Território Aduaneiro

Copa do Mundo, Natal e Réveillon: viagens e compras sob a mira da Aduana

Autor

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

6 de dezembro de 2022, 8h00

Neste fim de ano, quando o desejo de comprar e de viajar se acumula com as emoções da torcida na Copa do Mundo no Qatar, parece-me bastante oportuno conversar a respeito da tributação sobre as compras no exterior, tanto em viagens quanto em aquisições pela internet, bem como acerca dos valores em espécie que podem ser portados nas viagens internacionais. Essa é minha proposta ao leitor. Por favor, me acompanhe nessa viagem!

Spacca
O Imposto sobre a Importação, como sabemos, onera produtos importados e é estabelecido com a finalidade de discriminar o importado em favor do nacional. Podemos também encontrar alíquotas mais altas com lastro na preocupação com a balança de pagamentos. Essa oneração é legítima se estabelecida em conformidade com os compromissos internacionais, especialmente aqueles administrados pela Organização Mundial do Comércio e pelo Mercosul, e é praticada, com maior ou menor intensidade, mundo afora.

Há também tributos internos replicados na importação: IPI, ICMS, contribuição para o PIS/Pasep, Cofins, Cide-Combustíveis, ISS. Incidem ainda na importação pelo modal aquaviário o Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) e a Taxa Mercante. Tal tributação encontra respaldo no princípio do tratamento nacional e também na função niveladora da tributação e, assim, visa a garantir que os produtos importados tenham a mesma carga tributária dos nacionais em relação aos tributos internos. Ou seja, vislumbra-se, do âmbito externo, o objetivo de não criar barreiras comerciais e, do âmbito interno, o desígnio de garantir equilíbrio de concorrência, ao não permitir menor oneração tributária dos produtos importados [1].

Esse aspecto concorrencial é muito relevante, pois a matriz tributária brasileira tem forte concentração na tributação do consumo, o que além do grande potencial de regressividade (em um país que se destaca pela grande desigualdade socioeconômica), exige constante e intensa fiscalização dos tributos sobre o consumo na importação [2].

Por sua vez, na importação realizada por pessoas físicas em viagem internacional, a situação é bastante diversa. Os bens novos trazidos como bagagem são objeto de uma isenção generosa, e o valor que ultrapasse o limite de isenção está sujeito exclusivamente ao Imposto sobre a Importação em alíquota diferenciada. Os viajantes recebem ainda outra isenção, para compras em free shops ou lojas francas.

Um primeiro questionamento que poderia nos tomar seria o fundamento dessa política de benefício fiscal. Por que conceder esse tipo de isenção? Qual o interesse público envolvido? Geraria prejuízos concorrenciais para a produção nacional?

A concessão da isenção de bagagem se fundamenta no entendimento de que é uma concessão antiga e consolidada no direito e nas relações internacionais, com a expectativa de estímulo ao intercâmbio e às trocas sociais e culturais, uma política de boas relações entre os países. Quanto à isenção nas lojas francas de chegada, o escopo é estimular o viajante a adquirir no Brasil, deixando de comprar no exterior, como medida para incentivar a economia e o emprego nacionais.

Contudo, é importante ressaltar que, em um país como o Brasil, dos mais desiguais do mundo, é necessário ter muito cuidado para não conceder isenções tributárias que aumentem a regressividade do sistema tributário [3].

No Brasil, mais do que na grande maioria dos países do mundo, o poder aquisitivo e o poder de consumo se concentram de maneira muito acentuada nos estratos mais ricos da população. Dessa forma, em um câmbio favorável, o percentual mais rico da população intensifica as viagens, aumenta as aquisições no exterior, usufruindo de isenções, para bagagem e para as compras nas lojas francas, que afastam a pesada carga tributária brasileira. Isso, além de impactar a tributação, afeta a economia, com possibilidade de acirrar a desindustrialização e comprometer o nível de riqueza e emprego nacionais. Portanto, com a recuperação da crise, com a esperada apreciação da moeda brasileira, é necessário monitorar constantemente a situação.

Após essas reflexões, que se revelam ainda mais significativas com a iminência de um governo que prioriza a equidade e a justiça fiscal e social, passemos à situação atual de oneração tributária das bagagens, das remessas internacionais e das compras em lojas francas na chegada no Brasil.

É considerada bagagem acompanhada aquela que o viajante portar consigo no mesmo meio de transporte em que viaje, desde que não amparada por conhecimento de carga ou documento equivalente [4]. Não é devido o imposto sobre a importação sobre livros, folhetos e periódicos; roupas e outros artigos de vestuário, artigos de higiene e do toucador e calçados, para uso próprio do viajante, em quantidade e qualidade compatíveis com a duração e a finalidade da sua permanência no exterior [5].

A isenção para bens adquiridos no exterior passou de US$ 500 para US$ 1.000 no ingresso via aérea ou marítima, e de US$ 300 para US$ 500 no ingresso via terrestre, fluvial ou lacustre [6]. As compras que ultrapassarem a cota de isenção devem ser declaradas de forma on-line por meio da Declaração Eletrônica de Bens do Viajante (e-DBV) [7].

Cumpre lembrar que, além do limite de valor, há limites quantitativos para a isenção como bagagem de bens adquiridos no exterior [8]. Há ainda vedações expressas [9].

Ademais, é proibido trazer como bagagem produtos que, pela sua qualidade ou quantidade, revelem finalidade comercial ou industrial, excetuado apenas o caso em que se porte bem destinado à pessoa jurídica estabelecida no Brasil e se informe espontaneamente tal condição ao fisco. Nesta situação, cabe à pessoa jurídica promover os procedimentos do regime comum de importação [10].

No caso de bens que se enquadrem no conceito de bagagem, mas que ultrapassem o limite de valor ou quantidade para isenção, é cobrado somente Imposto sobre a Importação em relação ao excedente, com alíquota de 50% [11]. Se ocorrer omissão, falsidade ou inexatidão na declaração, será exigida, além do imposto, multa de 50% sobre o valor excedente da quota de isenção [12].

Nas lojas francas em porto ou aeroporto [13], o viajante procedente do exterior pode adquirir na sua chegada, com isenção, bens estrangeiros ou desnacionalizados, cujo limite de valor passou de US$ 500 para US$ 1.000  [14]. Nas lojas francas terrestres, o limite passou de US$ 300 para US$ 500. Devem ser, em todos os casos, respeitados os limites quantitativos [15].

No que concerne ao dinheiro em espécie, em moeda nacional ou estrangeira, o valor que o viajante pode carregar sem preencher e-DBV aumentou de R$ 10 mil para US$ 10 mil, por meio da Lei nº 14.286, de 2021, que entra em vigor no dia 29 de dezembro de 2022 [16]. Anote-se que, se não for feita a declaração, é aplicada a pena de perdimento sobre o valor da moeda que ultrapassar o limite.

Para aqueles que ficam em casa, o desejo de consumir e presentear pode ser apaziguado nas compras internacionais por meio da internet, as denominadas remessas postais ou encomendas aéreas internacionais. Essas compras podem ser no valor de até US$ 3.000, excluídos bebidas alcóolicas e produtos de tabacaria [17].

Segundo a Secretaria da Receita Federal, há isenção para remessa internacional de pessoa física para pessoa física no valor de até US$ 50 [18]. Há previsão de alíquota zero para medicamentos com valor de até US$ 10 mil importados por pessoas físicas para uso humano [19].

Nas remessas dentro do limite de valor de US$ 3.000 que não se enquadrem na isenção, é aplicado o regime de tributação simplificada [20]. Neste regime, há cobrança de Imposto sobre a Importação com alíquota de 60%, podendo ainda incidir o ICMS. Nas operações acima de US$ 500, é cobrado pelos Correios o valor de R$ 15, a título de "taxa de despacho postal" [21].

Assim, evidenciando que foram concedidas recentemente algumas benesses para aqueles que estão em condições de viajar e comprar — aumento da isenção de bagagem, aumento da quota isenta nas lojas francas e também do valor em espécie que pode ser portado em viagem internacional — apresento este artigo como fechamento de minha participação na coluna este ano, com meus votos aos leitores e aos colegas de coluna de feliz Natal e um Ano Novo muito próspero! Muito obrigada pela companhia e que possamos continuar juntos nossas viagens pelo Território Aduaneiro em 2023!

 


[1] Sobre a tributação na importação, recomenda-se remissão ao artigo que celebrou o Carnaval de 2022 nesta coluna: "Um Carnaval Tributário na Aduana" (disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mar-01/territorio-aduaneiro-carnaval-tributario-aduana-abre-alas-eu-quero-passar. Acesso em: 4 dez. 2022).

Ao leitor que procura aprofundamento, propõe-se a consulta de dois textos, ambos de minha autoria: Tributos sobre o Comércio Exterior. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012; e Tributos Incidentes sobre a Importação: regime Jurídico e carga tributária brasileira. In: Paulo de Barros Carvalho. (Org). Direito o e os novos horizontes do processo (XII Congresso Nacional de Estudos Tributários do Ibet). 1ed.São Paulo: Noeses, 2015, v. 1, p. 759-779.

[2] Recomendo a leitura de interessante artigo da ConJur sobre a regressividade tributária: "Justiça Distributiva. O efeito perverso da regressividade no sistema tributário brasileiro", de Laura Romano Campedelli e Gisele Bossa (disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-nov-06/efeito-perverso-regressividade-sistema-tributario-brasileiro. Acesso em: 4 dez. 2022). Àqueles que tenham interesse, além da própria obra de Piketty, indico a resenha do livro: MEIRA, Liziane Angelotti; SANTOS, P. G. F. ; TABAK, B. M. O Capital do Século XXI (Thomas Piketty). Brasília: Secretaria da Receita Federal do Brasil, 2014.

[3] Em relação ao índice de Gini, que representa a desigualdade econômica, numa lista que contém quase duzentos países, o Brasil tem figurado nos últimos anos entre os que ostentam os dez piores índices (disponível em: https://www.worldeconomics.com/Inequality/Gini-Coefficient/Brazil.aspx. Acesso em: 4 dez. 2022).

Em importante estudo publicado este ano pelo World Inequality Lab, que integra a Escola de Economia de Paris, com direção de Thomas Piketty e colaboração de cerca de uma centena de pesquisadores internacionais, é possível enxergar nossa triste realidade. Verificou-se que, mesmo com importantes programas de redistribuição de renda, no Brasil, os 50% mais pobres possuem menos de 1% da riqueza (na Argentina, por exemplo, esse grupo ficou com 6%). Os 1% mais abastados ficam com quase metade da riqueza nacional (nos EUA, esse grupo fica com 35% da riqueza (disponível em: https://wir2022.wid.world/country-appendix-glossary/. Acesso em: 4 dez. 2022

[4] Conforme artigo 2º, inciso I, da IN SRF nº 1.059, de 2010.

[5] Conforme artigo 2º da IN RFB nº 1.059, de 2010.

[6] O aumento dos limites isencionais está previsto na Portaria ME no 15.224, de 2021, e entrou em vigor no primeiro dia de 2022.

[8] Conforme o artigo 33 da IN RFB nº 1.059, de 2010:

"§ 1º Os bens a que se refere o inciso III do caput, para fruição da isenção, submetem-se ainda aos seguintes limites quantitativos:

I – bebidas alcoólicas: 12 (doze) litros, no total;

II – cigarros: 10 (dez) maços, no total, contendo, cada um, 20 (vinte) unidades;

III – charutos ou cigarrilhas: 25 (vinte e cinco) unidades, no total;

IV – fumo: 250 gramas, no total;

V – bens não relacionados nos incisos I a IV, de valor unitário inferior a US$ 10.00 (dez dólares dos Estados Unidos da América): 20 (vinte) unidades, no total, desde que não haja mais do que 10 (dez) unidades idênticas; e

VI – bens não relacionados nos incisos I a V: 20 (vinte) unidades, no total, desde que não haja mais do que 3 (três) unidades idênticas.

§ 2º Para as vias terrestre, fluvial ou lacustre, o:

I – valor unitário a ser considerado no limite quantitativo a que se refere o inciso V do § 1o será de US$ 5.00 (cinco dólares dos Estados Unidos da América); e

II – limite quantitativo a que se refere o inciso VI do § 1o será de 10 (dez) unidades, no total, desde que não haja mais do que 3 (três) unidades idênticas."

[9] Nos termos do artigo 2º, § 3º, da IN SRF nº 1.059, de 2010, não se enquadram como bagagem:

"I – veículos automotores em geral, motocicletas, motonetas, bicicletas com motor, motores para embarcação, motos aquáticas e similares, casas rodantes (motor homes), aeronaves e embarcações de todo tipo; e

II – partes e peças dos bens relacionados no inciso I, exceto os bens unitários, de valor inferior aos limites de isenção, relacionados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB)."

[10] Conforme artigo 161, § 2o, do Regulamento Aduaneiro. Dessa forma, foi consolidada a disposição legal que proíbe pessoa física de importar mercadorias para fins comerciais ou industriais. Contudo, permitiu-se expressamente a prática comum de as empresas, diante de necessidades prementes, enviarem pessoa física para buscar bens ou peças no exterior, desde que o fisco seja devidamente informado e que a empresa, como real importadora, submeta o bem aos procedimentos normais de importação, com o pagamento dos tributos sobre a importação.

[11] Trata-se do regime de tributação especial, previsto para bagagens, nos termos do artigo 101 do Regulamento Aduaneiro (com fulcro no art. 2o do Decreto-lei nº 2.120, de 1984).

[12] Nos termos do artigo 702, III, "b",do Regulamento Aduaneiro.

[13] Conforme artigos 476 a 479 do Regulamento Aduaneiro.

[14] Conforme artigo 11 da Portaria MF nº 2071, de 2020.

[15] Os limites quantitativos para aquisição em loja franca sem pagamento dos tributos estão previstos na IN RFB nº 2075, de 2022:

"Art. 23. A aquisição de mercadoria em loja franca, efetuada nos termos da alínea "c" do inciso I ou do inciso II do caput do art. 21, fica sujeita aos seguintes limites quantitativos:

I – 12 litros de bebidas alcoólicas;

II – 20 (vinte) maços de cigarros;

III – 25 (vinte e cinco) unidades de charutos ou cigarrilhas; e

IV – 250 g (duzentos e cinquenta gramas) de fumo preparado para cachimbo.

§ 1º. Para a loja franca em fronteira terrestre, os limites a que se refere o caput serão aplicados a cada intervalo de 30 (trinta) dias.

§ 2º. Quando a aquisição ocorrer em loja franca de porto ou aeroporto, o limite quantitativo será de 24 (vinte e quatro) unidades de bebidas alcoólicas, observado quantitativo máximo de 12 (doze) unidades por tipo de bebida, não se aplicando disposto no inciso I do caput."

[16] Os viajantes brasileiros têm optado por levar dinheiro em espécie para evitar a tributação do câmbio IOF com alíquota de 6,38% incidente na utilização de cartão de crédito no exterior. Anote-se que, por meio do Decreto no 10.997, de 2022, essas alíquotas passam por uma redução gradual: 5,38% em 2023, 4,38% em 2024, 3,38% em 2025, 2,38% em 2026 e 1,38% em 2027. Até 2029, serão zeradas as alíquotas do imposto sobre operações de câmbio. Isso se deve a compromissos assumidos pelo Brasil no processo de adesão à OCDE.

[17] Previsto na Portaria MF no 156, de 1999.

[18] Deixemos para artigo futuro o debate acerca do limite isencional de US$ 100 para compras por pessoas físicas no exterior, questão já com entendimento uniformizado a favor do contribuinte no TRF-4 (disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=11975. Acesso em: 4 dez. 2022).

[19] Conforme artigo 1º, §§ 1º e 2º da Portaria MF no 156, de 1999.

[20] Previsto na Portaria MF no 156, de 1999.

[21] Trata-se de valor exigido pelos Correios com base nos Atos da União Postal Universal (UPU), acordo internacional assinado pelo Brasil, incorporado por meio do Decreto Legislativo no 701, de 2009, e promulgado pelo Decreto nº 9.358, de 2018. Essa cobrança também tem sido objeto de contestação no Judiciário e foi objeto de uniformização de entendimento no TRF-4, no sentido da abusividade da exigência (Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei nº 5012346-56.2018.4.04.7003/PR).

Autores

  • é presidente da 3ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

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