Garantias do Consumo

O home equity e a bolha imobiliária à brasileira

Autores

  • é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

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  • é professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ professor permanente do programa de doutorado em Direito Instituições e Negócios da UFF pós-doutor em Direito da USP doutor e mestre em Direito Civil pela Uerj procurador de Justiça no MP-RJ segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

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  • é professora e diretora da Faculdade de Direito da UFRGS doutora pela Universidade de Heidelberg mestre em Direito pela Universidade de Tübingen (Alemanha) advogada relatora-geral da Comissão de Juristas e ex-presidente do Brasilcon.

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13 de outubro de 2021, 8h00

Não há tempo de festejar a Lei 14.181/2021, que atualiza o Código de Defesa do Consumidor para prevenir o superendividamento, pois o governo federal está em vias de publicar medidas provisórias que modificarão estrutural e funcionalmente a disciplina das garantias reais e no Brasil passaremos de um país de superendividados (expressão do
ministro Antônio Herman Benjamin) a um país de "expropriados"! Duas eventuais propostas altamente destruidoras serão introduzidas no mundo jurídico: a primeira tem por escopo criar um novo "título de propriedade imobiliária" (TPI), nova figura abstrata e fragmentada, que assegurará negociações mais rápidas com a interessante qualidade de representação cartular do imóvel de propriedade do devedor (pessoa natural ou consumidor); e a segunda, que objetiva fundar as Instituições Gestoras de Garantias (IGG), novo sistema registral privado e sem o controle da magistratura.

Na base, as propostas partem do Ministério da Economia, com aval em discussões realizadas pelo Banco Central e demais integrantes da Iniciativa de Mercado de Capitais. Há a expectativa do mercado de que o "home equity" (empréstimo de pessoa natural garantido pelo imóvel residencial, mesmo que bem de família) [1] aumentará a segurança jurídica das instituições financeiras para o fornecimento de créditos aos consumidores, o que possibilitará, via de consequência, a sempre sonhada redução de juros no setor financeiro e imobiliário.

Do ponto de vista dos estudiosos do direito do consumidor há séria preocupação com a inserção de referidas medidas provisórias que podem ser nocivas aos núcleos familiares e aos devedores pessoas naturais, especialmente no agravamento às situações de superendividamento, recém-reequilibradas pela Lei 14.181/2021.

É extremamente inquietante verificar a "facilidade" com que o domínio econômico trata os institutos jurídicos seculares, adornando-os aos seus objetivos e descurando-se da ciência jurídica que, por si só, é "sistema de limites" [2] aos eventuais abusos próprios dos grandes poderes, entre eles o Estado e o mercado.  O "título de propriedade imobiliária" (TIP), caso seja adotado em medida provisória, estrangulará o conceito e os elementos da propriedade há tempos consolidados na legalidade constitucional e no Código Civil (artigos 1.228 e seguintes), e, especialmente, obstará a requalificação humanitária introduzida pela Lei 14.181/21 no que respeita a promoção ao mínimo existencial na concessão do crédito (artigo 6, XII, do CDC).

Na hipótese, o TIP concretamente caracterizará a propriedade imobiliária, tornando-se título totalmente negociável no mercado, diminuindo a proteção do devedor-proprietário, sem que haja maiores e necessários cuidados com inúmeros direitos fundamentais inerentes, especialmente: moradia, habitação, meio ambiente e o próprio direito fundamental à propriedade e sua função social.

A leitura do texto em proposição do TPI permite verificar o óbvio sentido de "‘transferência de riscos" dos agentes de créditos aos devedores-consumidores, retirando alicerces legais construídos secularmente pelo sistema jurídico na proteção do proprietário e da propriedade, já que nada propõe em matéria de direitos relativos à excussão judicial, bem como devido processo legal. Aliás, o conteúdo do texto a ser guindado como Medida Provisória é claramente contrário ao parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil que reconhece a matéria como de ordem pública, considerando a função social da propriedade, o que também está sedimentando no artigo 5º, inciso XXIII da Constituição Federal.

Igualmente do texto em proposição transparece claramente a possibilidade do TPI ser negociado e controlado por quem tem mais de 50% da titularidade da moradia do consumidor (agora fragmentada entre vários credores!), inclusive grupos de detentores, que poderão decidir pela venda do bem, independentemente da vontade, aquiescência, defesa ou anuência do proprietário, o consumidor superendividado. A própria exclusividade, característica marcante do direito de propriedade, desde as codificações do século 19, é retirada do berço a fórceps, como se já não bastasse a ficção de propriedade decorrente da alienação fiduciária em garantia sobre bens imóveis. Enfim, a eventual MP faz ouvidos moucos à sólida construção pretoriana de bens de família, mínimo existencial [3], patrimônio mínimo, indisponibilidade das titularidades de bens essenciais [4].

Igualmente vocacionado à medida provisória, o texto quanto à formulação das Instituições Gestoras de Garantias é de causar espécie. O nó central é permitir serviços de gestão especializadas em gravames diretamente à iniciativa privada, com o objetivo atuarem na facilitação de constituição ou "compartilhamento" (ou fragmentação) de garantias, quando será longa manus das instituições financeiras.

Vê-se sistema paralelo ao serviço já reconhecido e realizado pelos Cartórios de Registro de Imóveis e Caixa Econômica Federal, afastando por completo o Estado no dever de proteção dos devedores. Economicamente, sobre o imóvel haverá a obtusa oportunidade de mais de um gravame como garantia de empréstimos, o que degringola completamente – e repete o erro da crise financeira de 2008 nos EUA  [5] – a noção da propriedade já construída e consolidada no direito interno como "paradigma da essencialidade" [6] ou também no direito comparado pela aproximação aos "bens fundamentais" [7].

Como se sabe, é prudente proceder a aplicação das regras dos direitos reais de garantia à luz da propriedade como direito fundamental e respectiva função social (CF, artigo 5º, caput e incisos XXII e XXIII). Trata-se da coordenação entre a segurança da "propriedade-garantia" e a fundamentabilidade da "propriedade-acesso".

Pois bem. Por isso, é dever situá-la tanto entre os direitos individuais do proprietário (próprio) como nos interesses coletivos da comunidade (comum). E dessa forma se a propriedade (enquanto direito real) tem aproveitamento econômico, igualmente (enquanto espaço para o livre desenvolvimento da pessoa humana) tem aproveitamento na proteção do mínimo existencial pela Lei 14.181/21, tal qual a orientação francesa "restre à vivre", que agora se soma à indisponibilidade do bem de família [8].

Ademais pela teoria geral do direito (especialmente do direito privado) essa matéria deve estar atrelada a densos princípios — como: função social (da propriedade, da posse e da cidade); boa-fé (mais especificamente a vedação de exercício inadmissível de posição jurídica); defesa do consumidor (ordem econômica inclusiva e direito fundamental, CF, artigo 5º, inciso XXXII); defesa do meio ambiente (função socioambiental intergeracional, poluidor-pagador, prevenção e precaução); produtividade (natureza agrária) — que informam, preenchem lacunas e têm ampla força deontológica no auxílio e aplicação dos direitos reais de garantia.

Os textos das duas medidas provisórias traduzem justamente os danos ocorridos na crise estadunidense de 2008 (a famosa bolha imobiliária), quando o instituto do "home equity" foi utilizado sem margem de proteção dos consumidores, aliás, ao contrário, com riscos transferidos. Isso se deu com enorme irresponsabilidade, porquanto se as normas protetivas eram aplicadas para as demais espécies de garantias (Equity Protection Act — hoepa rules), no "home equity" nenhuma proteção era possível [9].

Num ponto como tal e se prudentemente lembrarmos que no Brasil já existem, segundo a Confederação Nacional do Comércio, setenta milhões de famílias endividadas e outras trinta e cinco milhões de famílias superendividadas, logo teremos centenas de milhões de "famílias expropriadas". Estamos a um passo de milhões de pessoas expostas à situação de rua, somente para atender a um insaciável anseio do mercado, inadmissível num país de vulneráveis.   

O legislador brasileiro está vinculado aos deveres de proteção dos direitos fundamentais, o que é a hipótese do direito do consumidor (CF, artigo 5º, inciso XXXII), cabendo nestas proposições aqui analisadas retirar dos textos expressamente "as relações de consumo" e os "consumidores". Essas duas medidas provisórias não deveriam
acontecer. Não se trata de tema passível de medida provisória, pois face aos direitos fundamentais envolvidos, devem sim ser objeto de projeto de lei!

[1] Modalidade prevista na Circular da Diretoria Colegiada do Banco Central do Brasil n. 3.747, de 27.02.2015 – D.O.U.: 03.03.2015.

[2] Ruggiero, Roberto de. Instituições de direito civil. v. 1. São Paulo: Livraria Acadêmica. Saraiva, 1934, p. 24. Na famosa passagem com apoio em Kant e Krause, quando conceitua o Direito: “Kant, pelo contrário, parte do princípio da liberdade e do princípio da condicionalidade, definindo-o como ‘o conjunto de condições mercê das quais o arbítrio de cada um pode ser compatível com o arbítrio dos outros, segundo uma lei universal de liberdade’; e Krause, acentuando ainda mais a idea de condicionalidade, define-o como ‘a totalidade das condições dependentes da liberdade para realização dos próprios fins’. Donde se conclui que o direito é um sistema de limites”.

[3] MARQUES, Claudia Lima. A noção de mínimo existencial na Lei 14.181,2021 e sua aplicação imediata: primeiras reflexões, in RDC, vol. 137/2021, p. 387 – 405, Set – Out/2021.

[4] Veja sobre estes temas a obra de FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

[5] Sobre o tema veja que foi uma legislação descontrutora semelhante nos EUA que levou em massa aos consumidores perderem suas casas e criou a crise financeira que acabou mundial, NEFH, James. Preventing another financial crisis: The critical role of Consumer Protection Laws. RDC. v. 89. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 29-39.

[6] NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato. Novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 379..

[7] FERRAJOLI, Luigi. Por uma carta dos bens fundamentais. In: Periodicos UFSC. br/index.php/sequencia/article/view/2177-7055.201, acesso em 11-10-21.

[8] MARQUES, Claudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito de consumo: proposições com base em pesquisa empírica de
100 casos no Rio Grande do Sul. RDC. v. 55. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 11-52. Antes da Lei 14.181/21 tínhamos apenas a seguinte abordagem: “O mínimo existencial deve ser preservado na França (restre à vivre da alínea 2 de l'article L.331-2 du Code de la Consommation), no Brasil, conhecemos apenas o bem de família).

[9] NEHF, James P. Preventing another financial crisis: the critical role of consumer protection laws. In: RDC. v. 89. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 29-40. Da tradução livre: “Como exemplos de
leis de proteção ao consumidor antes da crise, em nível federal, a Lei de Propriedade de Casa e Proteção Patrimonial (Hoepa) dá aos consumidores em muitas transações de hipotecas o direito de cancelar
pagamentos proibidos, exige que os credores considerem a capacidade de reembolso do devedor, e proibiu a amortização negativa (com perda de patrimônio) e penalidades de pré-pagamento. No entanto,
Hoepa não era aplicável a uma hipoteca de dinheiro de compra inicial (apenas refinanciamentos de hipotecas existentes), e não era aplicável a linhas de crédito abertas (linhas tradicionais de home equity)”.

Autores

  • é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon (2021-2023).

  • é promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte da Capital – Rio de Janeiro, professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito – Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor permanente do Programa de Doutorado em Direito, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense, doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ, segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

  • é diretora da Faculdade de Direito e professora titular do da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), mestre em Direito (L.L.M.) pela Universidade de Tübingen (Alemanha). Presidente da IACL (International Association of Consumer Law e do ILA (Committee on International Protection of Consumers), Londres. Professora permanente do PPGD UFRGS e da Uninove. Pesquisadora 1 A do CNPq e membro do CA Direito. Advogada.

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