Escritos de Mulher

Criminalização do aborto: não tornem nossas vidas ainda piores

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3 de agosto de 2022, 9h06

A criminalização do aborto é um tema que ainda gera inúmeras controvérsias no Brasil e em muitos outros países. Recentemente, a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou a decisão que ficou conhecida como "Roe contra Wade", que garantia, desde 1973 e em âmbito nacional, o direito ao aborto até a 28ª semana de gestação. A partir de então, devolveu-se aos estados, individualmente, a incumbência de legislar sobre o tema — a propósito, estima-se que metade dos estados norte-americanos, com inclinações conservadoras, passe a proibir o procedimento.

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No Brasil, o artigo 124 do Código Penal criminaliza a mulher que "provoca aborto em si mesma ou consente que outrem lho provoque", enquanto os artigos 125 e 126 criminalizam o terceiro que provoca o aborto, sem e com o consentimento da gestante, respectivamente.

Neste artigo, pretendemos abordar, ainda que sucintamente, os reflexos da criminalização no que diz respeito ao aprofundamento da desigualdade estrutural vivenciada por tantas mulheres brasileiras.

O fato de que a criminalização não diminui o número de abortos é notório. Assim, as funções preventivas da pena, especificamente a prevenção geral positiva — no sentido de, a partir de sua aplicação, evitar o cometimento do tipo penal e proteger o bem jurídico almejado – não são alcançadas.

Mas, além disso, é preciso reconhecer quem são as mulheres criminalizadas pelos delitos em comento e, nesse ponto, reconhecer a seletividade penal do sistema de justiça criminal.

A criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação viola diversos direitos fundamentais das mulheres: o direito à sua autonomia e liberdade enquanto pessoa humana, seus direitos sexuais e reprodutivos, sua integridade física e psíquica e também a igualdade entre os gêneros. Mas, mais do que isso, viola o princípio da igualdade no tocante à não discriminação.

As mulheres criminalizadas são aquelas que acumulam marcadores de vulnerabilidade: são pobres, negras, com baixo grau de escolaridade e sem acesso à recursos suficientes para arcar com os custos de um procedimento que, embora ainda clandestino, seja mais seguro para a interrupção voluntária da gestação.

Estas mulheres, então, acabam recorrendo à métodos não convencionais, caseiros, e colocando, assim, sua saúde e sua vida em risco. Não são raros os episódios que se iniciam com uma tentativa de aborto e terminam em morte. Para estas mulheres, mais do que o controle sobre o próprio corpo, a autonomia de suas vontades e o planejamento familiar, o que está em jogo é o próprio direito de estarem vivas e assim se manterem.

O poder punitivo estatal age neste exato momento: com frequência, estas são as mulheres que dão entrada nas emergências dos hospitais da rede pública de saúde devido às complicações decorrentes do autoaborto e, justamente no local em que deveriam ser acolhidas, são denunciadas pelos profissionais que prestam o atendimento médico.

Um questionamento, então, é sempre suscitado: se a criminalização é inconstitucional em tantos aspectos, por que continua em vigor?

Por uma simples razão: desde a implementação do patriarcado, as legislações penais privilegiam os homens em detrimento das mulheres. Embora tenhamos avançado com o passar do tempo, a criminalização do aborto é apenas mais um exemplo que, até 2005, se somava a outros tantos.

Não se deve esquecer que até 2005 — há meros 17 anos! — o Código Penal trazia previsões que protegiam apenas as "mulheres honestas", aumentavam a pena de crimes praticados contra "mulheres virgens", rotulava como "crimes contra os costumes" os crimes contra a dignidade sexual, extinguia a punibilidade do estuprador que viesse a se casar com a vítima e até mesmo no caso de a vítima se casar com outro homem — pois seu valor enquanto objeto de troca, nesse caso, não teria sido diminuído pelo estupro e, assim, para quê punir o agressor?

Alguns anos se passaram, mas a influência da religião sobre o controle dos corpos femininos permanece. As mulheres que abortam são perseguidas desde a caça às bruxas, que condenou tantas de nós à morte na fogueira em praça pública.

Hoje, a criminalização continua condenando as mulheres em situação de vulnerabilidade ao mesmo triste e trágico fim, com exceção das fogueiras.

Em 2017, o PSOL ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 442, que busca a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação, especificamente até as 12 semanas. Foram realizadas audiências públicas, mas ainda não há previsão para o julgamento da ação.

O Supremo, em duas ocasiões anteriores, se manifestou sobre o tema. Ao julgar a ADPF 54, decidiu pela descriminalização do aborto dos fetos anencéfalos. Já em controle concreto de constitucionalidade, nos autos do Habeas Corpus nº 124.306/RJ, os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Rosa Weber decidiram pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto nos três primeiros meses gestacionais. Contudo, como se sabe, esta decisão produziu efeitos apenas entre as partes envolvidas neste processo.

De todo modo, o posicionamento dos três Ministros nos permite ter algum vislumbre de esperança quanto ao acolhimento da ADPF 442.

Além dos argumentos de ordem jurídica e que demonstram o caráter inconstitucional da previsão, destacamos uma afirmação proferida pelo Min. Barroso, nos autos do HC 124.306/RJ, sobre as mulheres criminalizadas. Afirmou o ministro que a mulher "que se encontre diante desta decisão trágica", afinal, segundo ele, "ninguém em sã consciência suporá que se fala um aborto por prazer ou diletantismo" não precisa que "o Estado torne a sua vida ainda pior, processando-a criminalmente".

Esta frase sintetiza tantas questões importantes e que vêm sendo levantadas há tanto tempo na luta contra o patriarcado, que nos limitaremos a ecoar: "não tornem nossas vidas ainda piores".

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