Opinião

Os paradoxos dos paradoxos processuais?

Autores

  • Diogo Bacha e Silva

    é doutor em Direito pela UFRJ mestre em Direito pela FDSM (com estágio de pós-doutorado em Direito na UFMG) e membro do OJB/FND e da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano.

  • Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

    é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG mestre e doutor em Direito (UFMG) com estágio pós-doutoral com bolsa da Capes na Università degli Studi di Roma III e bolsista de produtividade do CNPq (1D).

1 de março de 2021, 11h23

As caras e caros professores Aury Lopes Jr, Janaína Matida, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Marcella Mascarenhas Nardelli e Alexandre Morais da Rosa publicam, aqui mesmo no Conjur, artigo em que passam a analisar a prisão do Daniel Silveira anunciando aqueles que seriam seus paradoxos processuais.1

O objetivo dos autores, assim, é apontar as incongruências processuais criadas pelo Supremo Tribunal Federal a partir da instauração, de ofício, do Inquérito das Fake News. De início, apontam para, no mínimo, 7 (sete) paradoxos processuais a partir dos quais o Supremo Tribunal Federal, no caso analisado, estaria confrontando a dinâmica processual-penal estabelecida pelas regras do jogo.

E, assim, para concluir que o Supremo Tribunal Federal teria criado um casuísmo autoritário e seletivo, violador do princípio do juiz natural e do próprio regime democrático, no caso do Dep. Daniel Silveira, os autores partem de algumas premissas que passamos a expor: 1) o Inquérito das Fake News seria ilegítimo, violando o sistema acusatório, na exata medida em que o órgão acusatório, no caso a manifestação da PGR Raquel Dodge, teria postulado seu arquivamento e, não obstante, o “órgão julgador-acusador” teria dado continuidade à tramitação; 2) sendo os Ministros ou seus familiares vítimas de delitos, a competência para a apuração recairia sobre a Polícia Civil ou Federal concomitante com o Ministério Público; 3) a continuidade do Inquérito se deveu à desconfiança do Supremo Tribunal Federal nas instituições as quais a Constituição atribui o poder de investigação; 4) a determinação da prisão em flagrante do Dep. Daniel Silveira por decisão do Min. Alexandre de Moraes seria ilegítima por ter se fundado em um suposto crime permanente quando o caso seria de crime instantâneo de efeito permanente, o que acarretaria modificações significativas no plano da prisão pré-cautelar; 5) a decisão teria realizado um contorcionismo jurídico para justificar o afastamento da imunidade processual do parlamentar, utilizando uma comparação entre crime inafiançável e situação de inafiançabilidade, fundamentando-se incorretamente no art. 324, IV, CPP; 6) a prisão em flagrante, dada sua condição de pré-cautelaridade, deveria ser convertida em preventiva ou temporária, sob pena de ilegalidade no prolongamento da segregação do parlamentar; 7) a audiência de custódia e a autorização da Câmara dos Deputados seriam condições de validade da segregação cautelar e, portanto, houve a inversão da ordem lógica desses atos.2

Mencionam, ainda, outra questão relevante que seria a da incompetência do Supremo Tribunal Federal já que, segundo a jurisprudência da própria Corte definida na AP 937, apenas atos cometidos durante o exercício do mandato e que tenham relações com suas funções atraem a competência por prerrogativa de função. Neste caso, tendo a própria peça acusatória afirmado que se deve afastar a imunidade material do deputado, suas declarações não teriam relação com o mandato. Dessa forma, não haveria competência do STF para o processo e julgamento do deputado, além do que, salientam os autores, eventual renúncia ou cassação do mandato, conforme definido na jurisprudência da própria Corte externada na AP 937, a competência seria do primeiro grau, tendo que ser redistribuída eventual ação penal. O STF, portanto, concluem, contraria sua própria jurisprudência para julgar o caso do Deputado Daniel Silveira.

Não é nossa intenção não é tanto analisar as peculiaridades do caso do Deputado Daniel Silveira, mas apresentar algumas divergências, procurando dialogar com os pontos de vista apresentados pelos Professores, a quem admiramos e respeitamos. Embora partilhamos dos mesmos objetivos dos autores, a proteção do Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais, consideramos que alguns dos fundamentos apresentados por eles nos parecem problemáticos, como procuraremos mostrar a seguir.

O primeiro ponto que gostaríamos de destacar é o do ponto de vista de que o Inquérito da Fake News teria sido instaurado de forma ilegal, fora das hipóteses permitidas no Regimento Interno do STF. Em síntese, uma disputa ou divergência interpretativa em torno do disposto pelo §1º do art. 43 do RISTF. Para os autores, a Interpretação deste dispositivo regimental somente permitiria a conclusão de que a expressão “demais casos”, prevista no §1º do art. 43 do RISTF, envolveria apenas a situação em que o crime for cometido dentro das dependências físicas do Supremo Tribunal Federal, embora não se trate de autoridade ou pessoa sujeita à jurisdição do STF. Já defendemos, aqui mesmo, em artigo em coautoria com Lenio Streck, que a expressão “demais casos” não se refere a um suposto limite territorial na competência investigativa da Corte, mas a uma relação direta com a competência material do Supremo Tribunal Federal.3

Vamos insistir nesse ponto, já que ele tem uma relação direta com a distribuição de competências pela e na Constituição. Se bem entendemos o argumento, os autores colocam a noção de dependência física, entendida como o espaço territorial em que o STF realiza suas atividades jurisdicionais, como um requisito a priori para a instauração do Inquérito. Mas, nesse caso, surgiria uma questão que seria capaz de romper com essa inteligibilidade normativa. Reflitamos, por um momento, no atual momento. As sessões, as reuniões, as audiências e demais atos não estão sendo necessariamente praticados no espaço delimitado ao STF na Praça dos Três Poderes, mas remotamente. O STF não está, no momento, realizando suas funções em suas dependências? Questionamos: e se houver uma invasão nos dispositivos informáticos utilizados pelos Ministros no exercício de suas funções, de quem é a competência para a investigação? Não seria isto um crime cometido nas dependências da própria Corte? Aqui mesmo já se desmancharia no ar a noção estática de espaço e tempo pela qual partem os autores.

Por isso, defendemos uma noção não estática de tempo e espaço, não no sentido de permitir a discricionariedade ou o arbítrio, mas de interpretar o dispositivo regimental à luz das competências fixadas na Constituição, em fase dos desafios que a virtualidade das redes coloca.

Como sabemos, a competência fixada no âmbito da Constituição ao Supremo Tribunal é a chamada competência absoluta: em razão da matéria, da pessoa ou funcional. Por isso, uma interpretação constitucionalmente adequada à Constituição significa vinculá-la à competência material, pessoal ou funcional. Como já escrevemos, o Regimento Interno foi recepcionado com status de lei.4 Os “demais casos”, dessa forma, é com relação à própria competência da Corte e não com as estritas dependências físicas dela.

Partindo desse princípio, outra questão nos parece fundamental em relação à dinâmica da jurisdição constitucional para a tutela do chamado Contempt of Court. A sustentação da incompetência do STF para julgar os atos praticados pelo deputado. No artigo, parece-nos haver certa inversão quanto aos limites da imunidade parlamentar e ao próprio exercício do mandato. Segundo consideram, se não há imunidade, não há exercício do mandato. Isto é, só há exercício das funções parlamentares se houver imunidade. A própria imunidade parlamentar é condição de possibilidade do exercício do mandato parlamentar e o não o mandato parlamentar é que é a condição de possibilidade para a emergência da imunidade parlamentar. A relação, assim, é invertida e tornaria os pressupostos dos autores não sustentáveis.

E, no entanto, defendemos, como a PGR definiu na denúncia, que a imunidade material do deputado estaria afastada, não porque não houve o exercício do mandato, mas porque houve o abuso do mandato e de suas prerrogativas. O abuso no exercício do direito é um ato contrário ao direito, isto é, é uma violação ao próprio direito, uma ilicitude. Confundir essa questão é, como já dissemos a respeito das próprias imunidades parlamentares5, jogar a Constituição contra ela mesma.

Cabe lembrar que o Contempt of Court “é uma questão jurídica, principiológica e constitucional em um Estado Democrático de Direito”!, de acordo com a forma primeira levantada por Lenio Streck6 e ratificada no voto do Min. Edson Fachin, quando o STF referendou o Inquérito das Fake News. Ademais, fosse correta a tese de rejeição do Contempt of Court no Brasil, teríamos que, na inercia da PGR, nossa Suprema Corte ficaria refém de ataques anti-democraticos, o que seria até mesmo bizarro.

Assim, entendemos que o devido exercício da atividade parlamentar é condição de possibilidade para as prerrogativas e imunidades parlamentares e não o contrário. Mas, conforme a própria jurisdição constitucional da Corte já definiu no Caso Cunha, além dos limites fixados expressamente na Constituição, as imunidades e prerrogativas também têm limites argumentativos, isto é, não podem ser usadas contra o próprio exercício do mandato parlamentar. Isto é, não podem ser usadas contra a Constituição e a democracia que ela constitui para atentar contra ela mesma7

Nesse ponto, restaria ainda a pergunta: de quem seria a competência para o processo e o julgamento no caso de renúncia ou cassação? No caso, os Professores sustentam a aplicação do entendimento manejado na AP 937 sem realizar, contudo, o necessário distinguishing. No julgamento invocado, evitando os abusos e manobras processuais tal como o caso Natan Donadon8, o STF definiu a tese de que somente nos delitos cometidos durante o mandato e em razão dele é que se atrai o foro privilegiado. Assim, a extinção do mandato levaria à perda do foro privilegiado, ainda quando houvesse a eleição do réu para um mandato com foro perante a Corte.

Contudo, o princípio imanente à fixação da referida tese é a proteção do juízo natural da Corte. Ora, estabelecida, no caso do Deputado Daniel Silveira, a própria competência originária da Corte para, inclusive a investigação, a perda do foro privilegiado por renúncia ou cassação seria, apenas, uma forma de manobrar o próprio juízo natural. Neste caso, teríamos uma fraude processual com sinal trocado. Se, pois, nos casos em que originaram a tese, a fraude residiria na modificação de competência da 1ª instância para as instâncias superiores, neste, ao contrário, a modificação seria da Corte Suprema para a 1ª instância. Portanto, no fundo, entendemos que a manutenção da competência da Corte é que conserva a ratio da tese fixada na AP 937.

Não custa, portanto, lembrarmos: o precedente é, ainda que retrospectivamente identificável, o ponto de partida da aplicação do direito e não o seu ponto de chegada. O ponto de chegada é a sua adequabilidade.

Dedicamos este artigo a Lenio Luiz Streck e a Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, pelo tempo da interlocução.


1 LOPES JR, Aury, MATIDA, Janaina, COUTINHO, Jacinto Nelso de Miranda, NARDELLI, Marcela Mascarenhas, ROSA, Alexandre Morais da. A prisão do deputado Daniel Silveira e os paradoxos processuais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-fev-26/limite-penal-prisao-deputado-daniel-silveira-paradoxos-processuais, acesso em 27 de fevereiro de 2021.

2 LOPES JR, Aury, MATIDA, Janaina, COUTINHO, Jacinto Nelso de Miranda, NARDELLI, Marcela Mascarenhas, ROSA, Alexandre Morais da. A prisão do deputado Daniel Silveira e os paradoxos processuais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-fev-26/limite-penal-prisao-deputado-daniel-silveira-paradoxos-processuais, acesso em 27 de fevereiro de 2021.

3 STRECK, Lenio Luiz, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, BACHA E SILVA, Diogo. Inquérito judicial do STF: o MP como parte ou "juiz das garantias"? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/opiniao-inquerito-stf-mp-parte-ou-juiz-garantias, acesso em 27 de fevereiro de 2021.

4 STRECK, Lenio Luiz, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, BACHA E SILVA, Diogo. Inquérito judicial do STF: o MP como parte ou "juiz das garantias"? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/opiniao-inquerito-stf-mp-parte-ou-juiz-garantias, acesso em 27 de fevereiro de 2021.

5 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco, BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. O Caso Delcídio – Imunidades parlamentares e princípio da separação de poderes no Estado Democrático de Direito: Breves comentários a partir da decisão do STF na Ação Cautelar n. 4039. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/o-caso-delcidio-imunidades-parlamentares-e-principio-da-separacao-de-poderes-no-estado-democratico-de-direito-breves-comentarios-a-partir-da-decisao-do-stf-na-acao-cautelar-n-4039-por-alexandre/, acesso em 27 de fevereiro de 2021; Cf, também: BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes, FERNANDES, Bernardo Gonçalves. O caso Cunha no STF e a defesa da integridade constitucional: a decisão liminar na AC 4.070 e o sentido adequado das prerrogativas e imunidades parlamentares. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-caso-cunha-no-stf-e-a-defesa-da-integridade-constitucional-a-decisao-liminar-na-ac-4-070-e-o-sentido-adequado-das-prerrogativas-e-imunidades-parlamentares-por-alexandre-gustavo-melo-franco-de-moraes-bahia-bernardo-goncalves-fernandes-diogo-bacha-e, acesso em 27 de fevereiro de 2021.

6 STRECK, Lenio Luiz. O STF sendo atacado e o MP fica arrumando o Van Gogh na parede. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-abr-25/senso-incomum-stf-sendo-atacado-mp-fica-arrumando-van-gogh-parede

7 Sobre o tema, ver também o artigo magistral de Lenio Luiz Streck. Deus está morto e agora pode tudo? Reflexões sobre a prisão do deputado (Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-fev-17/streck-deus-morreu-agora-tudo-prisao-deputado) em que Streck justifica em que termos é cabível a prisão em flagrante referindo-se ao pensamento de Juarez Tavares, bem como, por outro lado, recupera a sua cautela em relação ao uso da LSN, Lei essa que, no mínimo, deve passar por uma filtragem constitucional, senão revogada por uma democrática Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, tal como nos termos do PL n. 3864/2020, apresentado pelo Deputado Paulo Teixeira (Cf. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2257960 e https://www.conjur.com.br/2021-fev-28/uso-desmedido-revive-debate-reforma-lsn ).

8 BACHA E SILVA, Diogo, BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco, IOTTI, Paulo Roberto. STF viola igualdade com decisões diferentes sobre renúncia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-mai-13/stf-viola-igualdade-decisoes-diferentes-renuncia-mandato, acesso em 27 de fevereiro de 2021.

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