Os aeroportos e a exótica taxa de preservação ambiental de Guarulhos
22 de agosto de 2022, 8h00
É antiga a busca de estados e municípios por ampliar sua arrecadação através da instituição de múltiplas taxas de fiscalização, muitas das quais sem o devido amparo constitucional. Normalmente o valor cobrado é individualmente baixo, o que faz com que não raro os contribuintes prefiram assumir o custo e repassá-lo aos preços, do que enfrentar uma batalha judicial. Ocorre que, quando se assusta, surge uma nova taxa, e mais outra, e mais outra, em uma espiral sem fim.

Não há dúvidas que o transporte aéreo é poluidor, mas será que essa taxa pode ser cobrada pelos municípios? Existem muitas peculiaridades na norma aprovada, que demandariam vasta argumentação, mas serei sintético.
A despeito da base de cálculo ser o custo estimado do exercício do poder de polícia em matéria ambiental (art. 4º), foi desde logo estipulado que o valor a ser pago corresponde a três UFGs (Unidades Fiscais de Guarulhos) para cada tonelada da aeronave (art. 5º), considerado o peso total no momento anterior à decolagem, incluindo combustível, carga, passageiros e bagagens (art. 5º, §1º).
Quem deve pagar a taxa são as pessoas físicas ou jurídicas operadoras do voo, "cujas aeronaves civis sobrevoarem o Município de Guarulhos, em atividade de decolagem ou de aterrissagem" (art. 3º).
Parece claro que, na verdade, quem pagará essa taxa será o passageiro. Segundo informações disponíveis na mídia, um Boeing 767-300 tem peso estimado de 160 toneladas na decolagem, e pagará R$ 1.874,95. Considerando os 221 assentos, o custo por passageiro será de R$ 8,48. É pouco em face do atual preço das passagens aéreas, o que desestimula a litigância, conforme exposto.
A destinação dos recursos é bastante curiosa, pois "serão destinados exclusivamente ao custeio administrativo e operacional de projetos de cunho ambiental que objetivem a proteção, preservação e conservação do meio ambiente, de projetos de saúde pública, bem como para programas de coleta, remoção e disposição dos resíduos sólidos do Município", visando a redução dos danos decorrentes "do trânsito de aeronaves civis que sobrevoarem o Município de Guarulhos, em atividade de decolagem ou de aterrissagem" (art. 8º). Aqui há um raciocínio tributariamente desconcatenado, pois, uma coisa é a poluição das aeronaves, e outra coisa é a coleta do lixo na área do Município, o que afasta qualquer "referibilidade" referente à alegada fiscalização.
Surgem diversas perplexidades na leitura da norma, tais como: (1) pode o município taxar esse tipo de atividade regulada pela União através da Anac? (2) É possível instituir esta espécie de subsídio cruzado através de taxas de fiscalização, pois quem decola ou aterrissa pagará pela coleta de resíduos sólidos (lixo) em todo o Município de Guarulhos, mesmo naquelas áreas municipais que sequer ouvem o barulho das aeronaves? (3) Que tipo de fiscalização será efetuada pelo Município no caso em apreço? Ou essa taxa é declaradamente arrecadatória, o que é vedado?
À luz do que determinam a legislação, a jurisprudência e a doutrina, não haverá dúvida em afirmar "não" a todas as perguntas acima efetuadas. Excetua-se recente decisão do STF, que instituiu um verdadeiro zig-zag em sua jurisprudência em matéria de taxas de fiscalização, conforme se verificou na questão das taxas minerárias.
Em síntese: trata-se de um tema juridicamente importantíssimo, mas difuso, porque o impacto financeiro nos "contribuintes de fato" é muito pequeno, pois fracionado em múltiplas unidades, o que desestimula a discussão judicial. Ocorre que, se tal norma for validada, todos os mais de 5 mil municípios instituirão algo semelhante, seja na aterrisagem ou na decolagem, ou no singelo ato de as aeronaves "atravessarem o espaço aéreo municipal".
O receio é acontecer como relatado por Júlio Cortázar, fantástico escritor argentino, em seu conto A Casa Tomada, ao dizer através de um de seus personagens: "Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos". A cada dia algo cada vez mais considerado "etéreo", como a "proteção da ordem jurídica", é deixada de lado em nome da praticabilidade ou da boa convivência, e nossa Constituição vai sendo tomada, passo a passo.
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