Território Aduaneiro

Um Carnaval tributário na Aduana

Autor

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

1 de março de 2022, 8h00

Terça-feira de Carnaval! Não resisti em refletir um pouco sobre essa importante festa. Sempre que penso em Carnaval, lembro-me da obra de Augusto Becker [1], que foi além da crítica ao sistema tributário, aproximando-se da história e da crítica social, mas que é muito mencionada quando nos deparamos com o cipoal tributário brasileiro.

Spacca
Assim, sem deixar de reconhecer toda legitimidade das bandeiras a favor da autonomia do Direito Aduaneiro, vou tratar um pouco da intersecção do aduaneiro com o tributário. Com frequência, esse aspecto é visto com desdém. Muitos aduaneiristas relegam a importância da tributação do comércio exterior a aspectos extrafiscais; ao passo que muitos tributaristas evitam o contato com a tributação do comércio exterior em razão das especificidades aduaneiras intrincadas nessa matéria.

Contudo, a verdade, sentida intuitivamente, especificamente na importação, pelo contribuinte e pela sociedade, é que a carga tributária é muito relevante. A primeira impressão é que esse ônus tributário é excessivamente alto (e deveria ser reduzido) e que a regulação desses tributos é esparsa e excessivamente complexa, não garantindo a segurança jurídica dos contribuintes, especialmente tendo em conta a flexibilidade dos tributos aduaneiros.

Importante tentar ultrapassar a camada de fantasia e desvendar um pouco esse cipoal tributário [2]. Talvez o leitor tenha sentido que já iniciamos nos atendo aos tributos na importação. Como nosso país precisa colocar nossos produtos no mercado externo, não tributamos a operação de exportação e tentamos (ainda que de modo muitas vezes complexo e aquém da eficácia desejada) [3] desonerar os tributos que tenham sido cobrados na cadeia produtiva das exportações.

Na importação, sim, há uma carga tributária considerável e são diversos os tributos incidentes. Aqui dá samba. Há tributos concebidos para incidir especificamente sobre o comércio internacional e outros que normalmente oneram a produção interna e são replicados na importação.

Os primeiros, denominamos de tributos aduaneiros, englobam o imposto sobre a importação, o imposto sobre a exportação e também a taxa cobrada pela utilização do sistema de comércio exterior (a taxa Siscomex, exigida somente na importação) [4]. Limitemo-nos, pelos motivos já indicados, a analisar os tributos na importação.

Como tributos internos replicados na importação, nossa lista é maior: IPI, ICMS, contribuição para o PIS/Pasep, Cofins, Cide-Combustíveis, ISS. Incidem ainda na importação pelo modal aquaviário o adicional ao frete para renovação da marinha mercante (AFRMM) e a taxa mercante.

O fundamento da cobrança do imposto sobre a importação é realmente extrafiscal, como costumam asseverar os aduaneiristas (e também os tributaristas). Em regra, busca-se discriminar os bens importados em proteção dos produtos ou da produção nacional. Podemos também encontrar alíquotas mais altas com lastro em preocupação com o balanço de pagamentos.

A confecção constitucional do imposto sobre a importação atribui comparativamente aos demais tributos mais flexibilidade, ao permitir que o Executivo altere as alíquotas por ato infralegal e sem observância dos princípios constitucionais da anterioridade geral e nonagesimal. No entanto, a dinâmica internacional de abertura de mercados levou o Brasil a se comprometer (especialmente no âmbito da Organização Mundial do Comércio e do Mercosul) com rígidos limites ao imposto sobre a importação, engessando-nos em relação ao aumento desse imposto.

Por sua vez, os tributos internos cobrados na importação podem ser entendidos com base no princípio do tratamento nacional. Esse princípio consta de acordos internacionais e indica que um país pode ter a carga tributária que julgar conveniente sobre seus produtos, todavia, sobre o importado, com exceção do imposto sobre a importação, não pode ser colocada uma oneração tributária maior do que aquela nos produtos nacionais.

Ou seja, é permitido replicar no importado a carga tributária sobre o similar nacional, mas não é permitido usar a tributação interna para discriminar o importado. O tributo discriminatório na importação é o imposto sobre a importação, que pode ser legitimamente exigido dentro dos limites acordados internacionalmente.

Do outro lado dessa moeda, na perspectiva interna, o princípio do tratamento nacional implica que o bem importado não pode ser menos onerado com os tributos internos do que o nacional, pois isso traria problemas competitivos para a produção nacional [5].

Portanto, é com base na dupla perspectiva do tratamento nacional que há imposição na importação de IPI, ICMS, contribuição para o PIS/Pasep, Cofins, Cide-Combustíveis, ISS e AFRMM (acompanhado da taxa mercante). Esse é um ponto importante. Quando empiricamente verificamos o custo dos tributos na importação, devemos resistir e não partir para o carnaval tributário cantando com entusiasmo a música "Impostos", de Djavan, ou "Chega", de Gabriel, o Pensador. Precisamos manter a razão e examinar a sistemática dessa tributação para entender o problema na sua completa dimensão.

Nessa sistemática, identificamos duas classes: o tributo aduaneiro na importação e os tributos internos replicados na importação com base no tratamento nacional, denominados tributos niveladores.

O imposto de importação tem sua alíquota indicada na Tarifa Externa Comum (TEC), que é estabelecida no âmbito do Mercosul, há alterações (chamadas de exceções, reduções e perfurações) estabelecidas para cada um dos países do Mercosul (inclusive para o Brasil) com base em suas necessidades de política industrial ou de mercado. A alíquota média do imposto sobre a importação brasileira fica em torno de 10% [6]. Apesar de haver um senso comum no sentido de que o Brasil é um país fechado para importações, nosso patamar não destoa do de outros membros da OMC com o mesmo grau de desenvolvimento e está em consonância com o Mercosul.

Por sua vez, quando consideramos os demais tributos incidentes sobre a importação, a carga tributária média sobe para um nível aproximado de 50% [7] do valor da mercadoria. Disso, podemos observar que o maior ônus tributário das importações advém dos tributos internos replicados.

Realmente podem ser feitas críticas a essa carga. Todavia, parece-me que essa crítica não pode ser voltada somente para os tributos niveladores. Se houvesse redução tão somente na importação desses tributos, estaríamos quebrando o princípio do tratamento nacional na perspectiva interna. Isto é, estaríamos deixando de onerar o produto importado (que, em regra, vem desonerado dos tributos do país exportador), em prejuízo do seu competidor nacional.

De fato, a questão que se revela na importação é um problema inerente ao sistema tributário brasileiro e à nossa estrutura de arrecadação. Nossa base tributária é muito concentrada na tributação do consumo, que se mostra pouco transparente e injusta por ser regressiva.

A amiga Fernanda Kotzias, há duas semanas, nesta coluna, brindou-nos com um excelente artigo sobre a postura do Brasil em relação a temas estratégicos para entrada na OCDE. Pois bem, se consideramos o Brasil em comparação com os membros da OCDE [8], nosso país tem uma carga tributária inferior à média [9]. No entanto, se, nesse mesmo contexto, consideramos a carga tributária sobre bens e serviços, o Brasil está em segundo lugar [10]. Na tributação da renda, lucro e ganho de capital, estamos em último lugar.

Dessa forma, é importante retirar dessa reflexão sobre a tributação da importação que: primeiro, o Brasil exige imposto de importação em um patamar que pode ser considerado alto se comparado ao adotado pelos países desenvolvidos, mas que indica um caráter protecionista compatível com o grau de desenvolvimento e com a política industrial brasileiros. Reduções devem ser negociadas mediante contrapartidas (em acordos, como o que está sendo estabelecido com a União Europeia) e alicerçadas aos interesses industriais e comerciais do país.

Segundo, a fatia mais alta da tributação da importação, que corresponde aos tributos niveladores, não é estabelecida com caráter protecionista, mas, sim, para nivelar o campo de concorrência entre os importados e os nacionais. Podem ser feitas críticas ao sistema tributário brasileiro, indireto e regressivo, mas não se pode cogitar de redução desses tributos só na importação.

Bom, depois de tirar um pouco a fantasia e refletir sobre a função dos tributos nesse desfile na importação, voltemos ao Carnaval! Você pensa que cachaça é água? Cachaça não é água, não. Cachaça vem do alambique… (Qual mesmo a classificação fiscal da cachaça? Tem imposto sobre a importação? Qual a alíquota do IPI?)… Ô abre alas, que eu quero passar…

 


[1] BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval Tributário. São Paulo: Saraiva, 1989.

[2] Ao leitor que queira se aprofundar na questão da tributação do comércio exterior, recomendo a leitura de dois textos, ambos de minha autoria: Tributos sobre o Comércio Exterior. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012; e Tributos Incidentes sobre a Importação: regime Jurídico e carga tributária brasileira. In: Paulo de Barros Carvalho. (Org.). Direito Tributário e os novos horizontes do processo (XII Congresso Nacional de Estudos Tributários do IBET). 1ed.São Paulo: Noeses, 2015, v. 1, p. 759-779.

[3] Há muitos tributos incidentes diretamente sobre a cadeia produtiva (IPI, ICMS, ISS, PIS/Pasep, Cofins) no Brasil, ao passo que, na maioria dos países, existe basicamente o imposto sobre o valor agregado (IVA). Isso dificulta a desoneração das mercadorias nacionais a serem exportadas e compromete nossa competitividade. Ademais, nós adaptamos ou desvirtuamos alguns regimes aduaneiros especiais, como o Drawback, para tentar desonerar mais efetivamente as exportações. Porém, isso torna nosso sistema ainda mais complexo. O tema da desoneração das exportações fica sobre a mesa, como uma sugestão para posteriores artigos desta coluna.

[4] A classificação proposta é conceitual: consideram-se aduaneiros os tributos cuja hipótese de incidência está imbricada especificamente à importação ou exportação; e niveladores, aqueles tributos relacionados ao princípio do tratamento nacional. Cabe ter presente, entretanto, que a Convenção de Quioto Revisada indica como direitos aduaneiros o imposto sobre a importação e o imposto sobre a exportação, deixando as taxas em uma classe separada e condicionando-as à correspondência com o custo aproximado dos serviços prestados (Artigo 2º da CQR). O Acordo de Facilitação Comercial adota este mesmo entendimento, com ênfase na transparência e na preocupação em reduzir as taxas exigidas na importação ou exportação (Artigo 6º do AFC).

[5] A grande maioria dos países do mundo adota o procedimento de, por um lado, desonerar as exportações, para exportar o produto "livre de tributos" (aumentando sua competitividade), e, por outro, replicar na importação tributos internos incidentes sobre a cadeia produtiva interna a fim de nivelar a competitividade do nacional (onerado internamente) com a do importado (que chegou livre de tributos).

[6] Esse número representa a média aritmética. A média ponderada pelas transações efetivas é menor, tendo em vista que o próprio imposto alto inibe as importações de alguns itens. Segundo números da Receita Federal, a média ponderada do imposto sobre a importação brasileiro ficou abaixo de 5% (fonte: http://www.receita.fazenda.gov.br/historico/aduana/importacao/2006/janeiro/aliquotas.htm#:~:text=No%20per%C3%ADodo%20considerado%2C%20a%20al%C3%ADquota,de%20produ%C3%A7%C3%A3o%20para%20aumentar%20a. Acesso em: 23/2/2022)

[7] Retomo aqui observação que já fiz em outras oportunidades sobre esse percentual. O cálculo foi feito a grosso modo e por média aritmética, não ponderada. Desse modo, não representa o ônus tributário em cada produto importado. As alíquotas do imposto sobre a importação variam de zero a 35%; a oneração do IPI tem diferenças ainda maiores. Portanto, os números apresentados tentam indicar a carga tributária média vigente na importação. Costumo alertar meus alunos e também meus leitores com a famosa anedota do estatístico que se afogou em uma piscina com trinta centímetros de profundidade média (Tributos Incidentes sobre a Importação: regime Jurídico e carga tributária brasileira. In: Paulo de Barros Carvalho. (Org.). Direito Tributário e os novos horizontes do processo (XII Congresso Nacional de Estudos Tributários do IBET). 1ª ed. São Paulo: Noeses, 2015, v. 1, p. 778).

[8] Prefiro usar dados um pouco mais antigos, que me parecem melhores em relação à própria consolidação da OCDE e também que são anteriores à atual crise democrático-econômica brasileira e à crise mundial do Coronavírus. Assim, adotei dados da OCDE Revenue Statistc 2016.

[9] Segundo dados da OCDE, 2/3 dos países da OCDE possuem carga tributária maior que a brasileira. Lembre-se que são, em maioria, países mais desenvolvidos e com carga tributária maior mesmo. Se considerarmos, no mesmo levantamento feito pela OCDE, os países da América Latina, com grau de desenvolvimento muito mais próximo do Brasil, estamos com primeiro lugar na carga tributária. Usou-se o comparativo com a OCDE especificamente com o objetivo de analisar o impacto da tributação do consumo. (OCDE Revenue Statistc 2016).

[10] Perdendo apenas para a Hungria (OCDE Revenue Statistc 2016).

Autores

  • é conselheira e presidente de Turma no Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

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