Observatório Constitucional

O exame do histórico legislativo no julgamento do ARE 843.989

Autor

  • Victor Marcel Pinheiro

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ex-visiting scholar na Universidade Columbia (EUA) ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha) advogado e consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

27 de agosto de 2022, 8h00

No dia 18/8/2022, o STF finalizou o julgamento do ARE 843.989 (Tema 1.199 de Repercussão Geral), em que decidiu algumas das questões controvertidas a respeito da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, que realizou profunda reforma na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992) [1].

Já houve robustos artigos publicados nesta coluna do Observatório Constitucional — que neste mês comemora seus 10 anos de existência — a respeito de importantes aspectos da Lei nº 14.230/2021 [2]. O objetivo aqui é examinar um dos argumentos utilizados no julgamento para interpretar o significado da nova lei e fundamentar a decisão tomada: o histórico legislativo da nova lei, entendido aqui de modo amplo como o conjunto de atos, discursos e documentos produzidos no âmbito do processo legislativo.

Um dos focos da decisão recaiu sobre a interpretação da nova lei em relação a atos praticados anteriormente ao início de sua vigência, no ponto em que: (a) revogou a modalidade culposa de ato de improbidade administrativa por lesão ao erário (artigo 10 da Lei nº 8.429/1992) e (b) estabeleceu novos prazos prescricionais mais favoráveis aos indivíduos responsáveis por tais atos. Neste ponto, a questão colocada perante a corte foi: a Lei nº 14.230/2021 previu a retroatividade de tais mudanças?

Conforme os votos proferidos oralmente em Plenário e disponibilizados até o momento, o ministro relator Alexandre de Moraes entendeu que a resposta é negativa. Seu voto foi acompanhado pela maioria do tribunal.

Entre os argumentos apresentados pelo ministro, merece destaque a análise do histórico legislativo da Lei nº 14.230/2021 em pelo menos dois momentos.

Em relação à revogação da modalidade culposa de ato de improbidade administrativa, Sua Excelência considerou: (a) o Parecer Preliminar de Plenário nº 1 ao Projeto nº 10.887/2018, emitido pelo deputado Carlos Zarattini em substituição à Comissão Especial que examinaria a matéria, (b) declarações feitas por participante em audiência pública na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal e (c) artigo doutrinário do ministro Mauro Campbell Marques do STJ, que presidiu a comissão de juristas responsável pela elaboração do anteprojeto que deu origem ao PL nº 10.887/2018, em que destaca e justifica as principais inovações propostas.

Já em relação à possível retroatividade dos novos prazos prescricionais, o ministro relator mais uma vez menciona o mesmo artigo de autoria do ministro Mauro Campbell Marques, em que se enfatiza o artigo 23-C do anteprojeto, que previa expressamente a incidência dos novos prazos apenas para os atos praticados após a entrada em vigor da nova lei. Dessa forma, conclui o ministro Alexandre de Moraes que a Lei nº 14.230/2021 não previu "anistia" ou "retroatividade da lei civil mais benéfica".

Já o ministro Nunes Marques, apesar de acompanhar o ministro Alexandre de Moraes neste ponto no dispositivo decisório, fundamentou seu entendimento em razões diferentes das expostas pelo relator. Para ele, o Congresso estabeleceu expressamente a retroatividade das normas da nova lei ao fazer referência aos princípios do Direito Administrativo sancionador, ao acrescentar o § 4º ao artigo 1º da Lei nº 8.429/1992.

Em suas palavras:

"o legislador iniludivelmente quis a retroação das normas benéficas da Lei nº 14.230/2021. A retroação aqui não deve ser extraída de meras inferências e constatações indiretas. Não. Ao fazer remissão aos princípios do direito administrativo sancionador, o legislador intentou assimilar os postulados elementares do direito sancionador ao processo de improbidade, entre os quais está o da retroação da lei mais benéfica."

Para justificar seu entendimento, o ministro Nunes Marques fez menção ao histórico legislativo do Projeto de Lei nº 10.887/2018. Citando estudo feito por João Trindade Cavalcante Filho [3], o ministro destacou que a Emenda nº 40 na CCJ do Senado tinha por objetivo inserir dispositivo que estabelecia a incidência da nova lei aos processos em andamento. Contudo, a emenda foi rejeitada, nos termos do parecer do relator na comissão, senador Weverton, sob argumento de sua desnecessidade na nova lei, "tendo em vista que já é consolidada a orientação de longa data do Superior Tribunal de Justiça, na linha de que, 'considerando os princípios do Direito Sancionador, a novatio legis in mellius deve retroagir para favorecer o apenado" (Resp nº 1.153.083/MT, rel. min. Sérgio Kukina, julgado em 19/11/2014)'". Entendeu o ministro Nunes Marques que a retroatividade da nova lei, entretanto, não poderia atingir a coisa julgada (artigo 5º, XXXV, da Constituição).

Diante dessa divergência, apresentamos as seguintes perguntas: como examinar o histórico legislativo de uma lei e qual seu significado para a interpretação jurídica?

Trata-se de questionamentos em debate há décadas e que não pretendemos examinar em profundidade nesta coluna [4]. Como destaca Roberta Simões Nascimento, eles fazem parte de empreitada teórica ainda em desenvolvimento que tem o desafio de apresentar uma "teoria da interpretação que se complete e se conecte com a teoria da legislação e da argumentação legislativa" [5].

De todo modo, deixam-se registradas duas observações neste ponto.

A primeira delas é: não se pode confundir o exame do histórico legislativo para fins de interpretação jurídica com uma tentativa de compreensão das motivações subjetivas dos parlamentares que tomaram parte no processo de decisão para identificar quais foram as razões causais que motivaram suas condutas individuais (o processo volitivo interno de formação da vontade). Isso caracterizaria uma indevida "antropomorfização" dos Parlamentos, confundindo-se a empreitada coletiva de elaboração legislativa com um ato de vontade individual "do legislador" [6]. Em outras palavras, a atenção do intérprete deve recair na dimensão do processo público de apresentação de justificativas para a tomada da decisão legislativa e não nos processos causais de formação da vontade individual de cada um dos parlamentares.

A segunda observação é a de que a interpretação de um evento coletivo, historicamente determinado e com forte conotação política como o processo de elaboração legislativa não é tarefa simples, que possa ser reduzida a um exercício supostamente apenas empírico.

Como destaca Dworkin a respeito do seu modelo de "interpretação construtiva", a atribuição de alguma intencionalidade ou razão a uma pessoa ou grupo de pessoas passa por tentar identificar diretrizes mais abstratas que, à luz das informações disponíveis, justificam a ação adotada. Aqui não se trata de imaginar possíveis razões que poderiam ou deveriam ter sido adotadas por esse grupo de pessoas, mas de identificar quais efetivamente foram essas razões. Em suas palavras sobre interpretação constitucional que também podem ser utilizadas para a interpretação das leis:

"(…) Como eu disse antes, as pessoas traduzem o que outras pessoas disseram — do outro lado da mesa ou através dos séculos — por um processo de interpretação construtiva que objetiva não espiadas intracraniais, mas fazer o melhor sentido possível dos seus discursos e comportamentos. Este é um processo normativo, não um processo 'empírico'. Ela é um processo particularmente complexo quando o objeto de interpretação é um ato político e nós não podemos nos definir uma tradução a não ser atribuindo princípios políticos ou finalidades para um grupo cujos membros talvez estivessem politicamente divididos" [7].

Voltando ao julgamento do ARE 843.989, poderia ter havido um exame mais detalhado do histórico legislativo, que mostraria uma diversidade de posições a respeito das diretrizes de elaboração da Lei nº 14.230/2021. Embora os ministros tenham feito menção ao histórico legislativo, elas foram pontuais, não abarcando toda a riqueza dos debates travados no Congresso Nacional. Além disso, cada ministro examinou diferentes momentos do processo de elaboração da lei, o que possivelmente levou a conclusões diferentes sobre o seu significado.

Nesse sentido, para além da questão específica da retroatividade das novas disposições legais, no Congresso Nacional houve profundos debates sobre os modelos de combate à corrupção no Brasil, natureza dos atos ilícitos de improbidade administrativa e o regime jurídico da ação judicial para seu sancionamento. Esses argumentos poderiam revelar uma compreensão melhor do processo de elaboração da lei à luz dos princípios de ação política apresentados publicamente durante os trabalhos legislativos e, nesse sentido, auxiliar o intérprete a identificar na lei uma tomada de posição legislativa clara ou não em relação à retroatividade das novas disposições.

De todo modo, deve ser louvada a iniciativa dos ministros em terem retomado aspectos centrais do processo de elaboração da Lei nº 14.230/2021. De fato, os trabalhos do Congresso Nacional estenderam-se por mais de três anos com intensos debates na comissão de juristas responsável pelo Anteprojeto e nas duas Casas do Congresso Nacional, destacando-se a realização de 16 audiências públicas. A análise em via judicial dos argumentos e decisões tomadas durante o processo legislativo aponta na direção certa de considerar o processo de elaboração legislativa como etapa fundamental na democracia, não apenas em termos políticos, mas também jurídicos.

Nesse ponto, o julgado examinado pode ser um passo importante na mesma direção de uma tendência de outros países e cortes internacionais de valorizar o exame do histórico legislativo para fins de controle de constitucionalidade. Por exemplo, como destaca Koen Lenaerts, presidente do Tribunal de Justiça da União Europeia, há uma "virada procedimental" na jurisprudência corte no sentido de que o exame do processo legislativo passa a ser não apenas uma fonte de informações para interpretação do ato legal, mas também um elemento da avaliação de sua constitucionalidade conforme a profundidade dos debates e argumentos apresentados durante seu processo de elaboração [8].

Entendemos que, no Brasil, há espaço para uma modelo dogmático de controle judicial de constitucionalidade que fortaleça os laços de representação política mediante o exame do processo público de elaboração legislativa, conforme as normas do devido processo legislativo. Para tanto, deve haver a interpretação do histórico legislativo como um fato histórico complexo, contextual e essencialmente político e não a partir de seus elementos (projetos, discursos e outras manifestações) de modo isolado.

A partir disso, abrem-se as possibilidades de maior ou menor intervenção judicial no controle de constitucionalidade conforme o processo legislativo concreto que levou à elaboração de uma lei. Quais os contornos de tal modelo e como compatibilizá-lo com as exigências constitucionais do Estado de Direito, separação de poderes e democracia são questões que permanecem no debate — temas a serem explorados em futuras oportunidades neste Observatório.

 


[1] Por maioria, o tribunal fixou a seguinte tese: "1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se — nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo — DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 — revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa —, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei".

[3] João Trindade Cavalcante Filho, "Retroatividade da reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021)", Consultoria Legislativa do Senado Federal, Texto para Discussão nº 305, 2021.

[4] Veja-se, por exemplo, a análise deste debate feita por Karlz Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 2005, pp. 445-450.

[5] Cf. Roberta Simões Nascimento, Teoria da Legislação e Argumentação Legislativa: Brasil e Espanha em perspectiva comparada, Curitiba, Alteridade, 2019, p. 418.

[6] Cf. Leonardo Augusto de Andrade Barbosa, Processo legislativo e democracia, Belo Horizonte, Del Rey, 2010, p. 85.

[7] Ronald Dworkin, Justice in Robes, Cambridge, Harvard University, 2006, pp. 127-8.

[8] Cf. Koen Lenaerts, "The European Court of Justice and Process-Oriented Review", European Legal Studies 1 (2012), pp. 1-16.

Autores

  • é doutorando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), visiting scholar na Universidade de Columbia (EUA), consultor legislativo do Senado, advogado e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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