Opinião

Lavagem de dinheiro e a conexão com o delito prévio

Autores

  • André Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor nos cursos stricto sensu (mestrado e doutorado) do IDP/Brasília e sócio do Callegari Advocacia Criminal.

  • Raul Marques Linhares

    é advogado criminalista doutorando e mestre em Direito Público sócio do Ritter Linhares Advocacia Criminal e Consultoria e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

13 de dezembro de 2022, 6h06

Atualmente, o delito de lavagem de dinheiro se converteu em tema da moda; ou seja, tem recebido holofotes como nunca antes em nosso país, e, assim como ocorre com o delito de organização criminosa, passou a estar presente em uma parcela considerável das denúncias criminais. Nesse sentido, são cada vez mais raras as denúncias por crime econômico ou contra a administração pública que não venham acompanhadas pela imputação também do delito de lavagem de capitais. Essa recente massificação do delito de lavagem tem servido, inclusive, de combustível para um criticável "descolamento probatório" da lavagem em relação à infração antecedente geradora dos ativos maculados.

Spacca
O advogado André Callegari

Se, por um lado, formulamos crítica ao movimento de exacerbada autonomização do delito de lavagem de dinheiro (punível independentemente de prova segura da infração prévia)[1], por outro lado, não é de se estranhar que tal movimento ocorra, especialmente se consideradas as razões históricas para o surgimento e a difusão desse forma de criminalização. Nas palavras de Pérez Manzano, um dos instrumentos jurídicos fundamentais na luta contra as organizações criminosas em geral (e, em especial, contra as que dominam o tráfico de drogas ou a comissão de outros delitos através dos quais se obtém grandes benefícios econômicos) tem sido a criminalização da lavagem de dinheiro, na medida em que objetiva impedir a satisfação do proveito econômico que move a realização do delito prévio[2]. Desse modo, a conexão político-criminal entre o delito de lavagem de dinheiro e a luta contra a criminalidade organizada faz com que os défices na persecução direta das organizações criminosas sejam compensados por meio de uma legislação antilavagem, dando concretude à filosofia que permitiu condenar na jurisdição penal o conhecido Al Capone: se não for possível julgar e condenar os delitos principais geradores dos benefícios econômicos ilícitos, torna-se possível ao menos a responsabilização criminal por condutas derivadas que se conectem com o desfrute dos capitais ilicitamente obtidos[3].

Em outras palavras, a criminalização da lavagem surge justamente para sanar uma deficiência na persecução dos delitos geradores de ativos, seja como incremento de punição, seja como possibilidade única de responsabilização penal, lógica originária que já reclama certa autonomia do crime de lavagem em relação à infração prévia.

É justamente o movimento histórico de progressiva autonomia da lavagem, bem como a recente expansão/massificação desse delito, que permite a Lascuraín Sánchez[4] afirmar que, atualmente e na prática, os órgãos de investigação têm cada vez mais demonstrado que frequentemente se conhece pouco sobre a infração prévia, e mais sobre o posterior delito de lavagem. A lavagem, então, é alçada à posição de ponto de partida (e não mais um eventual e acessório ponto de chegada, ou intermediário) para se investigar amplos e complexos contextos fáticos suspeitos, tudo a partir de operações econômicas mal esclarecidas, induzindo ao pensamento de que os ativos movimentados podem ser originados de alguma infração penal, seja ela qual for.

As ideias acima expõem no que vem se transformando o delito de lavagem de capitais: um crime cada vez menos acessório; cada vez mais autônomo. Como reflexo desse contexto, a jurisprudência nacional tem admitido a condenação por lavagem de dinheiro ainda que não se tenha prova segura da existência do delito principal (antecedente). Ilustrativamente, no STJ: "Para a configuração do delito de lavagem de capitais não é necessária a condenação pelo delito antecedente, tendo em vista a autonomia do primeiro em relação ao segundo. Basta, apenas, a presença de indícios suficientes da existência do crime antecedente, o que, no caso, restou fartamente configurado."[5]

Apesar desse movimento histórico de progressivo descolamento do delito de lavagem em relação à infração antecedente, e de seu reconhecimento pela jurisprudência e por parcela da doutrina, defendemos que essa autonomia deve ser meramente processual (nos precisos termos do artigo 2º, inc. II, da Lei de Lavagem[6]). Como entendemos que o crime antecedente, na prática, constitui uma elementar do tipo penal de lavagem de dinheiro, não consideramos adequada a prolação de uma decisão condenatória pela prática do crime de lavagem sem que exista prova segura da infração prévia. Inclusive, a flexibilização legal do standard probatório da infração prévia existe expressamente em relação ao momento de oferecimento (e, consequentemente, de recebimento) da denúncia, no artigo 2º, § 1º, da Lei de Lavagem[7]. Para a prolação de decisão condenatória, o mesmo dispositivo legal dispensa somente o conhecimento da autoria da infração prévia, ou a punibilidade de seu autor; a comprovação da existência da infração prévia, com a profundidade que é própria a um processo penal, não recebe dispensa.

Nesse sentido, a partir de uma interpretação conforme a Constituição (em respeito a um Direito Penal mínimo, e sobretudo ao princípio da legalidade), deve-se impedir a afirmação de ocorrência do delito de lavagem de dinheiro a partir de condutas cuja conexão com a comissão dos delitos anteriores seja remota, e cuja sanção penal em nenhuma ou em escassa medida possa contribuir à luta contra a delinquência organizada[8].


[1] CALLEGARI, André Luís; LINHARES, Raul Marques. Lavagem de Dinheiro: com a jurisprudência do STF e do STJ. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2022. p. 175 e seg.

[2] PÉREZ MANZANO, Mercedes. Neutralidad delictiva y blanqueo de capitales: el ejercicio de la abogacía y la tipicidade del delito de blanqueo de capitales, in Política criminal y blaqueo de capitales. Madrid: Marcial Pons, 2001. p. 169-170.

[3] PÉREZ MANZANO, Mercedes. Neutralidad delictiva y blanqueo de capitales: el ejercicio de la abogacía y la tipicidade del delito de blanqueo de capitales, in Política criminal y blaqueo de capitales. Madrid: Marcial Pons, 2001. p. 170.

[4] LASCURAÍN SÁNCHEZ, Juan Antonio. Blanqueo de Capitales, in Derecho Penal Económico y de la Empresa. Madrid: Editorial Dykinson, 2018, p. 495.

[5] STJ, AgRg no HC 514.807/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Quinta Turma, julgado em 17/12/2019.

[6] Lei 9.613/98, Art. 2º O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei: (…) II – independem do processo e julgamento das infrações penais antecedentes, ainda que praticados em outro país, cabendo ao juiz competente para os crimes previstos nesta Lei a decisão sobre a unidade de processo e julgamento;

[7] Lei 9.613/98, art. 2º, § 1º A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente.

[8] PÉREZ MANZANO, Mercedes. Neutralidad delictiva y blanqueo de capitales: el ejercicio de la abogacía y la tipicidade del delito de blanqueo de capitales, in Política criminal y blaqueo de capitales. Madrid: Marcial Pons, 2001. p. 171.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor de Direito Penal no IDP-Brasília e sócio do Callegari Advocacia Criminal.

  • é advogado criminalista, doutorando e mestre em Direito Público, sócio do Ritter Linhares Advocacia Criminal e Consultoria e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

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