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Legislação desatualizada e burocracia prejudicam ressocialização de presos

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4 de dezembro de 2022, 15h51

A legislação brasileira sobre a ressocialização de presos, principalmente quando o foco é o trabalho, anda em descompasso com a demanda existente dentro dos presídios de todo o país. E soma-se a isso muita burocracia e até mesmo descaso. O resultado é excesso de presos no sistema e comprometimento da remição de penas, de acordo com advogados ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Luiz Silveira/Agência CNJ
Os presos que desejam trabalhar
têm a burocracia como uma adversária

Mesmo tendo sido editada antes da Constituição Federal de 1988, a Lei de Execução Penal mostrou-se um avanço no que se refere à valorização da dignidade humana. Mas é importante ressaltar que apenas em 2018 foi publicado decreto que instituiu uma política nacional do trabalho no âmbito do sistema prisional.

É possível observar entre os especialistas ouvidos pela Conjur uma insatisfação com a gerência e a aplicabilidade do programa de ressocialização de presos. Eles alegam que há desrespeito ao programa de ressocialização. Além disso, não é respeitada a ordem cronológica de pretendentes, e uma vaga pode se tornar moeda de troca entre os servidores penitenciários e os presos.

"Qual seria a razão para tanta demora em instituir uma política nacional para o trabalho prisional com um sistema carcerário fracassado como o brasileiro? A eficácia das legislações que tratam do sistema penitenciário, de um modo geral, esbarram em problemas estruturais. Podemos destacar duas facetas desses problemas. Uma delas está no fato de o preso não ser valorizado como pessoa. A sua exclusão é quase um imperativo para a 'paz social'. Esse é o exemplo do sentimento de vingança presente na sociedade brasileira contra os presos", analisa Danielle da Rocha Cruz, professora de Direito Penal da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

A segunda faceta é decorrência da primeira, segundo Danielle: "Como não há uma real preocupação com as pessoas que estão submetidas ao sistema prisional, não há um controle e nem gerenciamento efetivo sobre o repasse dos recursos do fundo penitenciário nacional, sobre os convênios que os estados, através da administração penitenciária, mantêm com instituições públicas e privadas destinadas à execução do trabalho prisional etc.".  

"A política carcerária, embora norteada pela lei federal, em São Paulo é gerida por um emaranhado de normas infralegais de difícil consulta, normas de serviço, provimentos e comunicados do Judiciário, regimento interno e resoluções da Secretaria de Administração Penitenciária", explica o advogado criminalista Paulo Giovanni de Carvalho, da cidade de Salto (SP).

A falta de eficácia da legislação que regulamenta o trabalho prisional tem consequências graves sobre a ressocialização dos presos. "O trabalho prisional, seja ele interno ou externo, é um dos meios utilizados para se atingir a tão almejada ressocialização. É através das atividades laborais, executadas dentro e fora do estabelecimento prisional, que o reeducando pode desenvolver habilidades que o capacitarão para o mercado de trabalho. É uma forma de dar esperanças para alguém que está submetido a um sistema precário de aplicação da pena privativa, que prioriza a exclusão em vez da reinserção social do preso", diz a professora da UFPB.

Além disso, o trabalho prisional é um dever e um direito do preso. Desse modo, a administração penitenciária dos estados deve criar as condições para que os trabalhos interno e externo sejam viabilizados. E o fato de não serem implementadas políticas que visem a promover o trabalho prisional incrementa a criminalidade dentro dos presídios, desumaniza o preso e o distancia da ressocialização.

A legislação sobre esse tema precisa ser atualizada, segundo o advogado constitucionalista, doutor e mestre em Direito Emerson Malheiro. Ele explica que alguns assuntos que poderiam ser regulamentados por meio de resoluções exigem a edição de uma lei, o que demanda um procedimento muito mais complexo para a sua elaboração. "Poderia ser criada uma lei estabelecendo que assuntos de menor complexidade poderiam ser regulamentados por resoluções."

Burocracia
O sistema brasileiro é altamente burocrático e lento, na avaliação dos defensores. O advogado, explica Paulo Giovanni de Carvalho, pode solicitar um atestado do trabalho por e-mail, "mas a 'grade' não é encaminhada por correspondência eletrônica ou disponibilizada para download, nem mesmo informada diretamente ao juízo da execução. É exigido que o representante legal a retire pessoalmente na unidade penitenciária".

Os advogados reclamam muito dessa situação enfrentada nos presídios. "O atestado que contabiliza o tempo trabalhado não acompanha o prontuário do preso nas transferências entre unidades prisionais", afirma Carvalho. "Atender a interesses de um cliente que tenha cumprido pena em mais de uma unidade penitenciária e geralmente a porta de entrada é um CDP, depois a penitenciária e, em seguida, um CPP no semiaberto exigirá do advogado requerer os documentos comprobatórios a cada uma das unidades e retirar, em cada uma delas, os atestados dos dias trabalhados durante sua permanência", diz o criminalista.

Para o advogado Ariel de Castro Alves, especialista em Políticas Públicas de Direitos Humanos e Segurança Pública pela PUC-SP e membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e do Movimento Nacional de Direitos Humanos, "a grande maioria dos presos quer trabalhar, mas as penitenciárias não oferecem oportunidades de trabalho. E os presos não conseguem a remição pelo trabalho pela falta de oportunidades de trabalho".

Para Alves, a ressocialização de presos no Brasil, devido à falta de oportunidades de trabalho e estudo, acaba sendo uma falácia, o que prejudica a remição e a progressão de pena.

"A legislação não permite avanços. As consequências desse descompasso são excesso de presos no sistema penitenciário e condições de tratamento degradantes. O trabalho permite uma remição da pena e se houvesse disponibilização para todos, existiria um número menor de presos cumprindo pena privativa de liberdade."

A remição é um instituto penal que tem como consequência a redução da pena privativa de liberdade por meio do trabalho e/ou do estudo. Desde o ponto de vista da legislação, o sistema de ressocialização é bastante claro. Para a escolha e execução do trabalho, deverão ser levadas em consideração as condições e habilidades pessoais do preso, visando às oportunidades que daí podem surgir quando ele estiver em liberdade. Além dessas, outras garantias são observadas, como o limite da jornada diária de trabalho, a remuneração e as condições gerais para o preso da atividade que desempenhará, não podendo ser submetido a condições insalubres ou que exponham a sua saúde e vida a riscos.

Contudo, "na medida em que as administrações penitenciárias não se empenham em concretizar esse direito do preso, obviamente a remição resta prejudicada. Uma das questões levantadas no âmbito dos tribunais foi a de se o preso, mesmo quando o Estado não oferece o trabalho prisional, teria direito aos benefícios da remição. Em alguns julgados, esse direito foi assegurado, mas esse não é o posicionamento que vem preponderando nos tribunais superiores. O argumento que vem sendo levantado é o de que não pode haver remição, mesmo que a culpa pela ausência de trabalho seja do Estado, pois é através do trabalho efetivamente realizado que se observam os objetivos e finalidades de ressocialização" relata Danielle da Rocha Cruz.

"Tenho clientes pedindo oportunidades de trabalho, pelo pecúlio e pela remição, e não conseguem. Sem sucesso, já requeri à coordenadoria regional das unidades prisionais informações sobre a forma de gestão da lista cronológica de pretendentes a postos de trabalho, cuja consulta é importante para saber se os diretores dão preferência a novos postulantes em detrimento dos que estão na lista, por exemplo. Tudo isso deveria seguir lei de transparência, estar acessível à consulta", afirma Paulo Giovanni de Carvalho.

Ele afirma ainda que o superencarceramento é também "consequência da má gestão desses meios de ressocialização, pois muitos presos poderiam reduzir um terço da pena em cada regime de privação de liberdade se o Estado promovesse o trabalho, direito/dever do preso e obrigação do Poder Executivo, gestor do sistema prisional".

Moeda de troca
Carvalho destaca que "sem o controle externo, a vaga de trabalho pode acabar se tornando moeda de troca entre servidores penitenciários e presos". "Por exemplo, podem disponibilizar uma vaga para quem interessar mais, passá-lo na frente de outros já inscritos e aguardando vagas, impedir o trabalho como forma de castigar determinado preso ou mesmo impor burocracias para demonstrar insatisfação com a atuação mais incisiva de advogados."

Para o constitucionalista Emerson Malheiro, "a legislação precisaria ser mais específica para abranger os casos atuais, pois muitos deles dependem exclusivamente da decisão do juiz".

"Há um sistema de fiscalização da fila, mas ele é extremamente precário, exigindo a provocação do Poder Judiciário pelo advogado ou defensor público para fazer valer a sua prática. O juiz decide, mas dificilmente ele acompanha in loco a sua decisão, até mesmo pela sua indisponibilidade. Então, o que ele pode fazer é determinar outros mecanismos de fiscalização e acompanhamento, para dificultar o descumprimento, ou cumprimento parcial, da sua decisão", analisa Malheiro.

De acordo com os especialistas consultados pela Conjur, o trabalho prisional, além de ser um direito, também é dever do Estado, de modo que este deve promover todas as condições possíveis para oferecê-lo aos detentos que estão sob sua guarda. Existem resoluções do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária que tratam do gerenciamento e controle da população carcerária, da execução da pena, incluindo o contingente de presos que executam trabalho prisional, seja este interno ou externo.

No entanto, cada estado, por meio das suas Secretarias de Administração Penitenciária, tem suas próprias regulamentações. É a administração penitenciária que deve fazer um mapeamento das pessoas submetidas a pena privativa de liberdade e a prisão provisória e, juntamente com as entidades conveniadas, direcionar essas pessoas à contratação.

"Diante da situação caótica dos estabelecimentos prisionais brasileiros, é evidente que tais medidas estão longe de ser uma realidade. Os mecanismos de controle sempre encontram justificativas para o fracasso do sistema penal, como falta de infraestrutura, número insuficiente de funcionários, dificuldade em firmar convênios etc. Na realidade, falta mais empenho das instituições para levar adiante a política nacional do trabalho prisional" explica Danielle.

Como consequência desse sistema, diz Malheiro, com fiscalização e acompanhamento precários, nem sempre funciona a ordem cronológica dos pretendentes a um posto de trabalho. "Quem se beneficia é aquele preso que possui o melhor advogado, que, atento, provoca o Poder Judiciário para o cumprimento da lei. Assim sendo, normalmente se beneficiam aqueles presos com maior poder aquisitivo, que têm condições de pagar profissionais mais qualificados", observa o advogado, que teve um cliente na Região Metropolitana de São Paulo que demorou aproximadamente dez meses para obter uma vaga de trabalho no sistema prisional. "Isso compromete severamente o cumprimento da pena e até mesmo a motivação do preso na sua ressocialização."

A ordem cronológica de pretendentes a uma vaga de trabalho dentro do sistema prisional dificilmente funciona, dizem os advogados. Apesar de existirem mecanismos de controle, o sistema é muito precário. Há problemas arraigados que, para serem solucionados, demandam uma reformulação geral na capacitação dos agentes penitenciários e demais funcionários que trabalham no sistema prisional.

"De qualquer forma, esse seria apenas um primeiro passo para solucionar o problema, pois entendo que a mudança efetiva só ocorrerá com uma mudança cultural, que altere a forma como a sociedade vê o preso. Além disso, a própria execução da pena privativa de liberdade tem de ser vista como um efetivo caminho para ressocializar o preso. É importante ressaltar que, mesmo sendo um meio de ressocialização, entendo que a pena privativa de liberdade deve ser aplicada como último recurso, obedecendo-se o princípio da intervenção mínima. As falhas do sistema prisional beneficiam aqueles que detêm poder, descortinando as desigualdades sociais, mas também incentivando a prática de crimes no âmbito dos estabelecimentos. Mas o prejuízo que decorre dessa prática afeta a todos", aponta Danielle.

Qual a solução?
A legislação brasileira é moderna e contempla os objetivos do trabalho prisional, além de prever mecanismos para tornar efetiva a ressocialização. No entanto, existe um longo caminho a ser trilhado até que esses mecanismos funcionem. Para isso, é necessária implementação de políticas públicas de conscientização da importância do trabalho prisional. A ressocialização deve ser compreendida como forma de reeducar, devendo os presos serem tratados de forma mais humanizada, pela sua condição de pessoa, mas também pela sua condição de cidadão contributivo e integrante de uma comunidade. De qualquer maneira, sugere a professora da UFPB, é necessária uma reforma na legislação penal para dar mais liberdade ao juiz para deixar de aplicar a pena privativa de liberdade.

A Resolução 96/2009 do Conselho Nacional de Justiça cria o projeto Começar de Novo no âmbito do Poder Judiciário. O principal objetivo do projeto é a reinserção do preso, mas ele também inclui a atenção àqueles que cumprem penas alternativas à prisão. Essa resolução foi alterada algumas vezes e em 2021 foi imposta a obrigatoriedade aos Tribunais de Justiça de criar grupos de monitoramento e fiscalização dos sistemas carcerário e socioeducativo.

Entre as atribuições desses grupos estão fomentar, coordenar e fiscalizar a implementação de projetos de capacitação profissional das pessoas submetidas à execução penal. Os grupos de monitoramento e fiscalização devem encaminhar relatórios à Corregedoria-Geral de Justiça a cada três meses, no mínimo, relatando suas atividades, assim como as dificuldades encontradas e propostas para implementar melhorias. É importante não esquecer que a atuação do Poder Judiciário deve ser feita ao lado das Secretarias de Administração Penitenciária e demais instituições e entidades que oferecem trabalhos aos presos.

Outro avanço que poderia tornar o sistema de ressocialização mais eficaz, segundo Paulo Giovanni de Carvalho, seria a criação de mecanismos para que o advogado possa solicitar a análise das aptidões do preso, com requerimento formal de vaga de estudo ou trabalho, por meio de um portal ou procedimento eletrônico.

O caminho para obter uma vaga de trabalho é longo, mas, de acordo com o criminalista, o preso poderia ser adequadamente avaliado, informar seu perfil profissional, suas habilidades e seu grau de educação formal.

"A partir disso, seria possível adequar o preso às vagas disponíveis e estabelecer quais vagas precisam ser geradas conforme a demanda. Se a aptidão ou necessidade educativa do preso não fosse contemplada em determinada unidade, por meio de um sistema moderno seria possível verificar disponibilidade de vagas em outras unidades penitenciárias", sugere Carvalho.

Os sistemas prisionais, diz Ariel de Castro Alves, precisam ter parcerias privadas e públicas para garantir oportunidades de trabalho e estudo aos apenados.

A SAP com a palavra
A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) do governo de São Paulo explica o funcionamento do sistema de preenchimento de vagas de trabalho em unidades prisionais em funcionamento em território paulista. Começa com uma manifestação de interesse por parte do preso, que passará por entrevista com o diretor do Centro de Trabalho e Educação ou um servidor responsável pela área. Após esse período, será analisada a experiência e a aptidão daquele preso para a vaga disponível.

Se o resultado for positivo, o reeducando é direcionado à Diretoria de Segurança e Disciplina, que examinará seu perfil e conduta carcerária. Conforme disponibilidade da vaga, haverá uma avaliação de saúde para atestar a condição física para o trabalho, sendo, por fim, classificado conforme a data de inclusão na unidade prisional.

Nesses trâmites, segundo a SAP, são respeitados o disposto nos artigos 31, 32 e 37 da Lei de Execução Penal, beneficiando, assim, todos os envolvidos no processo. "Destacamos que as Diretorias de Centro de Trabalho, Segurança e Saúde fazem triagens na fila de pretendentes a fim de garantir a lisura do processo", diz o órgão.

Em média, 10% da população carcerária por unidade prisional aguarda uma vaga para trabalhar, e o tempo de espera varia de acordo com a liberação das vagas dos postos de trabalho, seja por desistência do sentenciado que está trabalhando, por indisciplina ou quando há remoção ou liberdade dos presos, ou com o surgimento de outros postos provenientes de novas empresas que contratem mão de obra carcerária. O balanço mais recente mostra 36.979 custodiados em São Paulo, e que no último dia 23 tinha uma população prisional de 195.371 pessoas. A pasta observa que, de acordo com a Lei de Execução Penal, o trabalho é obrigatório apenas para o preso condenado.

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