Observatório Constitucional

Aplicação no tempo das novas regras de prescrição na ação de improbidade

Autores

  • Fábio Lima Quintas

    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito do Estado pela UnB professor no curso de graduação em Direito no mestrado e no doutorado acadêmico do IDP (Brasília) e advogado.

  • Gustavo Fernandes Sales

    é mestrando em Direito Constitucional pelo IDP (Brasília) especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público pela FESMPDFT professor no curso de pós-graduação em Direito Público na Escola da Magistratura do Distrito Federal e juiz de Direito substituto do TJDFT.

13 de agosto de 2022, 8h04

A Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, alterou profundamente o regime jurídico da improbidade administrativa estabelecido pela Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, em atenção ao comando da artigo 37, § 4º, da Constituição.

Uma das questões que surge desse novo marco legal diz respeito aos limites temporais de aplicação da nova lei e sobre a possibilidade de sua aplicação retroativa (para fatos processuais e materiais ocorridos antes do seu advento), sendo relevante a discussão sobre a retroatividade das novas regras a respeito dos prazos prescricionais [1].

Destaque-se que, na tramitação do Projeto de Lei nº 2.505/2021 — que deu origem à Lei nº 14.230/2021 —, houve rejeição da proposta que buscava regulamentar o direito transitório [2], o que tem contribuído para um cenário de indefinição acerca da questão sobre a possibilidade ou não de aplicação retroativa da nova norma (artigo 5º, XL, CF).

Esse cenário, aliás, justificou o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da repercussão geral da questão constitucional relacionada à "aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente" (STF, ARE 843.989, Tema 1.199 RG, relator: ministro Alexandre de Moraes), tendo a corte iniciado (mas ainda não concluído) o julgamento de mérito sobre a questão no início deste mês.

Nesse julgamento, como amplamente divulgado, o ministro Alexandre de Moraes (relator), considerando a ausência de regra de transição e a natureza civil (não penal) do ato de improbidade administrativa definida diretamente pela Constituição Federal, entendeu que a lei não retroage para atingir fatos ocorridos antes de seu advento, não havendo como afastar o princípio do tempus regit actum, por força do ato jurídico perfeito e dos princípios da segurança jurídica, do acesso à Justiça e da proteção da confiança.

Por sua vez, o ministro André Mendonça votou pela incidência imediata dos novos prazos de prescrição intercorrente trazidos pela, inclusive aos processos em curso, tendo como termo inicial, nestes casos, a data de entrada em vigor da inovação legislativa. Em relação ao prazo de prescrição geral, assentou que deve ser computado o decurso do tempo já transcorrido durante a vigência da norma anterior, estando o novo prazo limitado ao tempo restante do período pretérito, quando mais reduzido em relação ao novo regramento.

Assumimos como premissa que a prescrição é instituto de natureza material (com repercussões no plano processual) [3] e que merece ser privilegiada a visão do legislador que situou o sistema da improbidade no âmbito mais geral do direito administrativo sancionador (aplicando-se, por isso, os princípios constitucionais correlatos, conforme artigo 1º, § 4º, da LIA).

Sabe-se que a aparição do Direito Administrativo Sancionador é um fenômeno relativamente recente, que ganha forma na Alemanha do pós-guerra em reação à hipertrofia do Direito Penal acessório [4]. Nas últimas décadas, é notável o empenho dogmático em atribuir ao Direito Administrativo Sancionador autonomia em relação ao Direito Penal, conformando um sistema punitivo próprio — que, por isso mesmo, não pode derivar de uma simples duplicação do sistema punitivo criminal. Diante disso, embora superada a discussão sobre se os princípios do Direito Penal se aplicam ao Direito Administrativo Sancionador, questiona-se sobre quais princípios serão aplicados e, sobretudo, até que ponto se dará essa aplicação [5], problematização que vem sendo também enfrentada no Direito brasileiro e que se põe em evidência na discussão a respeito da aplicação do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, estabelecido no artigo 5º, inciso XL, da Constituição, segundo o qual "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu".

Embora essa questão esteja longe de pacificação, é de se ver que o Superior Tribunal de Justiça tem dado resposta positiva, consagrando a aplicação do referido princípio ao direito sancionador (isto é, a todos os sistemas jurídicos que envolvam o chamado "direito de punir" do Estado) [6].

A prevalecer esse entendimento, caberá refletir sobre como se fará a contagem do novo prazo prescricional em fatos pendentes, aspecto enfrentado no voto do ministro André Mendonça.

Por um lado, pode-se defender que, no silêncio da norma, o termo inicial deverá ser o momento de vigência da nova lei. É o que se definiu, por exemplo, no RE 626.489/SE, de relatoria do ministro Roberto Barroso, julgado em 16/10/2013. No plano legislativo, foi essa a opção de direito transitório estabelecida pelo artigo 1.056 do Código de Processo Civil de 2015, ao dispor que "considerar-se-á como termo inicial do prazo da prescrição prevista no art. 924, inciso V [prescrição intercorrente], inclusive para as execuções em curso, a data de vigência deste Código".

Outros dirão, do contrário, que se deve considerar de certo modo a fração já transcorrida do prazo prescricional antes da nova contagem, como o fez o ministro André Mendonça. Em certo sentido, essa ratio também influenciou a norma de transição prevista no artigo 2.028 do Código Civil de 2002.

Pode oferecer algum subsídio adicional para interpretação do tema a análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, da qual resultou a edição da Súmula 445 (DJ 8/10/1964), segundo a qual "a L. 2.437, de 7.3.55, que reduz prazo prescricional, é aplicável às prescrições em curso na data de sua vigência (1.1.56), salvo quanto aos processos então pendentes".

A Lei nº 2.437, de 1955, reduziu vários prazos prescricionais estabelecidos no Código Civil, estabelecendo o seu artigo 2º que a nova lei não se aplicava aos processos em curso e fixando, o seu artigo 3º, prazo de vacatio legis de dez meses. No que se refere à usucapião extraordinária, a Lei nº 2.437 reduziu o prazo da prescrição aquisitiva para de 30 anos para 20 anos (artigo 550 do CC-1916).

Na análise de um dos processos cujos acórdãos serviram de fundamento para a edição da aludida súmula, há importantes elementos para a discussão. De fato, no julgamento do RE 51215, a 2ª Turma entendeu pela inadmissibilidade da aplicação retroativa da nova lei (rel. min. Ribeiro da Costa, julgado em 23/4/1963, DJ 11/7/1963). O ministro Hahnemann Guimarães no voto que compôs a corrente majoritária registrou que:

"Pelo art. 141, § 3º, da Constituição, é vedado dar-se à lei aplicação retroativa. A Lei nº 2.437, de 7 de março de 1955, só permite sua aplicação a partir de 1º de janeiro de 1956. De modo que é impossível que o usucapião, que se iniciou na vigência da lei antiga, se considere consumado pela lei nova, antes desta entrar em vigor. Essa aplicação retroativa é inteiramente vedada."

Em sentido diverso, havia se manifestado o então procurador-geral da República, Evandro Lins e Silva, no parecer que apresentou nos autos, em que se alinhou ao entendimento da 1ª Turma do STF (RE 47.602, 1ª Turma), que, seguindo doutrina de Carpenter ("segundo a qual, 'vindo uma lei nova que modifique o prazo, encurtando-o ou prolongando-o, a prescrição se completará, não na conformidade da lei velha, mas, sim, na conformidade da lei nova") e considerando a "longa vacatio legis de dez meses" (que teria o condão de colocar "de sobreaviso os proprietários negligentes"), haveria de computar-se o prazo prescricional transcorrido anteriormente à vigência da nova lei.

Em sede de embargos, o Tribunal Pleno reformou o entendimento da 2ª. Turma, decidindo pela aplicação da lei nova que reduzira o prazo prescricional da usucapião (RE 51.215 EI, rel. min. Pedro Chaves, Tribunal Pleno, julgado em 12/6/1964, DJ 3/12/1964). Do voto do relator, extraem-se importantes fundamentos para as duas correntes de julgamento. Num primeiro momento, o voto do relator fez referência à doutrina de Rubier, "assim tão bem exposta pelos doutos Espínola, pai e filho, nos autorizados comentários à Lei de Introdução: 'se a lei nova aumenta o prazo, a prescrição deve continuar até que o novo prazo se complete, contando-se o tempo decorrido na vigência da antiga; se o prazo é diminuído, o novo prazo ocorrerá somente a partir do dia em que começou o domínio da nova lei, salvo se o da lei antiga, contado o período decorrido na vigência desta, se completar antes de terminar o da Lei nova, que começa com a vigência desta última'".

Num segundo momento, o voto do relator menciona a doutrina do direito português de Cunha Gonçalves, para quem, se o prazo prescricional é abreviado pela nova lei, "o tempo decorrido conta-se até se completar o novo prazo". O entendimento do civilista português se alicerçava no que estava disposto no artigo 566, parágrafo único, do Código Civil português de 1.867, que, ao tratar do direito transitório, estipulava que "se as prescripções começadas exigirem menos tempo, nunca poderão concluir-se, sem que pelo menos decorra o praso de três mezes, contados desde a promulgação do mesmo código".

Como antecipado, o Plenário do STF, na voz do relator, optou por esse segundo critério "por força do princípio do art. 5º da Lei de Introdução e por força impositiva da própria Lei nº 2.437, quando por disposição expressa dilatou excepcionalmente o período da vacatio legis".

Subjaz a esse entendimento de que não há direito adquirido a prazo prescricional em curso (mas apenas expectativa de direito), cabendo às partes se submeterem ao regime jurídico prescricional novo, ressalvada a hipótese de aplicação de redução do prazo geral em situações em que a pretensão já tenha sido exercida no regime anterior.

Merece menção que o Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de utilizar o critério que espelha a doutrina de Espínola, mencionada no voto do Min. Pedro Chaves. De fato, no julgamento do REsp 1.015.302/PE, a 2ª Turma, em acórdão relatado pelo ministro Herman Benjamin, tratando especificamente da redução do prazo prescricional (prescrição intercorrente) da pretensão tributária, entendeu que "[c]aso sobrevenha, durante o arquivamento do feito, modificação legislativa que reduza o prazo de prescrição, o termo inicial do novo prazo será o da data da vigência da lei que o estabelece, salvo se a prescrição, iniciada na vigência da lei antiga, vier a se completar, segundo a norma anterior, em menos tempo".

Como se vê, na ausência de determinação expressa do legislador, ao modificar a lei de improbidade administrativa, a exposição feita mostra que, caso o STF decida pela aplicação retroativa do novo prazo prescricional, poderá haver discussão de como deve ser contado esse prazo, em relação ao período transcorrido antes do advento da nova norma. A diversidade de questões que surgirão nessa perspectiva talvez imponha mais discussões a respeito.

 


[1] Como bem destacado pelo min. Alexandre de Moraes, em seu voto, "O caput do art. 23 alterou e unificou o prazo de prescrição para a propositura da ação de improbidade, que antes era de 5 anos, com diferentes dies a quo. Agora, para todas as hipóteses antes elencadas nos incisos revogados desse artigo, o prazo de prescrição é de 8 anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência. O § 4º trouxe marcos interruptivos da prescrição que se verificam pelo ajuizamento da ação e, partir daí, a contar da publicação da decisão judicial condenatória ou do acórdão que a confirme ou reforme. Ou seja, após o termo inicial, a sentença ou o acórdão interrompem a prescrição, desde que haja condenação do réu, pois a decisão absolutória não é apta a interromper o prazo prescricional. Por sua vez, o § 5º introduziu a prescrição intercorrente, que é deflagrada com o ajuizamento da ação […]. Assim, o prazo prescricional de oito anos, contado a partir do ato de improbidade, interrompe-se com o ajuizamento da ação e volta a correr pela metade do tempo (quatro anos) até interromper-se novamente com a publicação da primeira decisão condenatória".

[2] A Comissão de Juristas que elaborou o anteprojeto de lei, presidida pelo min. Mauro Campbell Marques, havia optado por uma norma transitória expressa, no sentido de que os prazos prescricionais somente seriam aplicados aos fatos ocorridos após a eventual vigência (art. 23-C do PL). Contudo, referido dispositivo não constou da redação final da lei. Vale menção, ainda, que, na tramitação do Projeto de Lei nº 2.505/2021 — que deu origem à Lei nº 14.230/2021 —, a CCJ do Senado rejeitou a emenda nº 40 – cujo objetivo era tratar expressamente da retroatividade das normas benéficas –, tendo o colegiado acolhida a seguinte manifestação do relator: "A Emenda nº 40, do senador Dário Berger, propõe a inclusão de artigo[…] para que as alterações dadas pela presente proposição, se apliquem desde logo em benefício dos réus. Rendendo homenagens ao senador Dário Berger, deixo de acolher a proposta tendo em vista que já é consolidada a orientação de longa data do Superior Tribunal de Justiça, na linha de que, ‘considerando os princípios do Direito Sancionador, a novatio legis in mellius deve retroagir para favorecer o apenado' (Resp nº 1.153.083/MT, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 19/11/2014)." In: BRASIL. Senado Federal, Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Parecer SF nº 14, de 2021, 29 de setembro de 2021, relator senador Weverton, p. 44.

[3] Sem rejeitar a natureza material da prescrição, cabe observar, como o faz Ricardo de Barros Leonel, que "direito processual e material não são estanques" e "a existência de 'faixas de estrangulamento’, nas quais há clara intersecção entre os planos material e processual do ordenamento jurídico" (LEONEL, Ricardo de Barros. Normas bifrontes no novo Código Civil: prescrição e decadência, 2002, p. 4. Vide também: DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2009, v. 1, p. 46).

[4] OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Direito de intervenção e direito administrativo sancionador: o pensamento de Hassemer e o direito penal brasileiro. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito Penal) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 90.

[5] NIETO, Alejandro. Derecho administrativo sancionador. 4ª. ed. Madrid: Editorial Tecnos, 2006, pp. 165-6.

[6] Para ilustrar: AgInt no RMS 65.486/RO, rel. min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, j. em 17/8/2021; REsp 1402893/MG, rel. min. Sérgio Kukina, 1ª Turma, j. em 11/4/2019.

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  • Brave

    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional, pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, doutor em Direito do Estado pela USP, mestre em Direito do Estado pela UnB, professor vinculado ao PPG do IDP (Brasília) e advogado.

  • Brave

    é mestrando em Direito Constitucional pelo IDP (Brasília), especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público pela FESMPDFT, professor no curso de pós-graduação em Direito Público na Escola da Magistratura do Distrito Federal e juiz de Direito substituto do TJDFT.

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