Pensando a lápis

A instrumentalização das transações tributárias no âmbito federal

Autor

  • Lina Santin

    é doutoranda em Direito Tributário pela PUC-SP mestre pela FGV pesquisadora e coordenadora executiva do NEF/FGV diretora do MDA e secretária da Comissão de Direito Tributário do Iasp.

8 de agosto de 2022, 8h05

I – Do limbo após promulgação do CTN passando pela instituição dos sucessivos "Refis"
Desde a promulgação do Código Tributário Nacional (CTN), o instituto da transação tributária é previsto como modalidade de extinção do crédito, nos termos dos artigos 156, III e 171, caput. Não obstante, muito já se discutiu a respeito do cabimento constitucional deste instituto, alegando-se a indisponibilidade do interesse público e a vedação de dispor do crédito tributário, teoria reforçada pelo artigo 841 do Código Civil, que restringe a transação aos direitos patrimoniais de caráter privado.

Somente após 34 anos de promulgação da Lei 5.172/1966 — e passados 47 anos do anteprojeto de autoria de Rubens Gomes de Souza — é que foi promulgada a Lei 9.964, de 10 de abril de 2000, conversão da Medida Provisória 2.004-6/2000, que instituiu o Programa de Recuperação Fiscal, popularmente conhecido pela sigla "Refis" e iniciou uma sucessiva série de programas especiais de parcelamentos de débitos tributários federais, que previam pagamentos parcelados com descontos de multa e juros, conforme condições de adesão impostas pelo poder público. Seriam estes os primeiros modelos de transação.

De lá para cá, muitas críticas foram feitas sob a ótica da eficiência destes parcelamentos como instrumentos de política pública, seja porque premiavam o contribuinte inadimplente, seja porque incentivaram o não compliance, alegando-se, inclusive, que os parcelamentos se tornavam uma nova forma de financiamento das atividades empresariais, tanto em razão do custo de oportunidade, quanto diante da certeza de que novos programas seriam editados.

Em paralelo, a necessidade de desenvolvimento de formas inovadoras e capazes de dirimir conflitos, sobretudo as que se mostrassem mais céleres, efetivas e menos onerosas, sem incentivar condutas de não compliance, apontava a premência de se regulamentar, de forma permanente, o instituto da transação tributária.

II – Da crescente e necessária mudança de postura do Fisco
O cenário fiscal brasileiro das últimas décadas ilustra o tamanho distanciamento entre fisco e contribuintes e a dificuldade das partes dialogarem: de um lado, contribuintes buscando otimizar as questões fiscais, encontram-se desorientados e muitas vezes sequer conseguem saber quais tributos e alíquotas incidem sobre determinada operação; de outro, o fisco pressionado a arrecadar cada vez mais, cumpre seu papel punitivo, lavrando elevados autos de infração à qualquer indício de erro ou economia fiscal, contribuindo para o aumento do caos e do passivo tributário das empresas.

A necessidade de que as práticas tributárias sejam responsivas às demandas sociais já foi amplamente identificada em estudos internacionais, sendo, inclusive, recomendada por organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O estado de São Paulo foi vanguardista ao promulgar a Lei Complementar 1.320/2018, de 6/4/2018, que estabelece paradigma positivo e inovador no relacionamento entre fisco e contribuinte, orientado a facilitar, colaborar e promover o adimplemento espontâneo das obrigações tributárias instituindo o programa "Nos Conformes", buscando tornar a administração tributária mais responsiva e sensível.

Embora as previsões da lei paulista não tenham sido inteiramente implementadas, o exemplo foi seguido pelos órgãos da administração tributária federal, a exemplo do Programa de Apoio à Conformidade Tributária (PAC/PJ) que contém orientações preventivas para que os contribuintes se adequem espontaneamente à legislação e com isso seja desnecessário instaurar procedimentos de fiscalização, bem como do "Confia" que tem como objetivo construir um novo modelo de relacionamento do fisco com os maiores contribuintes, com foco na cooperação, adesão voluntária e boa-fé.

Esses exemplos revelam uma crescente superação do legalismo exegético partindo para adoção da noção de que o direito deve ser responsivo às condutas que pretende regular mas esta realidade, contudo, ainda é incipiente em termos absolutos ao considerarmos todo território nacional.

Conforme revelam os recentes dados do Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) que por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), consultou a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), a Receita Federal, 35 procuradorias estaduais e municipais e 35 fiscos subnacionais, apenas 5,76% destes órgãos adotam alguma prática de incentivo à conformidade fiscal dos contribuintes.

III – Finalmente a Lei 13.988/2020 e o início do que se espera ser uma nova era
Responsividade, tradução livre do termo em inglês responsiveness significa sensibilidade para a textura complexa da vida social. Na medida em que o direito deve ser capaz de encontrar respostas regulatórias satisfatórias a novos atores, contextos, demandas e expectativas, parece adequada a escolha legislativa que permite a adequação da legislação tributária para um novo contexto das relações entre Estado e particular inaugurado pela Lei 13.988/2020 que finalmente instituiu a transação tributária no âmbito federal.

A Lei 13.988/2020 instituiu três modalidades de transação: (1) por proposta individual ou por adesão, na cobrança de créditos inscritos na dívida ativa da União, de suas autarquias e fundações públicas, ou na cobrança de créditos que seja competência da Procuradoria-Geral da União; (2) por adesão, nos demais casos de contencioso judicial ou administrativo tributário (teses); e (3) por adesão, no contencioso tributário de pequeno valor.

No caso da adesão, a proposta já está moldada pelo poder público, enquanto na individual caberá ao contribuinte apresentar os seus termos quando sua situação concreta não se ajustar à transação por adesão, podendo o contribuinte negociá-la. Por fim, a transação por adesão também abrange o contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica, assim entendida aquela que ultrapassa os interesses subjetivos da lide.

IV – O ETA 9/22 e a recém publicada Lei 14.375/2022 que ampliou as possibilidades de transação inicialmente previstas
Em 3/5/2022 foi publicado o Edital de Transação Por Adesão (ETA) 9/22, pelo procurador-geral da Fazenda Nacional e pelo Secretário da Receita Federal do Brasil, regulando a transação por adesão no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica referente aos débitos de pessoas naturais ou jurídicas oriundos do aproveitamento fiscal de despesas de amortização de ágio decorrente de aquisição de participações societárias, limitada às operações de incorporação, fusão e cisão ocorridas até 31/12/2017, nos termos do artigo 65 da Lei nº 12.973/14.

E mais recentemente, em 21/6/2022 foi publicada a Lei 14.375/2022 que alterou a Lei 13.988/2020, em diversas de suas disposições, incluindo na proposta individual de transação a possibilidade de transacionar os créditos ainda em discussão perante os órgãos do contencioso administrativo (Delegacias da Receita Federal de Julgamento – DRJ e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – Carf), contribuindo para reduzir o volume atual do contencioso administrativo.

Dentre as demais inovações, vale destacar: (a) concessão de maiores descontos em multas, juros e encargos legais relativos a créditos a serem transacionados que sejam classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, conforme critérios estabelecidos pela autoridade competente; (b) utilização de créditos de prejuízo fiscal do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), até o limite de 70% do saldo remanescente; (c) possibilidade de uso de precatórios ou de direito creditório com sentença de valor transitada em julgado para amortização de dívida tributária principal, multa e juros; e (d) incremento do valor máximo dos descontos a serem concedidos para até 65% do valor total dos créditos objeto de transação.

Após muito se discutir no âmbito de programas de parcelamento anteriores, a nova lei dispõe expressamente que não devem ser tributados pelo IRPJ, CSLL, PIS e Cofins os descontos concedidos no âmbito da transação. Tal disposição, contudo, ficou restrita aos créditos constantes das disposições do Capítulo II da Lei 13.988/2020, o que não impede que se busca a aplicação para os demais créditos transacionados, seja em razão da observância do princípio da isonomia consagrado no seu artigo 1°, § 2º, seja em razão da própria natureza dos descontos e das bases de cálculo dos tributos em questão.

Este, aliás, é o mesmo entendimento aplicável ao artigo 11-A que se buscou introduzir na Lei 13.496/2017, que instituiu o Pert, mas acabou vetado pelo presidente da República, uma vez que as razões de veto não se sustentam pois, no que tange ao PIS e à Cofins não se trata de renúncia de receita, mas simplesmente de base de cálculo das contribuições, visto que o desconto em dívida tributária não tem natureza contraprestacional, como determina a legislação aplicável.

VI – O estado atual das transações e as perspectivas de futuro
Ainda que sejam tímidas ou insuficientes, as transações tributárias recentemente positivadas inauguram uma nova lógica de atuação da administração tributária, pautada no paradigma do apoio e da colaboração, que esperamos que gradativamente substitua o modelo atual excessivamente focado na lavratura de autos de infração, que gera grande insegurança jurídica e induz o contencioso administrativo e judicial.

No último dia 7/7/2022, a Comissão de Direito Tributário do Iasp promoveu evento on line para tratar do assunto e contou com a participação de três procuradores da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. Este encontro registra a mudança da orientação institucional do órgão ocorrida nos últimos anos e seu interesse em atuar em conjunto com a advocacia privada, fomentando meios de solução de conflito para diminuição do contencioso, incentivo ao compliance fiscal e maior efetividade na recuperação de créditos para os cofres públicos [1].

Ainda, aguarda-se as diretrizes infralegais que irão regulamentar diversos institutos previstos da Lei 14.375/2022, a exemplo dos critérios que serão utilizados para aferição do grau de recuperabilidade das dívidas; os parâmetros para concessão de descontos, tais como o insucesso dos meios ordinários e convencionais de cobrança; bem como os parâmetros para aceitação da transação individual e como serão medidos e divulgados os critérios objetivos que incluem temporalidade, a capacidade contributiva do devedor e os custos da cobrança.

A par disso e das dúvidas comuns e inerentes aos novos institutos, finalmente a transação tributária foi instrumentalizada no âmbito federal e, esperamos, sirva de exemplo tanto para adoção de práticas semelhantes pelos demais órgãos da administração tributária em todas as esferas e no território nacional, quanto para o abandono das práticas de concessão reiteradas e indiscriminadas de parcelamentos especiais cujos efeitos nocivos ainda vigoram no ambiente jurídico nacional.

 


[1] Evento gravado no canal do Iasp no YouTube, disponível através do link https://www.youtube.com/watch?v=SO7ARbRU93k.

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