Opinião

A ADPF 279 e os limites do improviso

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9 de novembro de 2021, 16h05

O resultado do julgamento da ADPF nº 279, ocorrido no último dia 3, gerou inquietação em parte da comunidade jurídica dedicada ao estudo das políticas públicas de acesso à justiça. Em resumo, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a criação, por lei municipal, de serviço de assistência judiciária pelo município de Diadema (SP).

Os fundamentos da decisão são bastante questionáveis e por muitas razões, com destaque para as apresentadas no voto do ministro Nunes Marques — que vão desde a competência constitucional para organizar serviços de assistência jurídica a questões factuais ou pragmáticas de destacada relevância, como eventual uso político-eleitoral do serviço. Contudo, apesar de reconhecermos o forte golpe simbólico imposto à Defensoria Pública e seu status constitucional, entendemos que o acórdão, ainda não publicado, deve ser avaliado com temperança, até mesmo para que se evitem prejuízos ainda maiores.

Posto isso, cabe-nos destacar que a Defensoria Pública representa o primeiro esforço organizado do Estado brasileiro no sentido de assegurar, de forma permanente, institucionalizada e, portanto, não clientelista ou como mera política de governo, o acesso à Justiça à população vulnerável. E não há dúvidas de que a decisão da Suprema Corte contraria esse esforço constitucionalmente organizado, ao ponto de, em certa medida, legitimar soluções precárias, incompatíveis com a noção de verdadeira política pública que sustenta a ideia de Defensoria Pública, modelo privilegiado inclusive em recomendações de órgãos internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos [1].

Nesses termos, nota-se que a Corte Constitucional deixa de prestigiar um modelo de raízes nacionais e aplicado ou ao menos estudado em boa parte da América Latina e mesmo em nossas metrópoles habituais, Estados Unidos ou Europa, em detrimento de soluções casuísticas, improvisadas e que favorecem o uso político da assistência jurídica  ainda que evidentemente não seja esse o telos da decisão.

Bem dimensionada a gravidade simbólica da decisão, devemos, agora, bem compreender o que por ela se define, até mesmo para evitar prejuízos maiores que possam ser impostos em razão de sua não compreensão. Cumpre-nos convocar a razão a fim de evitar que os argumentos utilizados retoricamente para ilustrar o descabimento da tese que restou acolhida nos convençam de algo que, efetivamente, não foi dito.

Vale dizer: o deliberado sinaliza pouco mais do que a constitucionalidade de lei municipal do município de Diadema que, antes da Constituição Federal, organizou sistemática de assistência judiciária. Logo, tem-se a admissão da legitimidade de um serviço: 1) que antecede a Constituição; 2) restrito ao atendimento de cunho judicial; 3) implementado em um contexto histórico mesmo de inexistência ou, atualmente, de insuficiência da Defensoria Pública. Nada na decisão autoriza que se conclua pela equivalência do serviço de assistência judiciária de Diadema aos objetivos e funções previstos pela Constituição na instituição da Defensoria Pública, também nada havendo que conceda a eventuais prestadores de assistência judiciária vinculados ao município paulista as prerrogativas constitucionais asseguradas à instituição e seus membros.

A ilustrar o abismo que ainda separa a Defensoria Pública da prestação de serviços autorizada na decisão, basta uma visita ao site da referida Assistência de Diadema, do qual se extrai que, em 2019 [2]  último quantitativo publicizado , foram realizados  durante todo aquele ano  600 atendimentos. Isso talvez não seja superior a um dia ordinário de atendimento na Unidade Central de Atendimento e Ajuizamento da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Não confundamos, pois, alhos com bugalhos. Escalas, formatos e finalidades são absolutamente distintos.

Enfim, ainda que a decisão avaliada seja um indesejável passo a mais no sentido do desmonte do Estado brasileiro, da substituição da lógica de políticas públicas pelas soluções precárias, mostra-se conveniente que a leitura  dos votos e do momento histórico  seja feita com a devida parcimônia, inclusive para se evitar que aquilo que não foi dito seja tomado  e naturalizado  como se o tivesse sido, com o que terminaríamos por contribuir para o já grave quadro de falência do estado de bem-estar social preconizado pela Constituição. O precedente recomenda vigilância, mas não é catastrófico.

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