Direto do Carf

Carf analisa a tributação do ágio na emissão de ações e quotas

Autor

  • Alexandre Evaristo Pinto

    é conselheiro do Carf doutorando em Controladoria e Contabilidade pela Universidade de São Paulo doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela USP mestre em Direito Comercial pela USP professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis Financeiras e Atuariais (Fipecafi).

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7 de dezembro de 2022, 8h37

Nesta semana, trataremos dos precedentes do Carf acerca da tributação ou não do ágio na emissão de ações ou quotas.

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Não poderia iniciar esta coluna sem uma devida homenagem ao querido professor Ernesto Rubens Gelbcke[2], que nos deixou na última semana e cujo legado na atividade acadêmica e profissional na área contábil é enorme.

Uma das principais contribuições do professor Gelbcke para a doutrina contábil pátria foi a sua participação na elaboração do então "Manual de Contabilidade das Sociedades por Ações", da Fipecafi, ao lado dos professores Sérgio de Iudícibus e Eliseu Martins. Com a edição da Lei nº 6.404/76 e a modernização das práticas contábeis brasileiras, a Fipecafi foi procurada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em 1977 para elaborar um manual para orientação das empresas, profissionais e mercado acerca das novas normas contábeis, sendo a 1ª edição do Manual publicada em 1978. Vale notar que o Decreto-Lei nº 1.598/77 estendeu as regras de apuração do lucro contábil das sociedades por ações para todas as pessoas jurídicas independentemente do tipo societário[3].

Com o processo de convergência das normas contábeis brasileiras ao padrão internacional (IFRS), o manual passa por reformulação ganhando o reforço do professor Ariovaldo dos Santos em 2010 e a se chamar "Manual de Contabilidade Societária".

Tal obra se tornou referência não só para os profissionais da Contabilidade, mas também para os profissionais jurídicos, sobretudo, aqueles que atuam com Direito Tributário. Em uma breve pesquisa na base de dados do Carf , é possível identificar que o Manual da Fipecafi já foi citado em mais de 500 acórdãos.

Feita esta devida menção ao professor Gelbcke, torna-se fundamental situarmos a questão da emissão de ações ou de quotas com ágio.

Em sua redação original, o artigo 178 da Lei n. 6.404/76 estabelecia que o patrimônio líquido se dividia nas seguintes contas: (i) capital social; (ii) reservas de capital; (iii) reservas de reavaliação; (iv) reservas de lucros; e (v) lucros ou prejuízos acumulados[4].

No que tange especificamente ao ágio na emissão de ações, o artigo 182, §1º, a, da Lei n. 6.404/76[5] determina a classificação como reserva de capital da contribuição do subscritor de ações que ultrapassar o valor nominal e a parte do preço de emissão das ações sem valor nominal que ultrapassar a importância destinada à formação do capital social.

Segundo o Manual de Contabilidade Societária Fipecafi: "as reservas de capital são constituídas de valores recebidos pela companhia e que não transitam pelo resultado como receitas, por se referirem a valores destinados a reforço de seu capital, sem terem como contrapartida qualquer esforço da empresa em termos de entrega de bens ou de prestação de serviços"[6].

Como se observa, além da determinação legal dispondo nesse sentido, o ágio na emissão de ações se enquadra perfeitamente no conceito de reserva de capital.

Em igual sentido, a nota explicativa da Instrução CVM n. 59/86 estabelecia que: "as reservas de capital representam acréscimos efetivos aos ativos da companhia que não foram originados dos lucros auferidos em suas operações, por não representarem efeitos de seus próprios esforços, mas assim de contribuições de acionistas ou de terceiros para o patrimônio líquido da companhia com o fim de propiciar recursos para o capital (em sentido amplo)".

Nesse sentido, não resta dúvida da classificação como reserva de capital do montante recebido a título de ágio na emissão de ações. Ainda que não haja dispositivo específico tratando do ágio na emissão de quotas, cumpre ressaltar que as disposições contábeis das sociedades por ações também se aplicam às sociedades limitadas, assim como em termos conceituais os valores recebidos em virtude de ágio na emissão de quotas se destinam a reforçar o capital e não são contrapartidas de qualquer esforço da entidade.

Sob o ponto de vista societário, Sampaio de Lacerda apontava ainda à luz do Decreto-Lei n. 2.627/40 que a emissão de ações por um valor maior do que o nominal era possível e justificável quando o valor de mercado de tais ações fosse superior ao valor nominal, de forma que não seria equitativa a subscrição das novas ações sem pagamento de prêmio ou ágio, pois representaria uma vantagem para aqueles que resolvessem entrar na sociedade, após períodos exitosos da entidade, da mesma maneira como entraram os primeiros subscritores. O referido autor menciona inclusive que uma perspectiva positiva do desempenho da entidade pode ter derivado de sacríficos anteriores dos primeiros subscritores, que podem ter sido privados de dividendos e quaisquer outras vantagens, o que possibilitou o desenvolvimento da sociedade[7].

Com relação aos aspectos tributários, o artigo 38, I, do Decreto-Lei n. 1.598/77[8] estabeleceu que não serão computadas na determinação do lucro real as importâncias, creditadas a reservas de capital, que o contribuinte com a forma de companhia receber dos subscritores de valores mobiliários de sua emissão a título de ágio na emissão de ações.

Ainda que o dispositivo em comento se refira especificamente ao ágio na emissão de "ações" e se refira ao contribuinte com a forma de "companhia", resta saber se estar-se-á diante de uma norma isentiva ou de uma norma que apenas explicita uma não incidência, já que tal ágio nem transitaria pelo resultado do exercício.

Feitas as considerações gerais sobre o tema, passaremos à análise dos precedentes do Carf.

Considerando a previsão expressa de não tributação do ágio na emissão de ações das sociedades anônimas, verifica-se que a maior controvérsia acaba envolvendo a tributação ou não do ágio na emissão de quotas.

No Acórdão 1201-00.036 (de 12/05/09), decidiu-se por maioria de votos pela não tributação do ágio na emissão de ações.

No voto vencedor, o redator designado[9] aponta que a então regra das sociedades limitadas, o Decreto nº 3.708/19, previa que se aplicam as disposições da lei de sociedades por ações para o que não estiver regulado no estatuto social das sociedades limitadas.

Tal processo foi objeto de recurso especial interposto pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, sendo que no Acórdão 9101­002.009 (de 07/10/14), decidiu-se por voto de qualidade pela tributação do ágio na emissão de quotas como se ele fizesse parte do resultado do exercício para fins de IRPJ e CSLL.

No voto vencedor, o redator designado[10] assinala que a previsão expressa do artigo 38, I, do Decreto-Lei n. 1.598/77 se refere tão somente às sociedades por ações, de forma que o legislador não teria feito tal previsão se entendesse que não há fato gerador na emissão de ações com ágio. Além disso, um eventual tratamento tributário diferente para sociedades anônimas e para sociedades limitadas poderia se fundamentar na extrafiscalidade, uma vez que o legislador quis incentivar o mercado de capitais.

No voto vencido, o conselheiro relator[11] destacou que não há que se falar em tributação do ágio na emissão de quotas, uma vez que ele não registrável no resultado do exercício. Ademais, a regra do artigo 38, I, do Decreto-Lei n. 1.598/77 estipula uma não incidência e não uma isenção.

Mais recentemente houve casos em que se discutia a potencial tributação por PIS e COFINS do montante recebido por sociedade por ações a título de ágio na emissão de ações. Os auditores fiscais autuaram as contribuintes com fundamento em uma interpretação de que tal montante teria a natureza de receita e que esta teria um alcance amplo no âmbito do regime não cumulativo, ainda que tivesse sido registrada como reserva de capital.

No Acórdão 3402­003.196 (de 23/8/16), a turma decidiu por maioria de votos por afastar a tributação de PIS e Cofins sobre o ágio na emissão de ações.

O conselheiro relator[12] assinala que ainda que tal ágio possa configurar ingresso de recursos na entidade, não se configura como receita, visto que não advém das atividades empresariais desenvolvidas pela contribuinte. Ademais, o relator pontua a previsão de tal reserva de capital pela Lei nº 6.404/76.

No Acórdão 3402­006.298 (de 27/02/19), a turma decidiu de forma unânime por afastar a tributação de PIS e Cofins sobre o ágio na emissão de ações.

O conselheiro relator[13] assevera que o ágio na emissão de ações é figura típica prevista na Lei n. 6.404/76, não possui natureza jurídica de receita e representa uma transação de capital com os sócios, sendo registrado devidamente como reserva de capital.

Há inclusive citação do conceito de reserva de capital previsto no Manual de Contabilidade Societária da Fipecafi, na linha de que são transações de capital com os sócios, que não transitam pelo resultado do exercício e que não estão relacionados com esforços da entidade em realizar as suas atividades.

Diante do exposto, nota-se que os precedentes do Carf têm reafirmado que não há tributação pelo IRPJ, CSLL, PIS e Cofins sobre o ágio na emissão de ações. Todavia, quando se trata de ágio na emissão de quotas, há precedente desfavorável ao contribuinte na Câmara Superior de Recursos Fiscais, no sentido de que a regra contida no artigo 38, I, do Decreto-Lei n. 1.598/77 apenas versa sobre a não tributação se a sociedade se reveste sob a forma de sociedade por ações.

*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[2] Ernesto Rubens Gelbcke foi Professor Doutor da FEA/USP, onde se formou Bacharel em Contabilidade e Doutor em Contabilidade. Atuou no desenvolvimento de normas contábeis e de auditoria por meio de participação marcante no Ibracon, CFC, Comissão Consultiva da CVM, Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), IFAC e IASC/IASB. Era titular da cadeira 23 da Academia Paulista de Contabilidade.

[3] Decreto-Lei n. 1.598/77: “Art 67 – Este Decreto-lei entrará em vigor na data da sua publicação e a legislação do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas será aplicada, a partir de 1º de janeiro de 1978, de acordo com as seguintes normas: (…)

XI – o lucro líquido do exercício deverá ser apurado, a partir do primeiro exercício social iniciado após 31 de dezembro de 1977, com observância das disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976”.

[4] Lei n. 6.404/76: “Art. 178. No balanço, as contas serão classificadas segundo os elementos do patrimônio que registrem, e agrupadas de modo a facilitar o conhecimento e a análise da situação financeira da companhia. (…)

§ 2º No passivo, as contas serão classificadas nos seguintes grupos: (…)

d) patrimônio líquido, dividido em capital social, reservas de capital, reservas de reavaliação, reservas de lucros e lucros ou prejuízos acumulados”.

[5] Lei n. 6.404/76: “Art. 182. A conta do capital social discriminará o montante subscrito e, por dedução, a parcela ainda não realizada.

§ 1º Serão classificadas como reservas de capital as contas que registrarem:

a) a contribuição do subscritor de ações que ultrapassar o valor nominal e a parte do preço de emissão das ações sem valor nominal que ultrapassar a importância destinada à formação do capital social, inclusive nos casos de conversão em ações de debêntures ou partes beneficiárias;”.

[6] GELBCKE, Ernesto Rubens; SANTOS, Ariovaldo dos; IUDÍCIBUS, Sérgio de; MARTINS, Eliseu. Manual de Contabilidade Societária. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 383-384.

[7] LACERDA, José Candido Sampaio de. Da emissão de ações com ágio no direito brasileiro. Imprenta: Rio de Janeiro, Universidade do Brasil, 1949.

[8] Decreto-Lei n. 1.598/77: “Art 38 – Não serão computadas na determinação do lucro real as importâncias, creditadas a reservas de capital, que o contribuinte com a forma de companhia receber dos subscritores de valores mobiliários de sua emissão a título de:

I – ágio na emissão de ações por preço superior ao valor nominal, ou a parte do preço de emissão de ações sem valor nominal destinadas à formação de reservas de capital;”.

[9] Conselheiro Guilherme Adolfo dos Santos Mendes.

[10] Conselheiro Marcos  Aurélio  Pereira  Valadão.

[11] Conselheiro Valmir Sandri.

[12] Conselheiro Diego Diniz Ribeiro.

[13] Conselheiro Pedro Sousa Bispo.

Autores

  • é conselheiro titular da Câmara Superior de Recursos Fiscais da 1ª Seção do Carf, ex-conselheiro titular da 2ª Seção do Carf, doutorando em Controladoria e Contabilidade pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP, mestre em Direito Comercial pela USP, professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e presidente da Associação dos Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf (Aconcarf).

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