Opinião

O veto ao uso das agências de inteligência e a nulidade das investigações (parte 2)

Autores

  • Luís Guilherme Vieira

    é advogado criminal cofundador e conselheiro dos Conselhos Deliberativos do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e da Sociedade dos Advogados Criminais do Rio de Janeiro (Sacerj) membro da Comissão Especial de Defesa da Liberdade de Expressão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e do Grupo Prerrogativas ex-membro titular do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça e ex-secretário-geral do Instituto dos Advogados Brasileiros onde presidiu — como também na OAB-RJ — a Comissão Permanente de Defesa do Estado Democrático de Direito.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

8 de dezembro de 2022, 6h09

Continuação da parte 1. 

3. A inteligência no Brasil
Ao instituir o Sistema Brasileiro de Inteligência, a Lei nº 9.883/1999 definiu como inteligência a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental. Assim como sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado brasileiro. Nessa conjuntura, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) é seu órgão central e tem por finalidade fornecer ao presidente da República informações e análises estratégicas, oportunas e confiáveis, necessárias ao exercício das respectivas funções.

Luís Guilherme Vieira

Com efeito, a Abin não consiste em órgão responsável pela condução de investigações criminais. Na literalidade do artigo 4º da precitada lei, compete-lhe: (1) planejar e executar ações, inclusive sigilosas, relativas à obtenção e análise de dados para a produção de conhecimentos destinados a assessorar o presidente da República; (2) planejar e executar a proteção de conhecimentos sensíveis, relativos aos interesses e à segurança do Estado e da sociedade; (3) avaliar as ameaças, internas e externas, à ordem constitucional; e (4) promover o desenvolvimento de recursos humanos e da doutrina de inteligência, e realizar estudos e pesquisas para o exercício e aprimoramento dessa atividade intelectiva.

Transportada a questão para o âmbito do estado do Rio de Janeiro (outros entes federados atuam de forma idêntica), no intuito de melhor exemplificar o ensaio, tem-se a Subsecretaria de Inteligência (Ssinte), vinculada à Secretaria de Segurança, cuja atribuição é residual e voltada para a identificação de ameaças reais ou potenciais na área da segurança pública.

Verifica-se na atuação da Ssinte a atividade de inteligência, em auxílio ao governo do estado, semelhante à da Abin, visto que ambas têm a mesma função: a produção de conhecimento estratégico para o desenvolvimento de políticas públicas, pertencendo as duas instituições ao Sistema Brasileiro de Inteligência (Lei nº 9.883/1999).

Spacca
Alexandre Morais da Rosa

Nessa esteira, a Ssinte é órgão de inteligência da Secretaria de Segurança, cuja finalidade precípua, na forma do Decreto do Estado do Rio de Janeiro nº 33.503/2003, é fracionado em diversas divisões cujo objetivo é o de planejar, normatizar, coordenar, supervisionar, executar conhecimentos (relatórios, doutrinas etc.) relativos ao sistema penal, criminal, de contrainteligência, executar medidas de segurança orgânica, física e digital.

É notório, destarte, que a atuação da Ssinte se reveste de natureza política, visto que se trata de órgão de apoio ao secretário de Segurança. Destina-se, pois, a fornecer subsídios ao governador para o desenvolvimento de políticas públicas voltadas ao mapeamento da criminalidade e à produção de estatísticas e informações do interesse da incolumidade pública, em uma perspectiva abrangente de todo o estado fluminense, permitindo, assim, o planejamento da atuação do governo no controle e combate preventivo à criminalidade. Ela poderá, ademais, prestar apoio operacional à Delegacia de Repressão ao Crime Organizado e Inquéritos Policiais Especiais (Draco-IE), conforme a Resolução Seseg/RJ nº 436/2011.

Portanto, assim como no caso da Abin, não figura no rol de atribuições da Ssinte efetuar investigação criminal, seja por ela não se tratar de polícia judiciária (tampouco a ela pode se atribuir tal mister, por força da Constituição da República e da legislação infraconstitucional), seja por conta de o destinatário de suas atividades não ser o dominus litis. Suas atividades não se direcionam a persecutio criminis, mas, sim, à atividade política do planejamento preventivo da segurança pública no Rio de Janeiro. Aplica-se a mesma lógica a todos os serviços de inteligência (estaduais e/ou federais).

4. O Sistema Brasileiro de Inteligência e a polícia judiciária
A Constituição da República disciplina (artigo 144) que a segurança pública é dever do Estado, além de direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e dos patrimônios, por intermédio dos seguintes órgãos: (1) Polícia Federal; (2) Polícia Rodoviária Federal; (3) Polícia Ferroviária Federal; (4) Polícia Civil; (5) Polícia Militar; e, (6) Corpo de Bombeiros.

Diante do quadro estabelecido constitucionalmente, verifica-se que incubem às polícias federal e civis as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais; exceto, as militares. Em complemento, o artigo 4o do Código de Processo Penal reforça essa orientação, ao dispor que a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições. E terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Por conseguinte, por detentora que é da titularidade da investigação preliminar encabeçada pelo sistema policial, compete à autoridade judiciária o poder de mando sobre os atos destinados a investigar os fatos e a suposta autoria, apontados na notitia criminis ou por meio de qualquer outra fonte (lícita e legítima) de informação [17]. Somente em situações excepcionais, devidamente cometida por lei, consoante estabelece o parágrafo único do artigo 4º, do CPP, permitir-se-á que essa atividade seja exercida por órgão diverso da polícia judiciária [18].

Lado outro, a atividade de inteligência e a de contrainteligência têm caráter preventivo, seja no que tange à elaboração de políticas públicas, seja no que tange à garantia da correta preparação do Estado frente a ameaças vindouras, a partir de informações cuja obtenção não é possível pelas vias ordinárias. Nesse sentido, o Decreto nº 8.793/2016, que fixa a Política Nacional de Inteligência, descreve que, para efeito da implementação da PNI, adotam-se os seguintes conceitos: "Atividade de Inteligência: exercício permanente de ações especializadas, voltadas para a produção e difusão de conhecimentos, com vistas ao assessoramento das autoridades governamentais nos respectivos níveis e áreas de atribuição, para o planejamento, a execução, o acompanhamento e a avaliação das políticas de Estado. A atividade de Inteligência divide-se, fundamentalmente, em dois grandes ramos: I – Inteligência: atividade que objetiva produzir e difundir conhecimentos às autoridades competentes, relativos a fatos e situações que ocorram dentro e fora do território nacional, de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório, a ação governamental e a salvaguarda da sociedade e do Estado; II – Contrainteligência: atividade que objetiva prevenir, detectar, obstruir e neutralizar a Inteligência adversa e as ações que constituam ameaça à salvaguarda de dados, conhecimentos, pessoas, áreas e instalações de interesse da sociedade e do Estado". Entretanto, os pressupostos da atividade de inteligência são: "2.3 Atividade de assessoramento oportuno: À Inteligência compete contribuir com as autoridades constituídas, fornecendo-lhes informações oportunas, abrangentes e confiáveis, necessárias ao exercício do processo decisório. Cumpre à Inteligência acompanhar e avaliar as conjunturas interna e externa, buscando identificar fatos ou situações que possam resultar em ameaças ou riscos aos interesses da sociedade e do Estado. O trabalho da Inteligência deve permitir que o Estado, de forma antecipada, mobilize os esforços necessários para fazer frente às adversidades futuras e para identificar oportunidades à ação governamental. 2.4 Atividade especializada: A Inteligência é uma atividade especializada e tem o seu exercício alicerçado em um conjunto sólido de valores profissionais e em uma doutrina comum. A atividade de Inteligência exige o emprego de meios sigilosos, como forma de preservar sua ação, seus métodos e processos, seus profissionais e suas fontes. Desenvolve ações de caráter sigiloso destinadas à obtenção de dados indispensáveis ao processo decisório, indisponíveis para coleta ordinária em razão do acesso negado por seus detentores. Nesses casos, a atividade de Inteligência executa operações de Inteligência – realizadas sob estrito amparo legal –, que buscam, por meio do emprego de técnicas especializadas, a obtenção do dado negado".

Portanto, o processo de construção e maturação das atividades de inteligência e contrainteligência não se confunde com uma investigação criminal, pois enquanto esta procura elucidar crimes e contravenções, aquelas visam conhecer atores e fenômenos mais abrangentes, dados indispensáveis ao processo decisório do chefe de Estado, para que políticas públicas mais eficazes possam ser desenhadas e implementadas. O produto final da investigação criminal é municiar o Ministério Público para a deflagração, ou não, de um processo criminal, ao passo que o produto da operação de inteligência é um relatório sobre o conhecimento adquirido [19].

Continua na parte 3.


[17] LOPES JR., Aury. Op. cit., pp. 127-28.

[18] Idem.

[19] CEPIK, Marco A. C. Espionagem e democracia. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 128. Disponível em: http://professor.ufrgs.br/marcocepik/files/cepik_-_2003_-_fgv_-_espionagem_e_democracia_21-apr- 14_1.compressed.pdf. Acesso em: 18 ago. 2018.

Autores

  • é advogado criminal, cofundador e conselheiro dos Conselhos Deliberativos do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e da Sociedade dos Advogados Criminais do Rio de Janeiro (Sacerj), membro da Comissão Especial de Defesa da Liberdade de Expressão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ex-membro titular do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça e ex-secretário-geral do Instituto dos Advogados Brasileiros, onde presidiu — como também na OAB-RJ — a Comissão Permanente de Defesa do Estado Democrático de Direito.

  • é doutor em Direito (UFPR), mestre em Direito (UFSC), professor associado de Processo Penal da UFSC e professor do Programa de Graduação, Mestrado e Doutorado da Univali, juiz de Direito do TJ-SC, ORCID 0000-0002-3468-3335, e pesquidador do SpinLawLab (Univali).

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