Prática trabalhista

A possibilidade de cessão de créditos trabalhistas na Justiça do Trabalho

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

2 de setembro de 2021, 11h20

O Tribunal Superior do Trabalho (TST) recentemente foi provocado a emitir um juízo de valor quanto à possibilidade da realização da cessão de créditos trabalhistas [1]. Na decisão, o ministro relator, Douglas Alencar Rodrigues, inobstante tenha se posicionado pela validação da cessão de créditos trabalhistas a terceiros, não adentrou a temática do caso em debate, por questões processuais.

É certo que a cessão de crédito trabalhista é um assunto antigo e polêmico na Justiça do Trabalho, pois, conquanto o instituto seja previsto no ordenamento jurídico, sua aplicação na esfera trabalhista ainda não é pacífica, ensejando dúvidas na doutrina e na jurisprudência.

Com efeito, o artigo 286 do Código Civil dispõe que "o credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação".

Frise-se, por oportuno, que para a cessão de crédito ter eficácia em relação a terceiros deve haver a sua formalização por instrumento público, ou instrumento particular, observadas as exigências legais do Código Civil [2].

Para aqueles que são favoráveis à cessão de crédito trabalhista, o embasamento legal se encontra no próprio Código Civil, desde que sejam respeitadas as premissas gerais de validade do referido negócio jurídico.

Em sentido contrário, para parcela da doutrina e da jurisprudência, não é concebível a cessão de crédito decorrente das verbas trabalhistas, com fundamento na Convenção 95 da Organização Internacional do Trabalho [3].

Lado outro, o artigo 100 da consolidação dos provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho [4], de 28 de outubro de 2008, que se encontra, sem revogação expressa, preceitua que "a cessão de crédito prevista no artigo 286 do Código Civil não se aplica na Justiça do Trabalho".

Insta salientar que a consolidação dos provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho, de 19 de dezembro de 2019 [5], também vigente, não trouxe nenhum prognóstico trazendo limitações à cessão de crédito, e, por conseguinte, a impraticabilidade do artigo 286 do Código Civil.

Aliás, outra questão que suscita a polêmica é a possibilidade de a cessão de crédito transformar, não só a Justiça do Trabalho, mas como o direito do trabalhador em uma modalidade de comercialização.

Ressalte-se que na própria matéria veiculada pela impressa, e que causou grande repercussão nacional, consta a informação de que "a crise e a demora da Justiça para a resolução de um processo  são seis anos, em média, para o encerramento  aqueceram esse mercado" [6].

Nesse panorama, as plataformas digitais operadas através de empresas de soluções financeiras, totalmente digitais (fintechs), passaram a intermediar a compra e venda de créditos, e que teve um aumento nos últimos tempos em decorrência da crise econômica [7].

Para alguns especialistas, tal fato poderia contribuir para o aumento das demandas judiciais, uma vez que não seria preciso aguardar até o resultado da demanda para o recebimento do crédito [8].

Contudo, segundo Antônio José de Barros Levenhagen e Marília Nascimento Minicucci [9], "apesar de ainda haver divergência jurisprudencial e doutrinária sobre o tema, a análise sobre o instituto da cessão de crédito, hoje, no ordenamento pátrio, não encontra nenhum óbice à sua aplicação plena ao Processo do Trabalho. A regulamentação do instituto para que passasse a ser adotado de forma clara e indubitável aos créditos trabalhistas viria como uma forma de modernizar e dar celeridade e fluidez às execuções trabalhistas, que, segundo levantamento do ano de 2019 (TST, 2000, p. 97), duram, em média, quatro anos, dois meses e 23 dias para seu encerramento".

Ora, se é verdade que, numa primeira análise, os direitos trabalhistas são irrenunciáveis e indisponíveis, de igual relevância pode-se dizer que não haveria óbice para que os créditos devidamente constituídos em juízo sejam transacionados, haja vista sua materialização financeira, desde que essa cessão seja de boa-fé, e mais, que sejam respeitadas as diretrizes do negócio jurídico.

Dito isso, impende destacar que, em importante precedente, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região manteve a decisão de primeiro grau que considerou ineficaz um contrato de cessão de crédito realizado entre um escritório de advocacia e a sua cliente [10]. Na ocasião, os desembargadores consideraram dolosa a conduta praticada pelos advogados, que omitiram informações relevantes para que a trabalhadora pudesse, efetivamente, decidir por vender ou não os seus créditos. Atualmente, o processo permanece pendente de julgamento pelo Tribunal Superior do Trabalho [11].

De mais a mais, o fato de o processo trabalhista possuir diversas fases processuais, faz com que a cessão de créditos seja uma temática sensível.

Entrementes, a Suprema Corte, em sede de RE 631537 [12], de relatoria do ministro Marco Aurélio, fixou a tese no sentido de que "a cessão de crédito alimentício não implica a alteração da natureza", ou seja, não há a perda da qualidade da natureza alimentar referente, no caso julgado, ao precatório expedido e já sujeito ao pagamento.

Em arremate, em que pese a cessão de crédito possuir previsão no Código Civil, aplicável ao processo do Trabalho por força do artigo 8º, §1º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) [13], para que seja possível garantir a segurança jurídica de tal transação é imprescindível a criação de soluções jurídicas disciplinado esse procedimento, principalmente para se evitar quaisquer tipos de lesões aos direitos dos trabalhadores.


[1] Processo AIRR 820-23.2015.5.06.0221, número no TRT de Origem: AP-820/2015-0221-06, Órgão Judicante: 5ª Turma, relator: ministro Douglas Alencar Rodrigues. Disponível em file:///C:/Users/leand/Downloads/ED-ED-AIRR-820-23_2015_5_06_0221.pdf . Acesso em 31.08.2021.

[2] "Artigo 288 – É ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não celebrar-se mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do § 1o do artigo 654".

[3] "Artigo 10 — 1. O salário não poderá ser objeto de penhora ou cessão, a não ser segundo as modalidades e nos limites prescritos pela legislação nacional.
2. O salário deve ser protegido contra a penhora ou a cessão, na medida julgada necessária para assegurar a manutenção do trabalhador e de sua família". Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235184/lang–pt/index.htm . Acesso 31.08.2021.

[5] Disponível em https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/166690 . Acesso em 31.08.2021.

[10] Processo AP 0000172-43.2013.5.03.0012, relator Fernando Luiz Gonçalves Rios Neto, Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região, 7ª Turma.

[13] "Artigo 8º – As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. § 1º O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho".

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador Acadêmico do projeto “Prática Trabalhista” (Revista Consultor Jurídico - ConJur), palestrante e instrutor de eventos corporativos pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe, e membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP).

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD), pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô, membro da Comissão Especial de Direito do Trabalho da OAB-SP e pesquisador do Núcleo "Trabalho Além do Direito do Trabalho" da Universidade de São Paulo – NTADT/USP.

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