Diário de Classe

Autonomia do Direito e reivindicações por equidade

Autor

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

27 de agosto de 2022, 10h26

A questão da legitimidade do Judiciário para decidir questões políticas é permeada por muitas controvérsias e, muitas vezes, encontra resistências, visto que os juízes não são eleitos para seus cargos e não deveriam tomar decisões independentes no que diz respeito a modificar ou a expandir o repertório legal, "pois essas decisões somente devem ser tomadas sob o controle popular"[1]. Dworkin atrela esse tipo de justificação à defesa da estabilidade política e da capacidade de o Legislativo tomar decisões políticas com maior exatidão e, principalmente, à equidade. Poderíamos incluir nestes argumentos o da autonomia do Direito.

Ocorre que "os legisladores não estão, institucionalmente, em melhor posição que os juízes para decidir questões sobre direitos"[2], tendo em vista a constante pressão política que grupos politica e economicamente poderosos exercem sob os legisladores. Ainda, muito embora a insatisfação com determinada decisão judicial com frequência esteja associada à crítica ao emprego de argumentos de política e, por consequência, à instituição que a produziu, não se pode afirmar que desse fato decorra o aumento da desobediência a tais decisões[3].

A partir dessa construção, começam a se delinear as razões pelas quais Dworkin concebe a democracia como um empreendimento em parceria no qual as decisões da maioria não são, só por esse fato, legítimas, fazendo-se necessário que as decisões atendam a certas condições, por meio das quais se garanta a preservação da dignidade de todos os atingidos — em especial, os integrantes das minorias[4].

É justamente em razão da equidade — ou seja, de que a democracia pressupõe igualdade de poder político —  que a concepção dworkiniana de democracia ganha relevância. Ao assumir que "nenhuma democracia proporciona igualdade genuína de poder político"[5], Dworkin reconhece a inexistência de paridade na disputa pela garantia de direitos individuais entre grupos com mais e menos poder político. Depreende, pela concepção de Estado de Direito centrada nos direitos, que os indivíduos teriam "o direito de exigir, como indivíduos, um julgamento específico acerca de seus direitos"[6] que, uma vez reconhecidos por um Tribunal, passariam a ser exercidos, "a despeito do fato de nenhum Parlamento ter tido tempo ou vontade de impô-los"[7].

Apesar de não ser possível o comprometimento com a certeza das decisões, o fórum do princípio, que sustenta a concepção centrada nos direitos como ideal político,  assegura que as reivindicações dos indivíduos serão constante e seriamente consideradas a seu pedido, reforçando o senso de justiça e o ideal sob o qual estão enraizados os valores políticos da democracia e do Estado de Direito, de que o governo irá tratar as pessoas como iguais[8].

Nesse sentido, os membros de minorias organizadas, teoricamente, ganhariam com a transferência das decisões para o âmbito do judiciário, pois o viés majoritário do legislativo funciona mais severamente contra eles, havendo mais probabilidade de que seus direitos sejam ignorados nesse fórum. Se os tribunais tomam a proteção de direitos individuais como sua responsabilidade especial, então as minorias ganharão em poder político, na medida em que o acesso aos tribunais é efetivamente possível e na medida em que as decisões dos tribunais sobre seus direitos são efetivamente fundamentadas[9].

Isso porque a leitura moral, ao exigir que os juízes estabeleçam juízos atuais de moralidade política, encoraja juristas e juízes a interpretarem a Constituição abstrata à luz de sua concepção de justiça. Contudo, a fidelidade ao texto constitucional e ao Direito pressupõe a demonstração das verdadeiras bases formadoras de juízos com o intuito de permitir maior participação popular nas discussões, esperando que os juízes elaborem argumentos mais sinceros e fundamentados em princípio, de forma a serem combatidas possíveis arbitrariedades[10].

Venho me ocupado de desenvolver os aspectos positivos da leitura moral da constituição no sentido de garantir a efetividade de direitos de minorias estigmatizadas sem que se deixe de lado as questões impostas pela construção da Resposta Adequada à Constituição (RAC). Somente pode se pensar no caráter positivo das pressões discursivas pela atualização da gramática dos princípios de acordo com a perspectiva da paridade de participação e da legitimidade do judiciário para decidir questões morais, este é o argumento que apresento no meu livro "Contrapúblicos interpretativos: provocações feministas às respostas corretas em Direito". Contudo, com esta proposta, não se abandona, a Crítica Hermenêutica do Direito pois sobre a decisão, entende-se a como correta no momento em que ela, respeitando a autonomia do Direito, busca evitar a discricionariedade, respeitando a coerência e a integridade do ordenamento jurídico por meio de detalhada fundamentação em argumentos de princípio[11]. Quanto à questão da autonomia do Direito, mesmo diante de tamanha relação com a política, ela está garantida no combate do emprego de uma correção moral teleológica, salvaguardando os argumentos jurídicos de sucumbirem à vontade dos aplicadores pelo emprego de argumentos de princípio.


[1] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 17

[2]  DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 27.

[3]  DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 29.

[4] MOTTA, Francisco José Borges. Dworkin e a decisão jurídica democrática: a leitura moral da Constituição e o Novo Código de Processo Civil. In: OMMATI, José Emílio Medauar. Ronald Dworkin e o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p.259-260.

[5] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 31.

[6] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 31.

[7] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 31.

[8] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 38.

[9] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 32.

[10] DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 57.

[11] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 624.

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