Ambiente Jurídico

A difícil atuação da Justiça Ambiental

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17 de dezembro de 2022, 12h57

Quem atua na Justiça Ambiental sabe da complexidade, demora e da dificuldade de decisão e execução de seus casos. Quais fatores causam essa complexidade, demora e dificuldade, se o direito ambiental caminha já para o quinto decênio de elaboração com profusa legislação nacional e internacional, largo volume de julgados e trabalhos acadêmicos?

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O direito ambiental apresenta peculiaridades que o destacam dos demais, como esses anos de judicatura têm demonstrado. O direito resulta do consenso atingido pela sociedade após determinado período de elaboração; vem para resolver problemas existentes e prever os problemas futuros a partir da experiência passada e, nesse caminhar da formação de consensos, acompanha com dificuldade a maior complexidade e rapidez que a sociedade passou a apresentar. A evolução, em parte natural e em parte provocada, levou a um crescimento exponencial da população mundial, de suas necessidades e da economia que lhe dá sustento. O assustador consumo de recursos naturais e a interferência dos humanos no ambiente leva a esse conflito intrínseco ao desenvolvimento sustentável: a dificuldade de coordenar a preservação ambiental, que exige espaço e tempo alongado, com a necessidade humana, que disputa o mesmo espaço e vive em um tempo curto. Essa coordenação de interesses relevantes é um campo novo na nossa atividade jurisdicional.

O juiz trabalha, historicamente, com o passado. Analisa fatos e condutas já ocorridas, definidas no tempo e no espaço, às quais aplica a lei atual ou aquela antes vigente. O litígio ambiental, no entanto, parte de fatos presentes, não isolados no tempo nem no espaço e sempre mutantes, para dispor sobre o futuro, pois o futuro é a essência da decisão. Determina-se a recomposição da degradação não para resolver o que foi, pois esse tempo não volta mais, mas para que a ambiente recomposto volte a cumprir sua função relevante no futuro, no novo presente. Esse olhar prospectivo decorre dos princípios da prevenção e da precaução, traz a dificuldade de dispor sobre um futuro nem sempre claro e sobre a coordenação de interesses conflitantes que podem se manifestar de outra forma depois: a necessidade do ambiente, que se espraia por décadas e séculos, e a necessidade humana, que em uma visão imediatista se resume a anos. Dispor sobre o futuro implica em uma aplicação cuidadosa do princípio da precaução, para que tudo não se proíba, e da consideração do interesse e dos direitos dos que ainda não nasceram, algo inexistente no direito tradicional. É uma nova perspectiva do tempo e do espaço, um ângulo novo de visão.

É um direito feito de princípios e cláusulas abertas. O art. 225 da Constituição Federal garante a todos um meio ambiente ecologicamente equilibrado, sem uma definição clara de onde se situa o equilíbrio; o art. 8º da LF nº 12.651/12 permite a supressão ou a intervenção em área de preservação permanente nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental previstas no art. 3º incisos VIII a X, com larga margem de caracterização das várias situações; a Política Nacional sobre Mudança do Clima — PNMC [1] menciona a adoção de iniciativas e medidas para reduzir a vulnerabilidade dos sistemas naturais e humanos frente aos efeitos atuais e esperados da mudança do clima e, como efeitos adversos, aqueles que tenham efeitos deletérios significativos sobre a composição, resiliência ou produtividade de ecossistemas naturais e manejados [2], cabendo ao juiz definir se as medidas adotadas são suficientes para reduzir a vulnerabilidade dos sistemas ou se o efeitos deletérios são significativos. A lei é completada, corporificada, pela decisão judicial.

São litígios transversais, apoiados na realidade e no que existe. Envolvem o conhecimento técnico trazido pelas partes e complementado em perícias, a depuração da complexa legislação ambiental em seus três níveis, o conhecimento da extensa regulamentação administrativa e a análise do que existe hoje e do que se pretende no futuro. Salvo os casos de flagrante ilegalidade, são litígios que contrapõem interesses legítimos de ambos os lados, com nuances que o juiz analisará. Não há processos iguais e cada um deve ser analisado por inteiro, segundo as suas peculiaridades, o seu contexto, o seu tempo; por isso diferente aplicação da lei não implica em anarquia, mas nessa ponderação que o juiz terá de fazer em cada caso.

A execução dos julgados é também diferente. O juiz tem meios para forçar o cumprimento da decisão, se renitente o perdedor: determina o despejo, promove a reintegração forçada na posse, leiloa o bem penhorado e paga o credor. O litígio ambiental resulta em uma obrigação de fazer a ser cumprida pela própria parte; são cumprimentos onerosos, demorados, de difícil execução por terceiro e que exigem do magistrado uma postura a que não está habituado. É preciso conversar, convencer, compreender a eventual dificuldade da parte e promover uma execução de certo modo consensual, colocando em segundo plano os meios de coerção de que dispõe: a multa cominatória, indenizações, o cumprimento por terceiro. São execuções demoradas que se alteram conforme o contexto se altera. Uma recomposição de vegetação se prolonga por uma dezena de anos, a recuperação do solo contaminado é complexa e demorada, a colocação de filtros em uma indústria poluidora tem suas peculiaridades, a transmissão da propriedade por venda ou sucessão pode alterar o polo passivo, as condições econômicas de hoje podem não perdurar amanhã e a legislação também muda, agravando ou reduzindo a obrigação em cumprimento. É uma execução que exige gestão e participação, tanto ou mais que comando.

A natureza está sempre em movimento e não para enquanto o processo se desenvolve. As leis são alteradas. A situação existente no início do inquérito civil pode não existir mais, ser outra, por ocasião da sentença, do acórdão e da execução. Essa rebeldia da natureza implica em uma plasticidade que destoa da prática do processo e da rigidez da coisa julgada, a exigir do juiz a adequação do que foi ao que é, sempre buscando o resultado útil e a melhor preservação do meio ambiente.

O processo tradicional tem partes definidas, uma causa de pedir e um pedido certo. A ação ambiental é por natureza expansiva, atinge terceiros e atividades que não integram o processo e que veem a decisão como um avanço ou como um retrocesso, conforme o seu interesse peculiar. Envolve a administração e interfere em políticas públicas quanto ao uso do solo, preservação e recomposição do ambiente, manutenção de áreas protegidas, alterando ou podendo alterar a destinação de verbas orçamentárias e a prioridade de empreendimentos e projetos. A despoluição de um curso d'água pode exigir a expansão do saneamento básico, a regularização ambiental pode refletir em ocupações e assentamentos populacionais ou na cessação de atividades econômicas ali desenvolvidas. Reflete na legislação local e exige condutas de longo prazo, a que a administração e os administrados não estão habituados, dando origem à complexa execução que se vê com frequência e ao nascimento de novos litígios.

A evolução da sociedade e dos problemas ambientais tem trazido à tona os chamados processos estruturais, uma modalidade nova que não tem uma causa definida nem um pedido igualmente delimitado. O processo estrutural visa à causa do litígio e tem por objeto a estruturação de uma política pública, com uma diferente causa de pedir e um diferente processamento. Diferencia-se do processo coletivo, que cuida de interesses homogêneos em que os beneficiados pela decisão pretendem algo assemelhado; o processo estrutural atinge grupos heterogêneos de pessoas que podem ter interesses diferentes ou conflitantes. Não há muitos exemplos no Brasil: a execução da chamada ACP do Carvão em Criciúma-SC, em que o magistrado reuniu o poder público, as empresas mineradoras, as entidades civis e estabeleceram juntos o roteiro para a execução da sentença e a restauração ambiental daquela extensa área, em um projeto de vários anos;  a ação da Lagoa da Conceição em Florianópolis, que visa a reestruturar a ocupação e o uso da lagoa e de seu entorno alterando o uso do solo, o licenciamento administrativo e ambiental; ações movidas nos EUA e na Europa visando a uma diferente atuação da administração na implementação da Agenda Ambiental; ação visando à revisão da política de ocupação urbana em determinado local. Ações no STF com audiências públicas (a LF nº 12.651/12, a regulamentação do ICMS, a revisão da atuação da administração em questões ambientais — Fundo Clima, desestruturação dos Conselhos, Plano de Preservação da Amazônia e de Mudanças Climáticas), ação de uma associação civil contra o BNDES visando à inclusão de salvaguardas ambientais nos contratos de financiamento, são ações estruturais. As mudanças climáticas têm gerado crescente litigância para compelir Estados, pessoas e empresas a adequarem suas práticas, sua legislação e a fiscalização ao cumprimento das ações climáticas previstas no Acordo de Paris e nas convenções internacionais, na implantação das cidades sustentáveis, no desenvolvimento de uma política integrada de proteção ambiental de extensas áreas, como bem delineado em artigo recente no Conjur [3]. Mais uma vez, são ações que exigem do juiz uma ponderação delicada dos interesses em conflito, uma participação intensa na coordenação e na busca de soluções e uma decisão que estabeleça ou defina a forma e o objeto a ser alcançado, que vem definido em largas pinceladas no pedido inicial.

Mais se poderia dizer. Litígios ambientais apresentam natureza, peculiaridades e dificuldades diferentes dos litígios tradicionais; exigem a adequação dos meios e métodos existentes e uma adequação complexa da atuação do juiz. Há razão em dizer que litígios ambientais são litígios de complexa solução, que regularmente surpreendem os juízes em seu esforço de bem decidir, em um aprendizado constante.

[1] LF nº 12.187/09 de 29-12-2009.

[2] LF nº 12.187/09, art. 2º incisos I e II.

[3] ConJur – Litigância climática, municípios e responsabilidade civil, por Gabriel Wedy e Annelise Steigleder, 3-12-2022.

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