Território Aduaneiro

Perder-se no labirinto: o erro na classificação de mercadorias e o Carf

Autor

  • Leonardo Branco

    é sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax) doutor mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) é professor no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional" e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

30 de agosto de 2022, 8h00

"En los primeros días hubo un rey de las islas de Babilonia que congregó a sus arquitectos y magos y les mandó construir un laberinto tan perplejo y sutil que los varones más prudentes no se aventuraban a entrar, y los que entraban se perdían"

Jorge Luís Borges | Los dos reyes y los dos laberintos, 1949

 

O equívoco de classificação na nomenclatura do Sistema Harmonizado de Designação e Codificação de Mercadorias poderá conduzir a consequências que reverberarão em variados momentos da cadeia logística, podendo ocasionar efeitos sobre o gerenciamento do risco na etapa de conferência, interrupção do despacho de importação, alteração do tratamento tarifário, majoração de custos de armazenagem e demurrage, além de eventuais implicações regulatórias, como aplicação de medidas antidumping, ou mesmo contratuais, em especial securitárias, com relação à carga.

Os contornos gerais da classificação foram abordados por esta coluna na semana anterior [1]. Neste artigo, analisaremos duas situações específicas que têm sido discutidas no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e do Poder Judiciário provocadas pelo seu nemesis: o erro de classificação.

O primeiro cenário (1) é aquele em que tanto a classificação declarada pelo importador como aquela reputada como correta pelo auto de infração são consideradas incorretas pelo julgador. Neste caso, deve persistir a multa de 1% sobre o valor aduaneiro prevista pelo artigo 711 do Regulamento Aduaneiro (RA), que ecoa o inciso I do artigo 84 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001?

Não parece ser possível se defender o posicionamento administrativo sobre a matéria veiculado pela Súmula Carf nº 161 que, editada de maneira prematura em 3/9/2019, merece ser revista. Segundo seu enunciado, a penalidade deve ser mantida "(…) ainda que o órgão julgador conclua que a classificação indicada no lançamento de ofício seria igualmente incorreta". Ou seja, mesmo afastada a motivação da peça acusatória que disparou o impulso sancionatório, deverá a pena prevalecer, em desapreço ao dever de fundamentação e publicidade.

Não fosse a eficácia obstativa do debate provocada pelo texto sumulado, mesmo diante da clara preterição do direito de defesa do importador, cabível seria a decisão de mérito em favor daquele a quem aproveita a declaração de nulidade em virtude do § 3º do artigo 59 do Decreto nº 70.235/1972.

As súmulas são esforços sintetizadores que extraem seu espaço de eficácia a partir do comportamento reiterado de um tribunal, sobre as quais escrevemos em texto de 2021(link) [2]. Se sua função é refletir a estabilidade, integridade e coerência das decisões, necessário se faz a leitura dos precedentes, fonte de estabilização dos costumes não espontâneos que justificaram a sua edição.

São eles três acórdãos da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), tendo sido, em todos eles, a matéria decidida por voto de qualidade [3]. Nos dois primeiros casos, julgados no primeiro quartel de 2018, os relatores, os conselheiros Andrada Márcio Canuto Natal e Demes Brito se posicionaram pela manutenção da multa ainda que diante do erro de enquadramento pela autoridade lançadora. No terceiro, julgado menos de um ano depois, em fevereiro de 2019, o conselheiro Demes Brito votou no sentido oposto, para afastar a multa, alterando seu posicionamento.

Tanto o empate em todos os casos como a hesitação e mudança de posicionamento do próprio relator nos acórdãos utilizados como paradigma demonstram tudo, menos pacificação ou mesmo maturidade do debate em torno do tema. Por outro lado, os três precedentes utilizados teriam resultado invertido a partir de abril de 2020 com a mitigação do voto de qualidade decorrente do artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, o que apenas reforça que a edição da súmula abortou prematuramente debate que distava de terminar.

Diga-se, ademais, a respeito da própria inviabilidade de extração da ratio decidendi, uma vez que o Acórdão CSRF nº 9303-006.331 sequer chegou a enfrentar a questão, reservando-se à maquínica interpretação subsuntiva do "silogismo cara-crachá": se houve o erro do declarante, aplica-se a multa, enquanto que a razão determinante deveria ser o fundamento que levou à aplicação mesmo diante do erro por parte do auto de infração.

Os demais acórdãos, por outro lado, entenderam estar diante de culpa objetiva e de não haver consequente quando a classificação do Fisco se revela equivocada. Inexiste uniformidade que justifique tornar a matéria sumulada.

Quanto ao mérito da matéria, se nem a própria administração conhece a correta classificação, está-se diante da típica definição de erro escusável, excludente de tipicidade material. Além disso, equivoca-se aquele que deriva do artigo 136 CTN ou do artigo 673 RA uma modalidade objetiva de culpa. Os diplomas, ao disporem que a responsabilidade por infração independe da intenção do agente, vicejam limites à atividade da Administração e proteção ao administrado: não se comina o castigo quando ausente o requisito inexpugnável da culpa, como defendemos em artigo de quase uma década atrás (link) [4], sendo bastante a leitura do dispositivo para se perceber que o que se afasta é a intenção (o querer doloso), e não a culpa.

Além da clara e severa limitação imposta pelo artigo 146 do Código Tributário Nacional (CTN), norma reguladora das limitações constitucionais ao poder de tributar, o § 3º do artigo 18 do Decreto nº 70.235/1972 determina que eventual inovação ou alteração da fundamentação da exigência é resolvida por meio da lavratura de novo auto de infração, devolvendo-se, ao sujeito passivo, prazo para impugnação da matéria modificada.

Como temos repetido em outros estudos (link) [5], o Brasil, na busca do estímulo ao comércio, tem se comprometido no cenário internacional com a eficiência, simplificação e transparência nos procedimentos aduaneiros, não sendo mais possível às instâncias decisórias deixarem de fora de suas decisões acordos e convenções com efeitos jurídicos penetrantes sobre o ordenamento nacional. Assim, necessário se reportar ao item 3.5 do Artigo 6º do Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC) segundo o qual a inflição de penalidade deve ser acompanhada da especificação da natureza da infração e fundamento aplicável, não sendo possível o seu esvaziamento.

Na segunda situação analisada, (2) uma empresa vende determinada mercadoria e, na condição de fornecedora, ao emitir a nota fiscal, realiza a descrição dos produtos e a indicação equivocada da sua classificação na nomenclatura. A empresa adquirente, por sua vez, utiliza a alíquota indicada para calcular o crédito correspondente de IPI e é objeto de posterior procedimento fiscalizatório. A autoridade fiscal conclui pela glosa proporcional dos créditos apropriados pelo adquirente relativos a produtos entrados em seu estabelecimento devido ao erro na classificação.

O fundamento é o de que o artigo 62 da Lei nº 4.502/1964 determina àquele que se volta à aquisição de mercadorias a verificar se os produtos ingressados no seu estabelecimento e as notas fiscais que o acompanham atendem às prescrições legais aplicáveis à espécie.

Questiona-se qual a extensão da obrigatoriedade de que o adquirente verifique a correção dos documentos fiscais de lavra dos fornecedores, e se tal verificação de fato contempla ou não a análise quanto à classificação fiscal.

Parte-se evidentemente da premissa de o fornecedor da mercadoria ter realizado indevidamente destaque a maior de IPI, passando-se ao largo de hipóteses de simulação ou de fraude. Neste caso, não há prejuízo à Fazenda, mas, na verdade, enriquecimento ilícito diante da glosa, pois, devido à repercussão econômica do tributo, ao fornecedor caberia, em tese, proceder à restituição das quantias pagas a maior, desde que satisfeitos os "requisitos diabólicos" do artigo 166 CTN, tocando ao contribuinte recorrente prover a autorização expressa em virtude dos chamados efeitos translativos do tributo.

A concretizar o inciso II do § 3º do artigo 153 da Constituição, o artigo 225 do RIPI (Decreto nº 7.212/2010) estabelece que a não-cumulatividade do IPI é efetivada pelo sistema de crédito do imposto relativo a produtos entrados no estabelecimento do contribuinte-adquirente para ser abatido do que for devido pelos produtos dele saídos, num mesmo período. É neste sentido que o artigo 49 CTN determina que o montante devido do imposto é "a diferença a maior, em determinado período, entre o imposto referente aos produtos saídos do estabelecimento e o pago relativamente aos produtos nele entrados".

De uma perspectiva econômica, ao se autorizar a supressão dos créditos tomados pela adquirente, admite-se, em verdade, um arrasto cumulativo sobre a cadeia econômica, pois a empresa terá realizado o recolhimento de seu imposto sobre o preço de saída e terá cancelado o crédito correspondente.

Retoma-se aqui a discussão a respeito do artigo 136 CTN: se o que se afasta é a intenção (dolo), e não o mínimo dever de cuidado, ao nos voltarmos ao campo tributário, o minimum minimorum do zelo esperado pelo particular se encontra traçado pelo inciso II do artigo 5º da Constituição: a lei obriga o adquirente a classificar?

Há de se considerar, para responder a esta pergunta, a obrigação insculpida no RIPI e dirigida aos adquirentes no artigo 266 do regulamento: "(…) deverão examinar se eles se acham devidamente rotulados ou marcados ou, ainda, selados se estiverem sujeitos ao selo de controle, bem assim se estão acompanhados dos documentos exigidos e se estes satisfazem a todas as prescrições deste Regulamento”, o que ressoa o artigo 62 da Lei nº 4.502/1964, cujo § 1º determina, ainda, que, uma vez verificada qualquer irregularidade, "(…) os interessados comunicarão por escrito o fato ao remetente da mercadoria".

Tal dispositivo não obriga a adquirente a verificar a classificação e a alíquota consignadas nas notas. E discordamos de quem considere que o efeito de tal constatação é unicamente afastar a aplicação da pena do artigo 492 do RIPI, pois o compromisso com a premissa inviabiliza o próprio cancelamento dos créditos correspondentes. Observe-se a completa impraticabilidade da norma caso a leitura fosse diversa: estar-se-ia a exigir de um contribuinte que adquire milhares de peças e insumos, a análise fundamentada de cada item adquirido. Conjetura-se que não haveria suficientes tributaristas no mercado fosse esta a interpretação correta

Desnecessário dizer que o desígnio da norma evidentemente não é este. O objetivo do dispositivo é alcançar apenas aquilo que o adquirente "sabe ou deveria saber", sobre erros formais ou de identificação imediata ou evidente.

Cabe ao adquirente examinar se os produtos estão rotulados, marcados, selados (caso estiverem sujeitos ao selo de controle) e se estão acompanhados dos documentos exigidos, e se tais documentos satisfazem às prescrições (formais). Quando a exigência de verificação é específica, exigindo-se um verdadeiro dever de fiscalização ou de colaboração do adquirente, a norma é expressa, como ao exigir que verifique se a mercadoria está selada, estando a fornecedora sujeita ao selo de controle, o que obriga a empresa a saber se há ou não a sujeição de seu fornecedor à norma em apreço.

A questão já foi enfrentada pelo Carf no Acórdão Carf nº 3402-00.719, que ponderou sobre o caso em que a norma exige, de maneira expressa e cogente, um conhecimento específico da adquirente, não havendo espaço para dúvida na aplicação de sanções em virtude de infração expressamente prevista, circunstâncias em que o adquirente tem o dever de proceder à recusa do recebimento, mesma conclusão, por unanimidade de votos, do Acórdão Carf nº 3401-003.838 [6].

Logo, em alguns casos muito específicos é possível se exigir do adquirente questionar o seu fornecedor, sendo o caso do selo bastante emblemático. No silêncio da lei, não pode o aplicador realizar, por vontade própria, tal exigência, claramente excessiva. Para além das exigências pontuais, a obrigação dos adquirentes é aquela decorrente da cognição perfunctória, aferível mediante simples conferência dos documentos e da mercadoria. O labor de reclassificação terá efeito apenas sobre o fornecedor, em eventual fiscalização sobre ele lançada, sem o condão de coarctar os créditos daquele que de boa fé adquiriu a mercadoria.

Como se percebe, se o intento classificatório tem por nada humilde objeto a indexação do universo de mercadorias, a ambição catalográfica de esgotar as possibilidades do porvir, é esperado que surjam dúvidas sobre a sua aplicação. Ao buscar a máxima restrição das possibilidades interpretativas por meio de regras e metarregras de interpretação, o sistema a um tempo fornece as amarras textualistas do diálogo das trocas internacionais e se coloca como farol de navegação entre os corredores da babélica biblioteca da nomenclatura. Como se sabe, cada texto demanda interpretação e, entre posições e subposições que se bifurcam, não raro um bibliotecário parcialmente cego é encontrado perdido perigosamente na seção de armas buscando a estante dos artefatos pirotécnicos, ou na dúvida se uma empoeirada multifuncional pertence ao acervo das impressoras, copiadoras ou dos escâneres. Em disputa estão as abordagens que devem ser conferidas aos usuários deste catálogo infinito.

 


[1] MEIRA, Liziane Angelotti e FLORIANO, Daniela. "Vamos falar sobre classificação de mercadorias?". Revista Eletrônica ConJur, 23/8/2022, disponível neste link.

[2] BRANCO, Leonardo. "Como se interpretam as súmulas administrativas em matéria tributária?", In: OLIVEIRA, Ricardo Mariz de, SILVEIRA, Rodrigo Maito da, ANDRADE, José Maria Arruda de, et LEÃO, Martha Toríbio. Anais do VII Congresso de Direito Tributário Atual. São Paulo: IBDT, 2021, p. 123 a 143. Disponível neste link.

[3] Acórdãos CSRF nº 9303-006.331 (21/2/2018) e 9303-008.194, (21/2/2019), ambos de relatoria do conselheiro Demes Brito e nº 9303-006.474 (14/3/2018), de relatoria do conselheiro Andrada Márcio Canuto Natal.

[4] TAKANO, Caio Augusto; BRANCO, Leonardo. Responsabilidade por infrações em matéria tributária: reconsiderações acerca do art. 136 do CTN. Revista Direito Tributário Atual, v. 29. São Paulo: Dialética e IBDT, 2013, p.114-13, disponível neste link.

[5] BRANCO, Leonard o e KOTZIAS, Fernanda. "Acordo Brasil-EUA: uma nova fase para a facilitação do comércio". Revista Eletrônica ConJur, 21/6/2022, disponível neste link. Neste texto, analisamos outro efeito do erro de classificação e a aplicação do princípio da insignificância para exclusão da multa diante de deficiências de informação no campo descrição que não impliquem declaração de forma incompleta, inexata ou insuficiente.

[6] Acórdão Carf nº 3401-003.838, de 28/4/2017, de minha relatoria. Participaram do julgamento, além deste autor como relator, os conselheiros Rosaldo Trevisan, Augusto Fiel, Tiago Guerra Machado, Fenelon Moscoso, Mara Sifuentes, Robson Bayerl, e André Henrique Lemos, que acompanharam, por unanimidade, a relatoria.

Autores

  • é conselheiro titular e vice-presidente de Turma no Carf, doutorando, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP, com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU-Münster) como bolsista DAAD, coordenador do curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio internacional" no IBDT e do curso "Tributação do Mercado Financeiro e de Capitais" no IBDT e na Apet, professor de Direito Tributário e Aduaneiro no IBDT, Ibet, FGV, FIA, Fipecafi, Inova e IDP (pós-graduação) e FK-Partners (exame CFP). Pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV-Direito/SP.

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