Paradoxo da Corte

A instrumentalidade do processo penal num caso de bloqueio abusivo

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

1 de fevereiro de 2022, 8h00

Não há qualquer dúvida de que o rigor técnico no exercício da profissão de advogado constitui natural exigência estratégica, que impõe para cada situação concreta a observância de um meio processual específico. A adequação da medida judicial em benefício do direito do cliente tem, na maioria das vezes, previsão legal.

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E isso ocorre tanto na esfera do processo civil quanto, por certo, nos domínios do processo penal.

Nota-se que, na praxe forense, em algumas circunstâncias, não se verifica tal simetria entre a lesão, a patologia e o remédio utilizado pelo advogado, equívoco que pode acarretar o indeferimento do pleito, em detrimento do direito do constituinte. No entanto, no âmbito de uma visão moderna, a doutrina processual tem sustentado de há muito que o exacerbado formalismo não mais se coaduna com a concepção que se tem da própria natureza do processo, como método predisposto à realização da justiça.

Essa perspectiva instrumentalista bem evidencia que o fim almejado pelo processo tem um valor muito mais significativo do que a forma eleita pela parte em busca da satisfação de seu direito subjetivo. A premissa que norteia a superação da forma tem por precípuo escopo garantir a efetividade do processo, a partir de sua conformação às exigências ditadas pelo direito material.

Cumpre-me registrar que essa dimensão dos escopos do processo é bem mais desenvolvida pela doutrina que se dedica ao estudo do direito processo civil. Não obstante, tem ela, com toda certeza, a mesmíssima relevância na seara do processo penal.

E, para comprovar essa assertiva, deparei-me com um instigante e bem debatido precedente, consubstanciado no recente julgamento do recurso no Habeas Corpus 2217456-13.2021.8.26.0000, pela 15ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça bandeirante, então impetrado para afastar o bloqueio abusivo de todo o patrimônio de um cidadão que estava sendo investigado há considerável tempo pelo Ministério Público.

Infere-se do julgado que o relator sorteado, desembargador Bueno de Camargo, votou para denegar a ordem, visto que o Habeas Corpus não constitui a via processual para se obter a revogação da constrição patrimonial, "pois não estamos diante de ofensa à liberdade de ir e vir da pessoa". Ademais, pelo seu voto, o ato decisório impugnado, determinante do bloqueio patrimonial, não se revestia de ilegalidade.

O segundo desembargador Poças Leitão, a seu turno, abrindo divergência, proferiu voto pelo trancamento da investigação, com a justificativa de que o Ministério Público, "embora instituição das mais respeitáveis em nosso país", não pode agir em substituição à autoridade policial na "tarefa árdua, complexa e por vezes até perigosa" de investigar a prática de delitos, uma vez que "falece atribuição constitucional e legal aos integrantes do parquet para desempenharem investigações no âmbito criminal".

Aduziu, ainda, o desembargador Poças Leitão que a investigação noticiada na impetração não encontra supedâneo legal na legislação processual penal em vigor, porquanto, o que efetivamente é regrado, "é o inquérito policial, que fica a cargo de um delegado de Polícia". Por tudo isso, penso serem nulos os atos que deram origem ao tal procedimento investigatório criminal, que respaldou a presente impetração".

Não obstante, o voto vencedor acabou sendo do terceiro juiz, desembargador Willian Campos, relator para o acórdão, ao assentar o entendimento no sentido de que o prazo de quatro anos de investigação realmente desponta excessivo, não se justificando a integral segregação patrimonial de todos os bens do impetrante, de sua esposa e de suas empresas, que fora determinado há mais de dois anos, pelo juízo de origem.

O relator do acórdão, ao votar pelo provimento parcial do recurso, consignou que o bloqueio da integralidade do patrimônio descortina-se ilegal, uma vez que o Ministério Público, em momento algum da investigação, procurou estabelecer o efetivo valor do potencial prejuízo experimentado pelo erário. Afirmou, ainda, que se tem "observado a ação do Ministério Público nesse sentido de bloqueio total, proporcionando com isso a quebra de muitas pessoas jurídicas que poderiam simplesmente terem sido bloqueadas apenas no montante devido". "O paciente e sua família precisam sobreviver e se percebe no montante do seu patrimônio que há espaço perfeito para separar valor de eventual débito e permitir que a família tenha o necessário para o seu sustento e que suas empresas possam prosseguir na sua atividade e tentar o seu restabelecimento."

Estribando-se nesse consistente fundamento, o desembargador Willian Campos, para justificar a parcial concessão da ordem, salientou que seu entendimento objetiva a garantir a restituição de eventual dano ao Estado, mas também viabilizar a disponibilidade do patrimônio do paciente, possibilitando a manutenção de sua família e de suas empresas. Nesse sentido, asseverou que: "o não reconhecimento desse direito do paciente se reveste de ilegalidade flagrante, perfeitamente sanada pelo remédio heróico do Habeas Corpus. Caberá ao douto magistrado rever a amplitude do bloqueio de bens e valores, garantir eventuais prejuízos sofridos pelo Estado e possibilitar ao paciente razoável manutenção de sua família e possível restabelecimento de suas empresas, que também estão com seus haveres bloqueados".

Anote-se, outrossim, que o aludido relator para o acórdão indeferiu o pleito de trancamento da investigação por entender que, na fase atual, é prematura qualquer conclusão sobre a atipicidade da conduta, a inocência do agente ou mesmo a presença de causa extintiva da punibilidade. Contudo, como o procedimento investigatório, ao que tudo indica, encontra-se paralisado desde 2019, o voto do relator determinou ao juízo de origem que proceda à análise de eventual inércia do Ministério Público, "a fim de que a constrição judicial não se perpetue nesta fase investigativa".

Importa esclarecer que prevaleceu o posicionamento do desembargador Willian Campos, por ser considerado o "voto mediano", ao prover o recurso concedendo parcialmente a ordem, para o desbloqueio da totalidade do patrimônio do paciente.

Respeitando-se, como sempre, as opiniões divergentes, o precedente em apreço está a demonstrar que a efetividade do processo, em prol da realização de justiça, em determinadas situações, deve se sobrepor ao formalismo construído pela velha dogmática jurídica.

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