Opinião

Os reflexos da decisão do STF e da graça presidencial ao mandato de Daniel Silveira

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23 de abril de 2022, 11h01

Nesta semana houve o desfecho no Supremo Tribunal Federal de um caso com alta combustão política: a condenação, nos autos da AP 1.044, do deputado Federal Daniel Silveira a oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, com a respectiva suspensão dos direitos políticos e perda de mandato, por crimes de ameaça ao Estado democrático de Direito e coação no curso do processo[1].Por mais que se questione o viés político da decisão, pois o réu é um símbolo do governo Bolsonaro, não há como negar que o início do processo se deu após denúncia da procuradoria-geral da República, a qual, apesar de estar se demonstrando alinhada ao governo federal, ratificou o teor da denúncia na sessão de julgamento, classificando como "intolerável" e "inconcebível" a postura do parlamentar[2], pelas ameaças proferidas ao STF e a alguns de seus ministros em vídeos postados em suas redes sociais.

Importante a decisão do Supremo para definir limites à imunidade parlamentar e à liberdade de expressão, as quais não podem extrapolar as balizas do Estado democrático de Direito. Os parlamentares, como representantes do Poder Legislativo, devem obediência ao artigo 2º da Constituição Federal que prega a independência e harmonia entre os Poderes.

Mas quais as consequências da condenação criminal ao mandato de Daniel Silveira? A quem cabe decretar a perda de mandato: à Câmara dos Deputados ou ao STF? Muitas dúvidas têm se colocado na imprensa, sobretudo por divergências jurisprudenciais do Supremo.

A questão é controversa pela redação dúbia do artigo 55 da Constituição , o qual prevê as causas de perda de mandato de deputado ou senador, dispondo em seu inciso IV que perderá o mandato o parlamentar que "perder ou tiver suspensos os direitos políticos" e em seu inciso VI "que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado".

Note-se que o caso Daniel Silveira tipifica os incisos IV e VI do artigo 55 da Constituição, ficando a dúvida, contudo, sobre qual órgão cabe decretar a perda de mandato: se o STF ou a Câmara dos Deputados. Isto porque o artigo 55 da Constituição Federal, em seu § 2º, dispõe que "nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa" e, em seu § 3º, "nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso, assegurada ampla defesa".

Nas hipóteses do parágrafo 2º do art. 55 da Constituição Federal depreende-se a necessidade de uma deliberação sobre a perda de mandato pela respectiva Casa de Leis e nas hipóteses do parágrafo 3º a decisão tem caráter meramente declaratório, bastando a leitura pela respectiva Mesa Diretora.

A dubiedade na redação do artigo 55 da Constituição se dá na previsão de perda de mandato pela suspensão de direitos políticos (inciso IV) e pela condenação criminal transitada em julgado (inciso VI), pois, quando o artigo 15 da Constituição trata das hipóteses de suspensão de direitos políticos, prevê, em seu inciso III, a condenação criminal transitada em julgado. Em outras palavras, a hipótese de perda de mandato prevista no artigo 55, VI, da Constituição, está inserida no inciso IV do mesmo artigo, sendo que os parágrafos 2º e 3º deste artigo preveem procedimentos diferentes para a decretação de perda de mandato nas hipóteses dos incisos IV e VI.

Quando da condenação criminal do então deputado federal Paulo Maluf, nos autos da AP 863, com a decretação de perda de mandato decretada pelo Supremo Tribunal Federal, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados se limitou a declarar a perda do mandato, nos termos do parágrafo 3º do artigo 55 da CF[3].

Entretanto, quando da condenação criminal pelo Supremo Tribunal Federal do então Deputado Federal Paulo Feijó, nos autos da AP 694, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados se insurgiu contra a decretação da perda de mandato pela Corte, propondo a ADPF 511 e invocando, neste caso, a aplicação do parágrafo 2º do artigo 55 da CF[4]. Aos 07/04/2022 esta ADPF foi extinta sem resolução de mérito pela perda do objeto, dado o término do mandato de Paulo Feijó, por meio de decisão monocrática do ministro relator Roberto Barroso[5]. Logo após a condenação de Daniel Silveira, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados interpôs Agravo Regimental contra a decisão monocrática proferida nos autos da ADPF 511[6] de modo a forçar a decisão meritória pelo Supremo.

A situação está posta e o STF deverá se debruçar sobre o tema e resolver sua divergência jurisprudencial, pois, apesar de a Corte ter decretado a perda de mandato nas condenações de Maluf e Feijó, decidiu de forma contrária nas AP's 565, 563, 572 e 618, entendendo que a perda de mandato deveria ser deliberada pela Casa de Leis.

Sempre bom lembrar que a Constituição Federal de 1988 foi promulgada após a ditadura militar e se preocupou em reforçar as balizas democráticas, dentre elas o sistema de freios e contrapesos, o qual, para além da mera separação de poderes, prevê meios de controle da atuação de um Poder pelos outros Poderes da República. O sistema de freios e contrapesos serve como um seguro à democracia, pois, se em determinado momento histórico um Poder está ferindo o Estado democrático de Direito, outro Poder poderá efetuar o devido controle.

Neste sentido, importante entender que o legislador constituinte quis proteger a higidez do Parlamento ao prever que a perda do mandato de deputado ou senador condenado criminalmente será deliberada em plenário, de modo a prevenir abusos de eventuais condenações judiciais com viés eminentemente político, situação comum em regimes ditatoriais. Além disso, o sistema de freios e contrapesos serve como uma forma de divisão de funções entre os Poderes da República, evitando que determinada esfera de poder fique demasiadamente concentrada em um dos poderes, o que não é salutar em regimes democráticos.

Portanto, a perda de mandato por condenação criminal transitada em julgado deve se dar à luz do parágrafo 2º do artigo 55 da Constituição Federal, pois, como o legislador constituinte previu um procedimento próprio para este caso, este procedimento deve ser respeitado.

Assim, caberá, no caso de Daniel Silveira, à Câmara de Deputados deliberar sobre sua perda de mandato. A deliberação da Casa deverá se limitar à perda ou não do mandato, e não sobre o mérito da condenação criminal proferida pelo Supremo, a qual deverá ser cumprida inclusive com o encarceramento do réu, gerando efeitos também sobre os direitos políticos do deputado, pois, uma vez condenado criminalmente por órgão colegiado, tipificação artigo 1º, inciso I, alínea "e', item 1, da LC 64/90 (com redação dada pela LC 135/10 — Lei da Ficha Limpa) cumulado com o artigo 344 do Código Penal, já estando pois inelegível "desde a condenação até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena".

O aspecto político do caso Daniel Silveira ganhou contornos mais dramáticos após a decretação de graça ao deputado pelo presidente da República, em decreto publicado em edição extraordinária do Diário Oficial da União de 21/04/22[7]. Este ato presidencial deverá incendiar as discussões sobre o cumprimento da pena de Silveira, mas não terá reflexos sobre a continuidade do andamento do processo no Supremo Tribunal Federal, nem sobre os efeitos secundários da pena como perda de mandato e inelegibilidade, conforme súmula 631 do Superior Tribunal de Justiça[8].

O tema certamente será profundamente debatido nos próximos dias e será mais um teste para nosso jovem regime democrático. Que sirva de instrumento para amadurecimento de nossas instituições.


[8]O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais.” Disponível em https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp. Acesso em 22/04/2022.

Autores

  • é diretor da Faculdade de Direito, professor de Direito Processual Civil e de Direito Constitucional e professor doutor pesquisador da Puc-Campinas.

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