Direito Civil Atual

Aplicação dos critérios contratuais para a correção monetária em execuções

Autores

  • Abrahan Lincoln Dorea Silva

    é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco) com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

  • William Galle Dietrich

    é advogado doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

22 de agosto de 2022, 14h58

Como regra, os contratos preveem cláusulas sobre o índice de correção monetária que deverá ser utilizado para a atualização da dívida, sobretudo no caso de inadimplemento do contrato. Todavia, com o inadimplemento e a cobrança judicial sem pagamento voluntário do devedor, poder-se-ia questionar qual o índice aplicável para a atualização do crédito diante da desvalorização da moeda durante a execução: seria efetivamente o critério pactuado no contrato ou o índice adotado pelo respectivo Tribunal de Justiça?

ConJur
Nesta coluna, abordar-se-á a problemática da correção monetária nas execuções de título extrajudiciais; em uma próxima, a temática nos cumprimentos de sentença que dão enforcement a contratos, a exemplo de ações monitórias e de cobrança.

O que é correção monetária?
Conforme previsão do artigo 315 do Código Civil, "as dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal, salvo o disposto nos artigos subsequentes". O dispositivo inseriu no sistema privatístico o nominalismo, princípio que estabelece que as dívidas corresponderão sempre ao valor nominal do título, de modo que se uma parte se obriga a pagar R$ 100, tem-se, por consequência, que a entrega de uma cédula de R$ 100 solverá a dívida. Nem mais, nem menos. O princípio parece simples, até que a reflexão se atenha às obrigações de prestações diferidas ou continuadas, ou, ainda, no caso de inadimplemento prolongado da obrigação. Nesses casos, a inflação se torna um componente de depreciação do valor da moeda e pode levar a desequilíbrios nas prestações por fatores econômicos que escapam ao controle dos contratantes, gerando insegurança aos credores.

Em aparente incompatibilidade com o princípio do nominalismo, surgiu o mecanismo da correção monetária, que é uma forma de atualizar o valor de uma dívida diante da depreciação da moeda. Desse modo, sendo devida e não paga — ou mesmo se devida, mas com pagamento a ser feito no futuro —, o valor a ser pago poderá alterar de acordo com a variação do valor da moeda no mercado. A discussão se a correção monetária seria incompatível com o princípio do nominalismo é, já, questão superada na literatura jurídica [1] e na jurisprudência, havendo diversas súmulas do Superior Tribunal de Justiça sobre a temática da correção monetária [2]. Além disso, vale destacar que o STJ tem decidido de forma expressa, já há mais de três décadas, que a correção monetária "não constituiu um plus [daí por que não viola o nominalismo], representando mera atualização da moeda aviltada pela inflação" [3].

Contudo, nem todas as discussões envolvendo a correção monetária encontram-se com tanta estabilidade. Isso porque, como não há uma uniformidade na metodologia para o cálculo da depreciação do valor da moeda, existem diversos índices utilizados para a correção monetária, como o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA, índice oficial de inflação do Brasil medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE), o Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M, índice medido pela Fundação Getúlio Vargas), Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC, também medido pelo IBGE, mas com metodologia diferente do IPCA) etc. Em razão da distinção de metodologia, a depender do índice utilizado, a correção monetária poderá apresentar valores completamente distintos. A título de exemplo, se contraída e não paga dívida de R$ 1 milhão em 1/1/2005, o seu valor, corrigido pelo IPCA–E, será de R$ 2.564.209,50 em 1/1/2022. A mesma dívida, se corrigida pelo IGP–M, terá valor de R$ 3.386.652,90 em 1/1/2022. Ou seja, a depender do índice de correção, a dívida poderá apresentar uma diferença de R$ 822.443,40 [4].

O índice aplicado à correção monetária é um fator relevante para os contratantes e, por isso, há, em regra, previsão contratual de índices para a correção monetária. No entanto, os Tribunais de Justiça também adotam as chamadas "Tabelas Práticas" para correção monetária, cujos índices variam nos órgãos jurisdicionais. No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o índice de correção monetária utilizado é o INPC, enquanto no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, o índice aplicado é a média aritmética simples entre o INPC e o IGP-DI [5]. Já o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem aplicado majoritariamente o IGP–M [6].

Nesse sentido, poder-se-ia questionar: nas execuções de título extrajudicial e nos cumprimentos de sentenças que dão enforcement a contratos, qual é o índice de correção monetária a ser aplicado? O contratual ou o do tribunal? Essas perguntas serão, como já exposto na introdução, respondidas em duas colunas. Nesta, será abordada a problemática nas execuções de título extrajudicial.

Correção monetária nas execuções de título extrajudiciais
As execuções de título extrajudicial representam forma direta de cobrança de dívida inadimplida, quando há direito creditório líquido, certo e exigível com fundamento em algum dos títulos previstos no artigo 784 do Código de Processo Civil. A força executiva do título foi assegurada pelo sistema processual de tal forma que eventual questionamento da execução veiculado pelo Executado, em embargos à execução, só suspenderá o curso da execução — e os respectivos atos constritivos — se deferido pelo juiz, o que dependerá de garantia da execução com penhora, depósito ou caução suficientes, conforme o artigo 919, §1º do Código de Processo Civil.

Com isso, nota-se que o diploma processual deu, a alguns títulos, garantia de seu cumprimento em seus exatos termos independentemente de processo de conhecimento e de pronunciamento judicial. Desse modo, seria, no mínimo, incoerente que, diante da força executiva do título, o seu teor fosse ignorado para a aplicação de índice de correção monetária previsto pelos tribunais.

Deve-se destacar ainda que não há prescrição legal que fixe a obrigatoriedade da aplicação das Tabelas Práticas dos Tribunais para a correção monetária de dívidas. Vigora a autonomia privada e a liberdade contratual, de modo que os contratantes gozam de liberdade para criar vínculos jurídicos e detalhar, no objeto do contrato, que a correção monetária será realizada por este ou aquele índice. Assim, a aplicação do índice contratual para a correção monetária é obediência ao corolário do pacta sunt servanda.

Além disso, as Tabelas Práticas dos tribunais existem para suprir a inexistência de índice de correção monetária, sobretudo no caso de dívidas judiciais sem fundamento em contratos. Sua aplicação seria, então, subsidiária, existente somente nos casos em que não há índice contratualmente previsto, sendo incabível a substituição do índice adotado pelas partes em contrato pelo índice adotado pelo tribunal.

Pode-se acrescentar a isso o fato de que, se o credor detém título executivo extrajudicial, em regra providenciará o ajuizamento tão logo quanto possível em caso de inadimplemento, sobretudo diante do risco de esvaziamento de ativos e blindagem patrimonial de devedores que não têm intenção de pagar. Desse modo, se a cláusula de correção monetária só vale até o momento do ajuizamento execução, tornando-se completamente ineficaz após ela, seu efeito será ineficaz no contrato e, na prática, será inútil acordar a respeito dos critérios de correção monetária.

Além dos argumentos de natureza normativa, tais quais os até aqui apresentados, também vale destacar um argumento que observa as eventuais consequências da adoção de tais índices pelo Poder Judiciário: a adoção de um índice de correção pelo tribunal, em detrimento daquele pactuado pelas partes, pode, eventualmente, conforme demonstrado na diferença de cálculo apresentada no início deste texto, fomentar o inadimplemento. Ou seja, pode ser vantajoso para o devedor forçar o credor a ajuizar uma execução, dado que o tribunal pode passar a corrigir a dívida por índice menos oneroso do que aquele celebrado entre as partes.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II—Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] Veja-se, nesse sentido: COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: Obrigações, Responsabilidade Civil. 8.ed (digital). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. v. 2. p. 71–72.

[2] Súmula 43: "Incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo"; Súmula 362: "A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento".

[3] STJ, REsp 2.430/SP, rel. min. Sálvio de Figueiredo, 4.ª T., j. 5/6/1990, DJ 6/8/1990.

[5] "Sobre a complementação indenizatória aplica-se correção monetária pela média aritmética entre o INPC e o IGP-DI, índice adotado por esta Corte e em observância ao Decreto n. 1544 /95." (TJ-PR – 8ª C.Cível – 0004182-15.2017.8.16.0001 – Curitiba – rel. desembargador Hélio Henrique Lopes Fernandes Lima – J. 25/4/2019)

[6] Nesse sentido, vale observar recente matéria publicada pelo Consultor Jurídico tratando do tema e das variações nos tribunais brasileiros: https://www.conjur.com.br/2022-abr-26/tj-rs-determina-aplicacao-ipca-correcao-indenizacao. Acesso em 21 ago. 22.

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  • é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco), com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon, ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

  • é advogado, doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), como bolsista Capes/Proex, membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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