Opinião

Questões sem "relevância": jurisdição cooperada e redefinição de competência

Autores

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) doutor e mestre (Universidade Federal do Pará) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) procurador do estado do Pará e advogado.

  • Rodrigo Nery

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (com ênfase em Direito Processual Civil) pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq/UnB Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) integrante e orador da primeira equipe da UnB na 1ª Competição Brasileira de Processo (CBP) e advogado.

22 de agosto de 2022, 19h30

Este artigo tem por objetivo contribuir para o debate acerca das consequências processuais e constitucionais decorrentes da Emenda Constitucional (EC nº 125) que recentemente consagrou a necessidade da comprovação da relevância da questão federal no recurso especial (REsp), como requisito ou filtro de acesso ao Superior Tribunal de Justiça.

De início, é importante ressaltar que, com a entrada em vigor da EC nº 125 no último mês de julho/2022, parcela da doutrina passou a destacar a nóvel dinâmica de processamento do REsp pelo Superior Tribunal de Justiça [1]. De fato, é inegável que a referida Emenda acarreta mudanças sensíveis na forma como o REsp é processado e julgado pela referida Corte Superior a partir da agora, com dois reflexos importantes em relação a temas absolutamente interligados: a) governança judicial; b) cooperação no exercício das atividades e na própria competência recursal dos tribunais locais (tribunais de justiça e regionais federais).

A fixação, pelo STJ, de teses com e sem relevância, de um lado, permitirá a fixação de filtro importante para a gestão dos processos na Corte e ampliará a competência local na apreciação e encerramento de processos sem a remessa para a instância superior. Trata-se, em suma, de filtro de controle de processos e de temas, para permitir a gestão de causas pela Corte Superior.

Aliás, Teresa Arruda Alvim , Carolina Uzeda e Ernani Meyer afirmam que o legislador estabeleceu "mais um filtro, agora para o STJ" [2]. No nosso sentir, esse filtro configura-se como um marco sem volta na dinâmica de processamento dos apelos extremos, o que inevitavelmente nos faz reconhecer que possui razão José Miguel Garcia Medina quando afirma que, com o filtro da "relevância" estabelecido pela EC 125/2022, um "novo STJ" [3] surgirá.

Não obstante essa constatação, é importante indagar: somente essa Corte Superior é que será afetada pela EC nº 125/2022? O que poderíamos dizer da atuação dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados?

As perguntas feitas acima não foram escolhidas por acaso. Como já mencionado, da análise da EC nº 125/2022, entendemos que não somente o Superior Tribunal de Justiça será afetado pelas modificações constitucionais estabelecidas.

As chamadas "Cortes de Justiça" [4] também terão a sua atuação modificada, diríamos, até, ressignificada. Essa ressignificação, verdadeira atuação em cooperação, possui grande importância no que diz respeito à compreensão das funções exercidas por essas Cortes no contexto do Poder Judiciário brasileiro. Este ponto merece maior reflexão no presente texto.

Em primeiro lugar, se a lei a ser editada estabelecer dinâmica semelhante aos casos em que o STF não tenha reconhecido a existência de repercussão geral (artigo 1.030, I, a, do CPC) com a negativa de seguimento [5] de todos os recursos especiais com a mesma questão federal que o STJ já tiver afirmado não ser relevante (sem discutir aqui o que será considerado ou não como "relevante" pelo legislador ao regulamentar a EC nº 125/2022), é de se destacar que as Cortes de Justiça (TJs e TRFs) inevitavelmente terão a última palavra para todas as questões de Direito Federal infraconstitucional que não forem "relevantes".

Dito de outra forma: nos recursos posteriores à declaração de inexistência de relevância, a última instância da análise da questão infraconstitucional será nas Cortes de Justiça.

Então, analisando a modificação ocorrida pela EC nº 125/2022, com o desenvolvimento da sistemática do filtro da "relevância", os recursos especiais que versem sobre temas que não sejam "relevantes" não serão julgados pelo STJ. A decisão que acarretar a negativa de seguimento do recurso (com a inclusão de tal aspecto na lei regulamentar e também no artigo 1030, I, a, do CPC), estará sujeita tão-somente a Agravo Inerno, com o impedimento de acesso à Corte Superior.

Adentramos, então, no segundo ponto, que se configura como a principal reflexão deste escrito. Com o advento da EC nº 125/2022, houve uma redefinição da competência federativa dos TJs e TRFs, ainda que de forma sutil. Essas Cortes de Justiça, agora, graças à modificação estabelecida na Constituição, passarão a ter a última palavra sobre questões infraconstitucionais sem “relevância” (melhor dizendo: sem "relevância" para o STJ), como, aliás, já ocorre nos casos em que as questões constitucionais não possuem repercussão geral.

Em síntese, sem a pretensão de concluir a discussão: mais do que nunca, com a EC nº 125/2022, será necessário refletir sobre o papel das Cortes de Justiça no cenário constitucional, notadamente no que diz respeito à atuação dessas cortes como, quem sabe, cortes de precedentes "regionais" em questões constitucionais (sem repercussão geral) e infraconstitucionais (sem relevância).

Em última análise, a emenda constitucional, além de consagrar um novo STJ, provoca uma redefinição do papel das cortes locais na apreciação (em última instância) de questões constitucionais e infraconstitucionais em muitas situações jurídicas.

Como se apontou em outro texto recentemente publicado: "em última análise: a Emenda e a futura lei regulamentadora devem atingir a quantidade elevadíssima de Agravos do artigo 1.042, do CPC, que são remetidos mensalmente ao Superior Tribunal de Justiça, ficando os casos futuros diretamente atingidos pela declaração da inexistência de Relevância submetidos à análise tão-somente das Cortes Locais, exatamente como ocorre nos casos de ausência de Repercussão Geral no Recurso Extraordinário" [6].

Enfim: uma nova EC, para um novo papel do STJ e, principalmente, das cortes locais, com reflexos importantes na atuação dos operadores de direito.


[1] Sobre o tema, por exemplo: 1) MOUTA, José Henrique. Relevância da questão federal no recurso especial: observaçõs acerca da EC 125. Migalhas. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/370139/relevancia-da-questao-federal-no-recurso-especial .  Acesso em: 13/08/2022; 2) MEDINA, José Miguel Garcia. Um novo recurso especial, um novo Superior Tribunal de Justiça. Conjur. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-ago-10/processo-novoum-recurso-especial-superior-tribunal-justica?s=08. Acesso em 13/08/2022; 3) ABBOUD, Georges; KROSCHINSKY, Matthäus. Notas sobre a nova arguição de relevância em recurso especial. Conjur. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-20/abboud-kroschinsky-arguicao-relevancia-resp. Acesso em 13/08/2022.

[2] ALVIM, Teresa Arruda; UZEDA, Carolina; MEYER, Ernani. Mais um filtro, agora para o STJ: Uma análise da EC 125/2022.Revista de Processo.. vol. 330. ano 47. São Paulo: Ed. RT, agosto 2022, página 1.

[3]MEDINA, José Miguel Garcia. Um novo recurso especial, um novo Superior Tribunal de Justiça. Conjur. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-ago-10/processo-novoum-recurso-especial-superior-tribunal-justica?s=08. Acesso em 13/08/2022.

[4] Valendo-nos da expressão  utilizada por, entre outros, Daniel Mitidiero em: MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 39 e passim; e MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 3ª ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Thomson  Reuters Brasil, 2018, p. 83 e passim. É importante observar, todavia, que não adotamos o conceito específico do autor. A utilização da expressão "Cortes de Justiça" tem a estrita finalidade de designar as Cortes locais (que não são as Cortes Superiores), e não a de apontar a função exercida por determinado tribunal.

[5] Sobre a distinção entre negar seguimento e inadmitir o recurso, cf. MEDINA, José Miguel Garcia. Admissibilidade dos recursos extraordinário e especial no tribunal recorrido. Conjur. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-06/processo-admissibilidade-res-resps-tribunal-recorrido. Acesso em: 13/08/2022.

[6] MOUTA, José Henrique. Relevância da questão federal no recurso especial: observaçõs acerca da EC 125. Migalhas. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/370139/relevancia-da-questao-federal-no-recurso-especial .  Acesso em: 13/08/2022.

Autores

  • é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), doutor e mestre (Universidade Federal do Pará), professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), procurador do estado do Pará e advogado.

  • é doutorando e mestre em Direito pela UnB, com ênfase em Direito Processual Civil, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito, bacharel em Direito pela UnB, membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Processual Civil da UnB (GEPC-UnB) e membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).

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