Opinião

Pacto federativo e condições de trabalho

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9 de dezembro de 2022, 17h35

Os servidores públicos representam algo entre 12% e 17% da força de trabalho no Brasil. Embora os dados variem de acordo com a metodologia aplicada, a participação do funcionalismo é bastante relevante não apenas pelo seu quantitativo, mas especialmente pela importância das áreas abrangidas. A projeção é ainda mais significativa quando se considera a expressividade das contratações terceirizadas que gravitam em torno dos entes públicos e a imediata pertinência de vínculos privados como os pertencentes às organizações sociais e outras formas de publicização de serviços públicos.

Para essa seara, tende a ser recorrente a ideia de que as condições de trabalho na administração pública sejam menos variadas e, de forma geral, mais dignas no âmbito do serviço público, quando comparadas com as da iniciativa privada. Ocorre que tal percepção costuma ser enviesada pela maior exposição da situação das carreias federais e estaduais.

Houve um considerável incremento da proporção de servidores públicos no país nos últimos anos. Passamos de 6,5 milhões em 1994 para 11,6 milhões em 2020 [1]. Essa expansão de servidores, contudo, só pode ser bem entendida se analisada pela ótica federativa.

A Constituição Federal de 1988 consagrou o sistema federativo de três níveis, com União, estados e municípios, além do Distrito Federal, com atribuições majoritariamente típicas dos Estados, como entes autônomos. A autonomia engloba o aspecto político, administrativo e financeiro. Desta forma, o modelo constitucional praticamente eliminou a possibilidade de ingerência política da União e dos estados sobre os municípios, que contam com seus próprios Poderes Executivos e Legislativos independentes. Também foram listados quais serviços públicos ficariam a cargo dos municípios.

Parte considerável da obrigação de prestar serviços educacionais e de saúde hoje é das cidades. Estas também são responsáveis por parcela da assistência social, do transporte coletivo, do urbanismo, e de todos os assuntos de interesse local.

Mesmo nas estruturas integradas de forma nacional, como o Serviço Único de Saúde, embora exista uma coordenação interfederativa é no plano local que ocorre boa parte das ações e de interação imediata com o cidadão e mesmo se faz a atuação preventiva de danos aos direitos sociais básicos.

Para fazer frente a está nova e crescente demanda, a ordem constitucional forneceu um sistema próprio de receitas derivadas, notadamente tributos municipais, como incidente sobre os serviços e o patrimônio imobiliário urbano, e transferência obrigatórias, como a participação na arrecadação dos impostos sobre produtos industrializados e sobre a renda.

Com a redefinição das atribuições administrativas, a Constituição passou a demandar uma maior participação da esfera política local na prestação dos serviços públicos. Nesse sentido, pode-se dizer, grosso modo, que o crescimento do funcionalismo nas últimas três décadas se concentrou nos municípios. Quase todos os quatro milhões de servidores adicionados nesse período são vinculados aos municípios. Segundo estimativas há no país hoje aproximadamente 6,6 milhões de servidores municipais, 3,8 milhões e estaduais e apenas 1,2 milhão de servidores federais.

Dentro dos quadros da administração pública municipal há diversas categorias profissionais destacando-se profissionais de saúde e da área de educação além de carreiras típicas de estado nas áreas fiscais e jurídica.

O crescimento da participação municipal na execução dos serviços públicos, apontado pelos números, também pode ser sentido pela população em geral. Durante o período de maior recrudescimento da pandemia de Covid, a profissional de enfermagem municipal, aplicando vacinas, tornou-se o rosto simbólico do serviço público [2]. Os serviços públicos municipais atendem à toda sociedade e muito provavelmente o leitor recebeu recentemente uma aplicação de vacina por parte de servidor municipal.

Ocorre que a crescente atuação dos municípios, determinada pela Constituição, não se dá de forma sustentável. Isso porque não houve suficiente contrapartida arrecadatória para cobrir à crescente demanda de serviços públicos municipais. Não é difícil constatar a maior precariedade nos órgãos públicos locais, quando comparados aos seus simétricos estaduais e federais. Atualmente, as maiores oportunidades de melhoria do serviço público concentram-se nos municípios. Essa distorção se dá por diversas razões, sendo uma das mais evidentes o desequilíbrio no pacto federativo.

Ainda que o modelo constitucional tenha previsto a forma de financiamento das cidades, há um consenso entre os autores de que a distribuição de atribuições e de receitas entre a União, os estados e os municípios se deu de forma a atribuir aos entes menores obrigações sem uma proporcional contrapartida arrecadatória. Esse desequilíbrio pode ser verificado tanto no aumento de atribuições municipais, como na dificuldade fiscal para ajustar as receitas à execução dos serviços de sua responsabilidade.

Como exemplo, temos que aos municípios é defeso a criação de novos tributos e a sua majoração normalmente encontra limitadores legais, como os 5% para a alíquota máxima do imposto sobre serviço tornando-o um tributo muito mais ameno que o seu similar no âmbito estadual [3]. A União, por seu turno, não raramente lança novos tributos, como o caso histórico da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), além de dispor de mecanismos mais eficazes para um rápido ajuste arrecadatório que vão desde a política monetária, passando pelo controle da dívida mobiliária, até a possibilidade mais alargada de alteração de alíquotas tributárias. Tudo sem considerar que independentemente de qualquer alteração fiscal, a fração da arrecadação que cabe à União pode ser considerada desproporcionalmente mais alta do que aquela destinada aos municípios em comparação com a necessidade de fazer frente aos serviços públicos de sua atribuição. Os dados que dão conta que União participa com quase 70% da arrecadação tributária [4].

Ademais, as razões políticas e sociológicas que resultaram em uma atrofia da administração municipal já vêm sendo apontadas ao menos desde a década de 1940, a exemplo da obra O município e o regime representativo no Brasil: contribuição ao estudo do coronelismo em seu título original. Nesse clássico, Victor Nunes Leal vai buscar no mandonismo, no coronelismo e no patrimonialismo uma forte justificativa sociológica para que o sistema legal sub-regule os municípios deixando-os propositalmente em uma situação de penúria relativa, quando comparado aos estados e à União como forma de desvirtuar o sistema representativo.

As constantes mobilizações de prefeitos em torno dos governos estaduais e federal buscando a efetivação de transferências voluntárias podem ser tidas como exemplo do mecanismo descrito por Leal. Por mais corriqueira que seja essa prática, nunca é ocioso lembrar que a dependência de um ente em relação a outro é um indicativo da fragilidade da federação.

A atual situação fático-jurídica de preterimento dos municípios resvala em uma maior dificuldade de atendimento das demandas públicas por parte das cidades. E nessa esteia uma precarização do trabalho desempenhado pelos servidores públicos municipais.

Inegavelmente, esquecer o município é abrir mão de um grande espaço para a melhoria e qualificação do gasto público, realidade tão necessária num contexto de austeridade fiscal e recursos escassos. Com efeito, as deficiências estruturais pelas quais passam os municípios os tornam mais suscetíveis de enfrentar demandas, inclusive trabalhistas, gerando tanto um maior custo para a sociedade e para a máquina judiciária. Cria-se um círculo vicioso onde as deficiências geram externalidades negativas que vão ser suportadas pelos entes locais, limitando ainda mais os recursos disponíveis para o aprimoramento das estruturas de controle e mesmo recuperar recursos.

Ainda com este enfoque trabalhista, é necessário pontuar que entes públicos municipais tendem a recorrer a formatos diversos de terceirização do serviço público por necessidade de ajustes orçamentários ou como forma de compatibilizar exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal em detrimento de formas mais adequadas de admissão de pessoal e sustentabilidade da força de trabalho.

Mais que a natureza dos vínculos, a própria qualidade dos ambientes de trabalho no âmbito municipal enfrenta desafios próprios. Da praxe da tutela coletiva trabalhista, é comum verificar as dificuldades concretas dos entes em ter o espaço, tempo e recursos para implementação de programas de saúde e segurança no trabalho.

Na prática, a própria interação dos órgãos de controle é facilitada nos níveis federal e estadual em detrimento da capilaridade dos municípios. Trata-se de mais um desvio que deveria ser combatido, exatamente porque a extensão do benefício social seria potencializada no nível local. Mesmo a criação de uma cultura de saúde e segurança no trabalho seria beneficiada por um trabalho bottom up, e não, top down.

Nesse sentido, o aprimoramento dos serviços públicos prestados no âmbito local passa necessariamente pelas condições de trabalho dos servidores públicos municipais. A equalização da questão não parece viável senão pela rediscussão do pacto federativo.

Essa rediscussão deve ser ampla, perpassando por toda a sociedade, adentrando nas searas de redistribuição de recursos, tributária, financeira, orçamentária. Além disso, reputa-se relevante estimular os órgãos públicos e mesmo as Justiças da União, inclusive a trabalhista, a adotarem pautas e projetos que avancem no compartilhamento de expertise e suporte técnico, considerando efetivamente as realidades locais e desafios dos gestores municipais.

 


[1] Atlas do Estado Brasileiro do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em https://www.ipea.gov.br/atlasestado/

[3] Art. 8, II, da Lei Complementar 116/2003.

[4] Boletim Estimativa da Carga Tributária Bruta do Governo Federal da Secretaria de Tesouro Nacional disponível em https://sisweb.tesouro.gov.br/.

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