Direito Civil Atual

Aplicação dos critérios contratuais para correção em cumprimento de sentença

Autores

  • Abrahan Lincoln Dorea Silva

    é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco) com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

  • William Galle Dietrich

    é advogado doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

29 de agosto de 2022, 11h42

Em coluna pretérita (ver aqui), abordou-se a correção monetária sob a perspectiva da execução de título extrajudicial. O problema que orientou a coluna pode ser traduzido na seguinte pergunta: após o ajuizamento da execução de título extrajudicial, a correção monetária deverá ser realizada com base no índice previsto no contrato ou no índice adotado pela Tabela Prática do Tribunal? A resposta encaminhou-se para o maior prestígio à autonomia das partes, de forma a incidir aquilo que estabeleceram em seu negócio jurídico.

ConJur
Nesta coluna, o questionamento é similar: no cumprimento de sentença que dá enforcement a contratos, a resposta jurídica mais adequada é aquela que aplica o índice do contrato ou o índice da Tabela Prática dos Tribunais?

Delimitação do problema
No sistema do Código de Processo Civil de 1973, não havia diferença de procedimento quando se tinha um título judicial ou extrajudicial. Em ambos os casos, havia a necessidade de que fosse ajuizada uma ação de execução autônoma. Em reforma do Código de 1973, ocorreu a introdução do procedimento de cumprimento de sentença, em que, após sentença condenatória, poder-se-ia, por meio de requerimento nos próprios autos, pedir a intimação da parte contrária para pagamento. Por isso que a reforma de 2005 foi considerada como aquela que fez com que "os muros que separavam o processo de conhecimento do processo de execução fossem derrubados definitivamente" [1]. No procedimento, dada a certeza, liquidez e exequibilidade incontestes do título judicial, o contraditório foi adaptado, o que facilitou o cumprimento das sentenças. O procedimento foi adotado, também, pelo Código de Processo Civil de 2015.

Os títulos executivos judiciais podem ser constituídos com base em controvérsias que, muitas vezes, envolvem contratos que não têm eficácia de título executivo ou, ainda, casos de indenização por perdas e danos oriundas de inadimplemento contratual. Nestes casos, o intuito da parte é dar força executiva ao título, o que dependerá de pronunciamento judicial. Dado o fato de que habitualmente se costuma pactuar cláusula adotando índice de correção monetária sobretudo em caso de inadimplemento —, tem-se a questão fundamental: o título judicial deve aplicar o índice contratual de correção monetária ou a tabela prática do Tribunal?

Correção monetária nos cumprimentos de sentenças que dão enforcement a contratos
Assim como nas execuções de título extrajudicial, a aplicação do critério contratual para a correção monetária é obediência ao pacta sunt servanda, já que o comando judicial será o de dar força executiva à previsão contratual. Seria, portanto, incabível substituir o índice de correção monetária do contrato pelo índice do adotado pela Tabela Prática do Tribunal, que tem função subsidiária, sendo aplicável quando não há índice.

Ocorre, contudo, que se tem observado algumas situações em que, sem maior fundamentação, o índice estabelecido pelas partes é substituído pelo simples fato de que a questão se submeteu a um processo de conhecimento. A título exemplificativo, observe-se um caso de indenização por dano material em caso de violação ao contrato. Se inadimplemento contratual produz um dano, a parte que agiu desrespeitando os termos contratuais deverá indenizar a parte adversa por perdas e danos ou a pagar o montante estabelecido em cláusula penal. Parece não existir qualquer razão apta a justificar o afastamento do índice previsto no instrumento como se, somente pelo fato de que a questão foi alvo de escrutínio em uma fase de conhecimento, isso viesse a configurar, eo ipso, razão para a incidência de outro índice. Desse modo, deve-se cumprir, além do montante arbitrado ou fixado pela cláusula penal, o índice de correção que foi pactuado.

Isso não quer dizer, contudo, que a autonomia das partes não possa sofrer restrições. A Dogmática contempla inúmeras abordagens sobre o tema [2], de forma que as restrições podem ser as mais diretas e incisivas ao estilo daquilo que se aproximaria de uma estrutura quantitativa de "regra" tais quais, v.g., a proibição do pacta corvina (artigo 426, CC) — até àquelas com um espaço semântico mais amplo, comportando uma discussão mais aprofundada sobre efetivamente como a autonomia das partes estaria restrita, que se aproximaria de uma estrutura quantitativa de "princípios" [3] — como, por exemplo, a celebração do contrato respeitando a sua função social (artigo 421, CC).

No entanto, o ponto central é justamente esse: o afastamento de índice de correção é uma limitação judicial da autonomia das partes e deve se basear em uma norma jurídica. Aquilo que os particulares estabeleceram foi limitado, razão pela qual precisa ter uma razão — juridicamente relevante e devidamente fundamentada — apta a afastar a previsão contratual. O fato de que um Tribunal utiliza costumeiramente um índice de correção como o adequado não é razão suficiente, por si só, para que se afaste uma previsão das partes sobre o índice adotado.

No exemplo dado, em que um inadimplemento contratual produz um dano, a responsabilidade, nestes casos, é de natureza contratual e, consequentemente, deve-se aplicar os critérios do contrato para a correção monetária, assim como se aplicam as cláusulas de eleição de foro e cláusulas arbitrais em disputas envolvendo responsabilidade contratual. Ou seja, a lógica não muda e a correção monetária também deverá seguir o critério contratual, mesmo que seja decisão dando enforcement a cláusula penal ou arbitrando perdas e danos.

Ademais, todos os argumentos apresentados na coluna pretérita (ver aqui) sobre a execução de título extrajudicial se aplicam, também, aos cumprimentos de sentença que dão enforcement a contratos.

Conclui-se, assim, que nas execuções de contrato, independentemente do procedimento, como regra, deve-se aplicar primariamente o índice de correção monetária adotado pelas partes.


[1] RAATZ, Igor. Autonomia privada e processo civil: negócios jurídicos processuais e flexibilização procedimental. 2. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2019. p. 193.

[2] Ainda utilizando a expressão "autonomia da vontade", pode se citar as limitações descritas por RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 18–34 e GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 25–51. Para uma análise da evolução conceitual, ver RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão Judicial dos Contratos: Autonomia da Vontade e Teoria da Imprevisão. São Paulo: Atlas, 2006. p. 11–31. 

[3] Sobre o problema da divisão qualitativa e quantitativa das regras e princípios, é fundamental a recente contribuição para o meio jurídico brasileiro a observação do debate metodológico estabelecido entre Robert Alexy e Ralf Poscher: DALLA BARBA, Rafael Giorgio (Org.). Princípios jurídicos: o debate metodológico entre Robert Alexy e Ralf Poscher. 1. ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022.

Autores

  • é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco), com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon, ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

  • é advogado, doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), como bolsista Capes/Proex, membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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