/2019, DJe 27/06/201

Como se vê, à míngua de uniformidade, tecnicamente não existe jurisprudência no STJ sobre a possibilidade de se considerar reconhecimento administrativo de direitos como renúncia tácita à prescrição. Há julgados que concluíram pela ocorrência da renúncia tácita ("tese A") e outros que negaram esse feito ("tese B").

Seja como for, o Código Civil de 2002, assim como a codificação revogada de 1916, reconhece que a renúncia pode ser tácita, isto é, aquela que "se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição" (artigo 191). Então o que cabe investigar é se, no âmbito do Direito comum, ou no Direito Público, o reconhecimento de direito obtido em sede de solução extrajudicial de controvérsia pode ser enquadrado como renúncia tácita à prescrição. A resposta, tanto para o Direito comum, quanto para o Direito Púbico, é uma só: não.

No âmbito do Direito comum, penalizar quem age para reconhecer um direito começa ser postura que não se afina com os termos do artigo 114 do CC, para o qual "os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente", além de representar abalo à boa-fé e à segurança jurídica. Quem transaciona e reconhece extrajudicialmente um direito, comprometendo-se a agir de acordo com o transacionado, deve ter seu comportamento objeto de reconhecimento jurídico. O cuidado do intérprete deve ser no sentido de não extrapolar o conteúdo do ato transacional contra a vontade de quem reconhece direitos. O ente público ou o particular deve ser estimulado a abandonar a intransigência para alargar seu entendimento de modo a observar o objeto da discussão sob a perspectiva de sua contraparte. Em suma, as várias manifestações do Estado, bem como juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, não podem combater ou desestimular a conciliação (CPC, artigo 3º, §§2º e 3º). Com a "tese A", contudo, o STJ faz esse combate indevido indiretamente.

Para o sistema jurídico brasileiro, não faz sentido que, em comparação com o devedor irredutível, seja pior a situação do devedor que, de boa vontade, reviu seu posicionamento, e passou a pagar extrajudicialmente valores ou parcelas cuja exigibilidade era questionável. A boa-fé e a solução extrajudicial devem ser estimuladas; não desencorajadas ou punidas, como se puniu o INSS no julgamento do REsp nº 174.001/PR. Atos benéficos de renúncia e de reconhecimento de direito, na esteira do que diz a própria legislação civil, devem ser interpretados estritamente, de modo a não piorar a situação de quem renunciou ou reconheceu.

E com ainda maior razão, no Direito Público, por causa da prevalência da legalidade, mostra-se descabido alargar o conteúdo de ato administrativo de reconhecimento de direito para nele se reconhecer renúncia tácita à prescrição, sem apoio em uma lei específica. A propósito, calha a mencionar que a Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, ao tratar especificamente sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública, dispôs em seu artigo 35, §6º, que "a formalização de resolução administrativa destinada à transação por adesão não implica renúncia tácita à prescrição nem sua interrupção ou suspensão". Assim, com a entrada em vigor da referida lei, em 26 de dezembro de 2015, é possível concluir que, no âmbito do Direito Público, desde então há regra legal expressa — à qual pode o intérprete recorrer em casos análogos — que determina que não seja punida com renúncia tácita da prescrição a Administração que se encaminha pelo caminho da consensualidade. 

A "tese A" mostra-se também incoerente à luz do entendimento do STJ de não aplicar a favor do poder público os prazos prescricionais inferiores a cinco anos constantes do artigo 206 do CC, ao entendimento de que o Decreto nº 20.910, de 1932, não teria sido derrogado pela codificação civil por se tratar de norma especial, mesmo que seu artigo 10 disponha expressamente que "o disposto nos artigos anteriores não altera as prescrições de menor prazo, constante das leis e regulamentos, as quais ficam subordinadas às mesmas regras", a exemplo do que se consignou no julgamento do REsp nº 1.251.993/PR, 1ª Seção, relator ministro Mauro Campbell Marques, j. 12/12/2012. Nessa situação ressaltou-se que no prazo trienal para a reparação civil constante do artigo 206, §3º, V, do CC, "em nenhum momento foi indicada a sua aplicação à Fazenda Pública", porém, em contradição, a "tese A" é sufragada mesmo que não haja no artigo 191 do CC nenhuma indicação de sua aplicação contra o poder público, num quadro de inexistência de regra sobre renúncia à prescrição no Decreto nº 20.910, de 1932.

Quando, ainda em 1999, a 5ª Turma do STJ, no REsp nº 174.001/PR, decidiu que seria renúncia tácita à prescrição o fato de o INSS reconhecer administrativamente direito do segurado, dando curso à "tese A", não se cuidou de fazer uma análise ex-ante. O propósito do julgado parece ter sido apenas o de julgar um caso específico, a luz de entendimento — bom ou ruim — sobre os termos do artigo 161 do CC-1916, desconsiderando regras e princípios mais amplos em sentido diverso, preponderando avaliação ex-post. Não se avaliou quais seriam seus efeitos com relação a casos futuros, nem se o entendimento representaria ou não impacto negativo ao propósito do estabelecimento de cultura de solução extrajudicial de controvérsias. O problema é que esses efeitos negativos existem. Fundamentalmente, a "tese A" desestimula que a Administração tenha uma postura de tentar sempre que possível adequar seus atos e condutas à legislação ou à jurisprudência, evitando que potenciais conflitos desemboquem no Judiciário. Temerosa de que mudança de entendimento administrativo sobre o pagamento de determinada parcela a servidores ou particulares possa servir para reacender pretensões há anos ou décadas já colhidas pela prescrição, a Administração vai evitar mudar de entendimento, mantendo uma postura mais desfavorável às suas contrapartes.

Nesse quadro, de pouco adianta ao legislador dispor favoravelmente ao consensualismo no CPC ou na Lei nº 13.140, de 2015. Pouco adianta também à doutrina especializada realçar as vantagens de soluções extrajudiciais. Tampouco adiantam lamentos vindos do Judiciário de que o poder público, por sua postura intransigente, seria causador do abarrotamento dos órgãos judiciais. A cultura da litigiosidade não é obra apenas de advogados. A derrota da "tese B" no STJ aprofundará ainda mais esse quadro.

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