Limite Penal

Processo criminal é um ambiente propício a transgressões epistêmicas

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26 de agosto de 2022, 11h36

Transgressão epistêmica é uma expressão cunhada pelo filósofo Nathan Ballantyne em artigo com o mesmo título ("Epistemic Trespassing") publicado em 2019 na revista Mind [1]. Para o autor, aqueles que cometem uma transgressão epistêmica "possuem competência ou expertise para formular juízos em uma área, mas passam a outra área na qual carecem de competência  e emitem juízes mesmo assim". Acusações de transgressão epistêmica maculam as imagens de Linus Pauling, duas vezes ganhador do Prêmio Nobel, por ter defendido que câncer e resfriado poderiam ser curados com altas doses de vitamina C; e de Richard Dawkins, o biólogo evolucionista norte-americano, por discorrer sobre Deus e religião em sua obra.

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Mais especificamente, a transgressão epistêmica ocorre quando o expert de uma área do conhecimento invade as fronteiras de outra área cujas evidências ele não possui, ou simplesmente quando não detém a competência necessária para as interpretar. Como explica Ballantyne, isso ocorre especialmente quando há interconexão entre diferentes áreas ou domínios — fenômeno comum em um mundo onde se estimula o intercâmbio interdisciplinar, em especial na academia contemporânea. Um expert em filosofia moral hoje dificilmente constrói a sua teoria apenas com análises conceituais: ele faz constante referência a áreas como a psicologia experimental, as ciências cognitivas e a neurociência  áreas essas cujas evidências ele não possui em primeira mão ou não é capaz de interpretar por si próprio.

O processo judicial, de certa forma, nos parece ser um ambiente paradigmático para a aplicação do conceito de transgressão epistêmica. O papel histórico da atuação de profissionais detentores de conhecimento técnico-científico (perícia) no sistema de justiça criminal poderia por si só demonstrar o caráter marcadamente interdisciplinar da atividade de adjudicação. Mas podemos ir além, em virtude da constante ampliação dos mecanismos para a atuação de especialistas como provedores de informações fáticas. Pensemos na figura do amicus curiae, prevista no artigo 138 do Código de Processo Civil, e nos especialistas de toda sorte que participam em audiências públicas, tanto no Supremo Tribunal Federal como no Superior Tribunal de Justiça. Os tribunais, portanto, seguem o caminho da chamada expertização da vida contemporânea, e recorrem cada vez mais a conhecimentos especializados (técnicos e científicos) para os seus diferentes processos de tomada de decisão.

Mark Satta, em artigo recente intitulado "Epistemic Trepassing and Expert Witness Testimony", aborda um caso de transgressão epistêmica praticado por especialistas chamados a testemunhar no contexto de um julgamento criminal [2]. Trata-se de um caso de 1988, em que o réu, Curtis Weeks, foi acusado de tentativa de homicídio por ter cuspido duas vezes no rosto de um guarda penitenciário. Ele era soropositivo. No curso do processo, quatro experts foram ouvidos  três pela acusação e um pela defesa. Somente um dos especialistas oferecidos pela acusação era especialista na área relevante (clínico geral especializado em doenças infecciosas). Os demais eram um psicólogo, sem capacitação formal em medicina ou biologia, mas que dedicou grande parte do seu tempo a "pesquisar a literatura"; e uma cirurgiã ortopédica, que "iniciou uma pesquisa própria sobre Aids". Por outro lado, o expert da defesa era professor de microbiologia e medicina interna e diretor do Laboratório de Virologia Diagnóstica da Universidade do Texas; ele afirmou desconhecer "qualquer um que tenha adquirido HIV como resultado de um contato apenas com a saliva". Weeks foi condenado à prisão perpétua, e seu julgamento pelo tribunal do júri foi mantido em sede de apelação.

Como argumenta Satta, a transgressão epistêmica dos experts no caso Weeks deveria ter sido evitada pelo juiz, na qualidade de "porteiro" responsável pela qualidade das provas admitidas no processo e por delimitar as manifestações dos experts da acusação [3]. Do mesmo modo, os jurados, quando da valoração da prova admitida, deveriam ter adotado a transgressão epistêmica como um critério para avaliar a confiabilidade dos especialistas da acusação. Nos dois casos, afirma Satta, tanto os juízes como os jurados poderiam basear-se indicadores de expertise  tais como credenciais e histórico profissional  para identificar os limites que separam uma avaliação confiável de uma transgressão de domínio epistêmico.     

Um expert discorrendo sobre tópico situado além de seu domínio de expertise parece ser o caso típico de transgressão epistêmica. No contexto do processo judicial, poderíamos observar esse fenômeno quando há uma extrapolação por parte do expert em relação às evidências que suportam sua conclusão  algo que pode, eventualmente, resultar na invasão da área de atuação de juízes ou jurados. Quando as conclusões do perito apenas extrapolam o que lhe seria permitido inferir a partir das evidências disponíveis, estamos diante de um caso contestável de transgressão epistêmica — pode ser simplesmente uma questão de erro (intencional ou não), o que constitui certamente uma violação de normas epistêmicas, mas não exatamente uma transgressão, no sentido de invasão de outro domínio.

Ainda que não se possa classificar conclusões sem suporte nas evidências e informações disponíveis como uma transgressão, no sentido que aqui apresentamos, sua frequência e a possibilidade de que se transforme efetivamente numa transgressão epistêmica justificam a apresentação de um exemplo ilustrativo. Tal fenômeno se manifesta, por exemplo, sempre que o perito emprega linguagem categórica para expressar conclusões alcançadas por meio de raciocínio indutivo (ou até mesmo sem raciocínio algum). Este procedimento, descrito por Lindley como "supressão de incerteza", é frequente na comunicação de resultados de exames comparativos nos quais um item questionado e um item padrão são considerados semelhantes, levando a conclusões como "o projétil recuperado no corpo da vítima foi disparado pela arma do suspeito" ou "o fragmento de impressão digital encontrado na cena de crime tem origem no polegar da mão direita do suspeito" [4].

Mas, como dissemos, é possível que as conclusões de um expert venham a extrapolar as evidências que este possui a ponto de representar não só um erro epistêmico, mas também uma ingerência no domínio epistêmico e institucional de juízes ou jurados. Neste caso, temos uma transgressão epistêmica e também institucional, pois o conhecimento do direito aplicável pertence à competência intelectual e política de juízes; ou, quando for o caso, do tribunal do júri.

Para entender melhor os casos em que peritos se pronunciam sobre elementos de ordem jurídica que competem exclusivamente a jurados e juízes, e cuja avaliação depende das provas não-científicas disponíveis, é útil explicar brevemente o conceito de hierarquia de proposições. Em um caso de suposta violência sexual, por exemplo, no qual a principal prova material é uma amostra de sêmen coletada na coxa da denunciante, e cujo perfil genético corresponde ao perfil genético do acusado, proposições do primeiro nível da hierarquia tratam da fonte do vestígio ("o vestígio tem origem no acusado" e "o vestígio tem origem em alguma outra pessoa na população"); proposições do segundo nível da hierarquia tratam da atividade que produziu o vestígio ("o acusado ejaculou na coxa da denunciante" e "o acusado não tem relação com o evento"); e proposições do terceiro nível da hierarquia tratam do crime em apuração ("o acusado estuprou a denunciante" e "a relação sexual entre o acusado e a denunciante foi consentida"). Nota-se, com esse caso hipotético, que a avaliação de evidências considerando proposições do terceiro nível da hierarquia (nível crime) não depende apenas da prova de DNA, mas também de todo o restante do conjunto probatório. Um perito cujas conclusões fossem baseadas em proposições do nível crime estaria se pronunciando sobre algo além do que é possível, do ponto de vista epistêmico, e do que lhe é permitido, do ponto de vista institucional.

O tomador de decisão também pode incorrer na prática de transgressão epistêmica. Por exemplo, quando juízes descartam provas técnicas sem justificativa (sejam elas favoráveis à tese da acusação ou à tese da defesa) ou quando acolhem provas periciais de validade questionável ou até mesmo refutadas pela comunidade científica relevante. Logo, poderíamos dizer que a falta de deferência do juiz ao expert, quando ela é efetivamente devida, é também uma forma de transgressão epistêmica. A não-deferência ao expert quando não há razões de segunda-ordem que desabonem a sua autoridade epistêmica parece ser um caso de transgressão epistêmica porque, neste caso, o tomador de decisão (juiz ou jurados) irá inevitavelmente se colocar na posição de elaborar conclusões sem dispor das competências necessárias no caso concreto, ou a partir de evidências que não possui.    

Para controlar a ocorrência da transgressão epistêmica no processo criminal, precisamos de amparo em nosso sistema jurídico  atualmente limitado ao artigo 159 do Código de Processo Penal, cujo caput remete-nos apenas à necessidade de "perito oficial, portador de diploma de curso superior". Tal disposição parece delegar às instituições periciais o controle de qualidade das competências do expert. Seu parágrafo primeiro, no entanto, pode ser problemático ao dispor que, na falta de peritos oficiais, um diploma de curso superior "na área específica" é suficiente para a nomeação de um perito ad hoc. Se pensarmos que as competências necessárias para um médico realizar uma cirurgia não incluem as competências necessárias ao exame de ferimentos para identificar suas causas, notamos que esse dispositivo pode favorecer a ocorrência de transgressões epistêmicas. Esse fenômeno, cuja natureza jurídica está ainda por ser determinada, requer atenção e seu tratamento adequado pode passar pela adoção de filtros de admissibilidade técnica das provas periciais.


[1] "Transgressão epistêmica" é a tradução que nós identificamos como sendo a mais adequada para conotar, de uma só vez, as ideias de ultrapassar fronteiras ou limites de um domínio e violar normas epistêmicas – ambas parecem estar inscritas no significado deste conceito. Outra possível tradução seria "invasão epistêmica".

[2] No sistema da common law, os peritos são indicados pelas partes e oferecem suas conclusões em audiência, sendo assim chamados de "testemunhas expertas" (expert witnesses).

[3] Em outra oportunidade, já abordamos nesta coluna o problema do ethos inclusivista que marca o processo penal nos países da tradição do civil law, o que faz com que o controle da fiabilidade da prova pericial seja postergado para o momento da valoração. V. Rachel Herdy e Juliana Dias, "Devemos admitir provas periciais de baixa fiabilidade eepistêmica?", Conjur, 5 de março de 2021. 

[4] Ver, nesta coluna, o texto "Pode-se afirmar, categoricamente, que a bala partiu de uma arma em particular?", de Rachel Herdy; bem como a decisão paradigmática do juiz Todd Edelman no importante precedente da Suprema Corte do Distrito da Columbia (D.C.), Estados Unidos, United States v. Marquette Tibbs (2019).

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