Direitos Fundamentais

COP 1 do Acordo de Escazú e os direitos ambientais de participação

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15 de abril de 2022, 8h00

Entre os dias 20 e 22 de abril de 2022, será realizada na em Santiago, no Chile, a 1ª Conferência das Partes (COP 1) do Acordo Regional de Escazú para América Latina e Caribe sobre Acesso à Informação, Participação Pública na Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria Ambiental (2018). Nesta primeira reunião serão discutidas as regras de procedimento da COP, incluindo as modalidades de participação do público, as disposições financeiras para o funcionamento e implementação do acordo e as regras de composição e funcionamento do Comitê de Apoio à Implementação e ao Cumprimento do Acordo. Também se discutirão estratégias para a sua implementação e maior cooperação na região [1].

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O Acordo foi adotado na cidade de Escazú, na Costa Rica, em 4 de março de 2018, e aberto para assinatura dos Estados-membros em 27 de setembro daquele mesmo ano, contando, atualmente, com 24 assinaturas (inclusive do Brasil) e 12 ratificações. As duas últimas ratificações, da Argentina e do México, foram formalizadas no mês de janeiro de 2021, o que possibilitou a sua entrada em vigor em 22/4/2021 [2]. O Acordo de Escazú, por sua vez, é o único acordo internacional com natureza jurídica vinculante emanado da Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), o primeiro acordo ambiental regional na América Latina e no Caribe, bem como o primeiro no mundo a conter disposições específicas sobre defensores dos direitos humanos em questões ambientais.

A celebração do Acordo de Escazú, cujo esboço foi elaborado no âmbito da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) da ONU, representa um passo histórico para o fortalecimento de marco jurídico ecológico democrático-participativo no contexto latino-americano, seguindo as diretrizes do célebre Princípio 10 da Declaração do Rio (1992) e da Convenção de Aarhus (1998), esta última celebrada no âmbito europeu. A consagração dos denominados "direitos ambientais de participação" [3] (acesso à informação, participação pública na tomada de decisão e acesso à justiça) levada a efeito pelo Acordo de Escazú representa a consolidação de uma democracia participativa e cidadania ecológica, em plena sintonia com o conteúdo dos artigos 1º, caput, II e § único, e 225 da CF/1988, assegurando, assim, mecanismos de efetivação da legislação ambiental e maior controle social sobre práticas públicas e privadas predatórias da natureza.

A respeito da proteção defensores dos direitos humanos em questões ambientais, cumpre enfatizar que o Brasil registra um dos maiores índices de assassinatos de lideranças ecológicas. Exemplos emblemáticos, diretamente relacionados a tal contexto e que são páginas tristes da história do movimento ambientalista brasileiro, são os brutais assassinatos de Chico Mendes, da irmã Dorothy Stang e, mais recentemente, do líder indígena (e "guardião da floresta") Paulo Paulino Guajajara. Todos os casos, aliás, relacionados à proteção da Floresta Amazônica e dos povos da floresta (indígenas, quilombolas, seringueiros etc.). Segundo dados do relatório divulgado em 2018 pela entidade Global Witness, sob o título "A que preço?", quatro defensores do meio ambiente, em média, são mortos por semana no mundo, com muitos outros sendo perseguidos, intimidados e forçados a sair de suas terras etc [4].

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A violência contra povos indígenas e tradicionais, notadamente na região amazônica, cresceu vertiginosamente nos últimos anos, o que está diretamente associado ao aumento do desmatamento verificado nos últimos três anos, conforme dados oficiais do Inpe [5]. A ausência de um ambiente seguro para indivíduos e entidades ambientalistas promoverem a defesa ecológica e exercerem os direitos de participação correlatos implica a sua negação, fragilizando um dos pilares mais importantes para a efetivação da legislação ambiental, ou seja, a participação da sociedade, em desacordo com a norma constitucional (artigo 225 da CF/1988).

Não obstante o Brasil possuir legislação nacional contemplando os direitos ambientais de participação ex.: Lei da PNMA (Lei 6.938/81), Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), CF/1988 (artigo 225), ação popular ambiental (artigo 5º, LXXIII, da CF/1988), Lei do Acesso à Informação Ambiental (Lei 10.650/2003), Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), Lei da Política Nacional de Educação Ambiental (Lei 9.795/99), participação social nos Comitês de Bacia Hidrográfica (Lei 9.433/97, artigos 1º, VI, e 39, IV e V, e § 3º, II), amicus curiae (artigo 138 do CPC/2015), audiências públicas administrativas (ex. licenciamento ambiental) e judiciais (ex. realizadas desde 2007 pelo STF), entre outros, o Acordo de Escazú consagra inúmeros princípios, objetivos e instrumentos alguns inéditos, como os deveres estatais de proteção dos defensores ambientais aptos a contribuir para o fortalecimento do seu regime jurídico no contexto nacional. Igualmente, a consagração expressa dos princípios da proibição de retrocesso e da progressividade e da equidade intergeracional (artigo 3, c e d) em matéria ambiental ilustra a atualidade e importância do diploma, inclusive na linha da jurisprudência recente do STF [6]. Igualmente, embora não explícito no acordo, o princípio in dubio pro natura pode ser inferido da interpretação do artigo 4, 7, e é amplamente aplicado no Brasil [7] e em vários países da América Latina [8].

Infelizmente, os direitos de participação – não somente na seara ambiental – estão sob forte ataque no Brasil nos últimos anos, como pode ser demonstrado pelas inúmeras ações sobre o tema em trâmite no STF, o que demonstra a importância da ratificação do Acordo de Escazú pelo Estado brasileiro. A fragilização da participação democrática revela-se, conforme assinalado pelo ministro Luis Roberto Barroso no julgamento da ADPF 622, como faceta do denominado "constitucionalismo abusivo", ou seja, "prática que promove a interpretação ou a alteração do ordenamento jurídico, de forma a concentrar poderes no Chefe do Executivo e a desabilitar agentes que exercem controle sobre a sua atuação", o que está diretamente associado ao "retrocesso democrático e à violação a direitos fundamentais" [9].

Na temática ecológica, a ADPF 623, que tem como objeto a redução da participação da sociedade na composição do Conama levada a efeito pelo Decreto 9.806/2019, talvez seja o exemplo mais expressivo desse cenário de retrocesso legislativo, administrativo e institucional dos direitos ambientais de participação em curso no Brasil. Não por outra razão, ainda que o Acordo de Escazú careça de ratificação pelo Brasil para a sua devida incorporação ao ordenamento jurídico nacional, o diploma foi citado no voto-relator da ministra Rosa Weber ao reconhecer, em decisão monocrática no julgamento da medida cautelar da ADP 623, a inconstitucionalidade da redução da participação social no Conama e suspender a eficácia do Decreto nº 9.806/2019 [10].

Como assinalado pela ministra, "ao conferir à coletividade o direito-dever de tutelar e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225), a Constituição Federal está a exigir a participação popular na administração desse bem de uso comum e de interesse de toda a sociedade. E assim o faz tomando em conta duas razões normativas: a dimensão objetiva do direito fundamental ao meio ambiente e o projeto constitucional de democracia participativa na governança ambiental". Ademais, segundo a ministra, "a moldura normativa a ser respeitada na organização procedimental dos Conselhos é antes uma garantia de contenção do poder do Estado frente à participação popular, missão civilizatória que o constitucionalismo se propõe a cumprir". A mesma discussão está lançada no julgamento iniciado na semana passada da ADPF 651 pelo STF, já contando com voto-relator favorável da ministra Carmen Lúcia e dois votos declarados no mesmo sentido pelos ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski , ao reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 5º do Decreto 10.224/2020 que tratou de excluir a participação da sociedade civil no Conselho Deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente.

Além da redução e exclusão (ou "cupinização", expressão utilizada pela ministra Carmen Lúcia na ADPF 760) da participação da sociedade em órgãos colegiados na estrutura administrativa-ambiental, como demonstrado nos exemplos referidos, outro tema sensível relacionado aos direitos ambientais de participação diz respeito ao acesso à informação ambiental. Como assinalado por diversas entidades ambientalistas inclusive âmbito na já citada ADPF 760 [11] , de modo a demonstrar a importância da ratificação do Acordo de Escazú pelo Brasil, há flagrante omissão e deficiência de natureza estrutural e sistêmica no acesso à informação ambiental prestada pelos aos órgãos que integram o Sisnama, tanto pela ótica dos deveres estatais de transparência "ativa" (ao promover a divulgação de informações ambientais relevantes) quanto "passiva" (ao atender os pedidos de acesso à informação por parte dos cidadãos e entidades) [12].

O Acordo de Escazú opera, igualmente, no fortalecimento do marco normativo ecológico no contexto regional interamericano, inclusive em vista de um diálogo multinível cada vez mais consolidado entre diferentes sistemas jurídicos (internacionais, regionais, nacionais e subnacionais) e do reconhecimento da pluralidade de fontes normativas (e de um "diálogo de Cortes de Justiça"). A OC 23/2017 sobre "Meio Ambiente e Direitos Humanos", ao promover uma "guinada ecológica" na jurisprudência da Corte IDH [13], além de atribuir a natureza de direito humano autônomo ao direito ao meio ambiente (consagrado expressamente no art. 11 do Protocolo de San Salvador de 1988) e passível de ser reivindicado diretamente por meio do artigo 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), tratou de assinalar os deveres dos Estados-Membros para com os direitos ambientais de participação, reconhecendo-os, assim, como expressão normativa emanada diretamente do próprio direito humano ao meio ambiente.

Na linha da jurisprudência da Corte IDH, há verdadeiro dever ex officio a cargo de Juízes e Tribunais [14] de exercerem o que se tem denominado de "governança judicial ecológica" e salvaguardarem o exercício dos direitos ambientais de participação, inclusive no sentido de promoverem tanto o controle de constitucionalidade quanto de convencionalidade da legislação nacional. Os tratados internacionais (e a jurisprudência da Corte IDH) em matéria ambiental devem ser tomados como parâmetro hermenêutico e normativo no exercício do controle de convencionalidade, haja vista o reconhecimento da sua hierarquia e status normativo supralegal, da mesma forma como verificado com os tratados internacionais de direitos humanos, o que, aliás, já resultou expressamente consagrado pelo STF [15].

O dia 22/04, último dia da COP 1, coincide com o dia em que é celebrado o Dia da Terra (há mais de meio século, desde 1970). Igualmente, é o dia em que entrou em vigor o Acordo de Escazú, no ano passado (2021). O ano de 2022, por sua vez, marca a comemoração dos 50 anos da Conferência e Declaração de Estocolmo (1972) e, assim, o surgimento do Direito Internacional Ambiental. O Acordo de Escazú tem apoio expresso do Banco Mundial, BCIE, BEI, BID e OCDE, que o consideram como promotor de investimentos sustentados e sustentáveis, o que deveria receber a atenção do Brasil que submeteu seu pedido de adesão à Organização [16]. A COP 1 do Acordo de Escazú, não obstante a injustificada inércia do Brasil na sua ratificação, soma-se como mais um capítulo fundante na história do "Direito Ambiental (Interamericano)", fortalecendo as bases e instrumentos democrático-participativas que sempre o inspiraram e que são elementares à proteção efetiva da Natureza no Antropoceno.

[3] Os direitos de participação são também denominados de "direitos de acesso" ou "direitos procedimentais". Na doutrina, v. SARLET, Ingo W.; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito ambiental. 3ª ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2022, p. 262 e ss.

[5] http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/alerts/legal/amazon/aggregated/.

[6] O voto-relator da Ministra Carmen Lúcia na ADPF 760 (Caso PPCDAm), no início do julgamento da "pauta verde" pelo STF na semana retrasada, enfatizou tanto a aplicação do princípio da proibição de retrocesso como do princípio da progressividade na matéria ambiental.

[7] STJ: REsp 1.198.727/MG, 2ª T., rel. min. Herman Benjamin, j. 14.08.2012.

[8] CAPPELLI, Sílvia. In dubio pro natura. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, n.98, abr./jun. 2020.

[9] No julgamento da ADPF 622, sobre a redução da participação social no Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (CONANDA), o STF fixou a seguinte tese: "É inconstitucional norma que, a pretexto de regulamentar, dificulta a participação da sociedade civil em conselhos deliberativos." (STF, ADPF 622/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 26/2/2021).

[10] STF, MC na ADPF 623/DF, rel. min. Rosa Weber, decisão monocrática, j. 17/12/2021.

[11] O relatório do Instituto Socioambiental (ISA), juntado aos autos da ADPF 760, apontou, por exemplo, a deficiência dos dados e incompletude do tratamento da informação ambiental prestada pelo Governo Federal sobre o PPCDAm.

[12] A respeito do tema, destaca-se o “Ranking da Transparência Ambiental” elaborado pelo MPF (https://transparenciaambiental.mpf.mp.br/).

[13] http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf. O novo paradigma jurisprudencial ecológico da Corte IDH foi consagrado, na sua jurisdição contenciosa, no julgamento do Caso Comunidades Indígenas Miembros de La Associación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina (2020). Na mesma trilha, em 2021, o Conselho de Direitos Humanos da ONU reconheceu o direito ao meio ambiente como “direito humano” (Resolução A/HRC/48/L.23/Rev.1), inclusive criando Relatoria Especial sobre Direitos Humanos e Mudanças Climáticas.

[14] O tema do controle de convencionalidade (e o dever dos Juízes e Tribunais nacionais de exercê-lo) resultou consagrado pela Corte IDH no Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile (2006).

[15] STF, ADI 4.066/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, j. 24.08.2017. O CNJ, no mesmo sentido, adotou a Recomendação CNJ n. 123/2022, apontando a necessidade de os órgãos do Poder Judiciário observarem os tratados e convenções internacionais de direitos humanos, bem como a jurisprudência da Corte IDH, inclusive no sentido de exercerem o controle de convencionalidade.

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