Opinião

A morte e a morte das reformas tributárias na América Latina

Autores

  • Allan Titonelli Nunes

    é procurador da Fazenda Nacional e desembargador Eleitoral Substituto do TRE-RJ mestre em Administração Pública pela FGV especialista em Direito Tributário ex-presidente do Forum Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz. Membro da Academia Brasileira de Direito Político e Eleitoral (Abradep).

  • Daniel Giotti de Paula

    é doutor em Finanças Públicas Tributação e Desenvolvimento pela UERJ procurador da Fazenda Nacional e professor de Direito Financeiro e Tributário.

18 de maio de 2021, 9h15

No último dia 11, a Colômbia assistiu em transe a uma comoção que levou milhares de pessoas às ruas contra a proposta de reforma tributária encaminhada pelo presidente Iván Duque, que aumenta tributos sobre itens de necessidade básica para compensar os gastos públicos da pandemia.

A relação da tributação com o desempenho econômico, tentando encontrar a melhor equação entre a tributação, a receita gerada e as despesas do Estado, de modo a viabilizar a necessidade do Estado e a satisfação do contribuinte, foi objeto de vários estudos, entre eles o de Adam Smith em sua obra "A Riqueza das Nações", na qual alertava para o perigo de se taxar exorbitantemente sem ensejar um correspondente aumento da receita e gerar a insatisfação do contribuinte [1].

A revolta na Colômbia se parece com a jornada de junho de 2013 no Brasil, em que o aumento das passagens de ônibus gerou um estopim de mobilizações, em que questões de finanças públicas, em sentido mais largo, consubstanciadas no aumento do preço das passagens do transporte coletivo, acirraram a polarização na sociedade, mas há questões remotas mais instigantes a se analisar.

Ainda no antigo Estado Absolutista, na Inglaterra, quando o rei João Sem Terra começa a aumentar a tributação sem antes comunicar aos senhores feudais, os barões ingleses, simultaneamente a um processo de perda de terras anteriormente conquistadas (notadamente o norte da França), instaura-se uma rebelião comandada por aqueles. Eles invadem Londres e forçam o rei a assinar a Magna Carta (1215), um documento precursor das constituições contemporâneas, que determina limitações às arbitrariedades da monarquia, trazendo conceitos importantes de defesa dos direitos individuais em detrimento do poder estatal. Entre suas disposições, exigem que os novos tributos sejam antes aprovados por um Conselho de Barões.

Com esse exemplo, impossível não se relembrar do que muitos apontam como próprio de qualquer grande revolução na história mundial se dar por questões tributárias, como a independência norte-americana e o movimento do Tea Party, a Conjuração ou Inconfidência Mineira e seu problema com a derrama — talvez o primeiro tributo presumido no Brasil e que levou a muitos devedores da coroa portuguesa a se insurgir —, e, ainda, na Revolução Francesa, quando o terceiro estado, fazendo um bom uso das massas populares, se insurgiu contra os privilégios de classe da nobreza e da monarquia, entre os quais as imunidades tributárias de que dispunham.

No Brasil, também de tanta polaridade, o presidente da Câmara Federal encerrou a Comissão Especial de Reforma Tributária, ao que consta, pelo noticiário político, porque há um conflito entre o que quer o governo — uma reforma contida e apenas para a tributação federal — em contraposição à proposta que se delineava, de bases amplas, defendida pelo relator, deputado Aguinaldo Ribeiro. A comissão mista, no Congresso Nacional, persiste, tendo feito no dia 12 o deputado Aguinaldo Ribeiro, relator da comissão extinta na Câmara, a leitura de um parecer com cem sugestões.

Discute-se se viria uma reforma fatiada ou não, e o argumento de encerramento da comissão especial que tratava da PEC 45, concebida por alguns tributaristas e economistas, é que ela já tinha encerrado o número máximo de sessões.

Refletindo sobre os acontecimentos, tendo a Colômbia, terra do realismo fantástico por excelência, e abrindo uma conexão com o mais fantástico dos escritores nacionais, Jorge Amado, é de se perguntar: chegamos à morte e à morte das reformas tributárias, aludindo ao clásico "Quincas Berro D’Água"?

Explicamos: em sistemas democráticos, que primam pela estabilidade política, alterações tributárias não devem mais se dar por revoltas, talvez nem sejam aconselháveis discussões sobre o tema em momentos de ausência de consenso.

Essa seria a primeira morte das reformas tributárias, uma boa morte, permita-se dizer, porque vivemos nas últimas décadas, graças à democracia, um momento de maior estabilidade e de níveis sociais e econômicos melhores, como aponta o filósofo Steven Pinker [2] com ampla base estatística, a afastar qualquer arroubo autoritário, sangrento e a afirmar a crença dos países na paz. Assim, as revoluções pelos tributos devem ficar nos livros de história. Se isso é verdade, resta que as mudanças tributárias se deem por reformas constitucionais ou não, a depender do tema e do sistema tributário.

Mas as democracias modernas, sobretudo as latino-americanas, ainda resistem sob bases populacionais em que a inimizade, numa forma exarcebada de agonismo político, tem dificultado a formação de consensos. É um dos fatores que Cláudio Pereira de Souza Neto aponta para a polarização e crise da democracia no Brasil, propondo que se volte a cultivar uma cidadania para além dos conflitos ideológicos e orientações partidários, uma espécie de "amizade cívica" [3].

Aí vem a segunda morte, absolutamente lamentável, pois parece faltar razão para as discussões. Não se chega a consenso no Brasil sobre uma reforma geral ou fatiada, sobre a uniformização ou não sobre a tributação sobre o consumo, sobre como simplificar, Essa polarização já gerou discussões acaloradas entre tributaristas em congressos, de uma forma algo diversa de uma discussão sob agir comunicativo cultuada entre pensadores. 

E longe do altiplano das reformas constitucionais, temas mais fáceis — menos difíceis? —, como uma reforma por parte de cada fisco para reduzir obrigações assessórias, a definição por parte da União do que seja insumos, preservando a não cumulatividade do PIS e da Cofins, possibilidade de tributar dividendos, a reversão da jurisprudência estendida para entidades religiosas e a ausência tributação de embarcações e aeronaves, não são atingidos. O que fazer?

Somos entusiastas de uma reforma tributária brasileira. Uma que fique a meio caminho entre uma reforma igualitária, mudando a matriz de desigualdade na tributação sobre o patrimônio e a renda, e uma reforma pela simplicidade, que acabe com tantas fontes conflitantes e sobrepostas sobre o consumo. Afinal, como diria Márcio Pochmann [4], "no desenvolvimento das nações, a tributação exerce um papel importante no enfrentamento das desigualdades. Quanto mais justo o sistema tributário, menor tende a ser o grau de concentração de riqueza e renda nacional".

São tempos difíceis, porém. A OCDE, às voltas com a tributação no contexto da digitalização da economia, por mais que diga que quer simplicidade nas mudanças da tributação direta e indireta, cogita formas de tributar receitas residuais e, enquanto não se chega ao consenso, "permite" que países estabeleçam um tributo sobre serviços digitais, com aparência das contribuições sociais, como o PIS e a Cofins, que tanto são criticadas no Brasil. Estaria o Direito Internacional se apercebendo de que a realidade da economia trouxe pitada de complexidade para os sistemas tributários?

A mesma OCDE, que iniciou um grande projeto contra a erosão das bases tributárias, se viu no meio da pandemia em um dilema: não se deve prejudicar o desenvolvimento tecnológico pela via da tributação — a ênfase nos relatórios da OCDE é sempre em resguardar startups e pequenas empresas —, mas, ao mesmo tempo, é tempo de melhorar as finanças públicas mundiais, o que exige uma redesenho da tributação.

Por mais que a bola da vez seja tributar mais conglomerados digitais como Facebook, Apple, Microsoft, Uber, Airbnb e outros marketplaces, e se possa pensar que algumas dessas empresas enfrentam recessão nos seus setores, os déficits orçamentários dos países mostram que os US$ 100 bilhões arbitrados como receitas residuais sem tributação no âmbito digital não resolvem as finanças. Só o Brasil já tem um déficit acumulado desde o início da pandemia maior que um trilhão de reais.

No romance de Jorge Amado, Quincas Berro D'Água teria tido duas mortes, o que qualquer leitor pode perceber. Mas a genialidade do escritor ainda acusa que haja uma terceira morte, a social, quando ele resolveu se distanciar de sua tradicional família. O receio exposto nesse artigo é justamente antever uma terceira morte para os projetos de reforma tributária nas democracias latino-americanos e, no Brasil, em especial.

Enquanto assistimos ao mundo, com Biden nos Estados Unidos e outros países da Europa, tentando realmente reduzir fossos de desigualdade, não por uma agenda socialista ou socializante, mas por se ver um problema claro e de repercussões nunca antes vistas nas democracias modernas, nós nos perdemos sobre os consensos mais básicos, sobre como repartir competências tributárias, o que fazer com o Simples, como evitar efeitos antissísmicos de decisões do STF em matéria tributária, o que é precedente etc.

É como se estivéssemos próximos, não da inimizade política absoluta, mas de uma incapacidade de diálogo sobre premissas, pois além do "é necessário simplificar", "é preciso melhor a tributação sobre a renda e seu aspecto distributivo", "é imperativo olhar a tributação sobre o consumo para ser mais justa e eficiente", nós acabamos nos perdendo nas ideias gerais sem conseguir delas extrair propostas concretas consensuais.

O quadro social aponta para ausência de diálogo, agonismo político, e mexer na tributação é como mexer em vespeiro. Será que realmente chegamos à terceira e derradeira morte das reformas tributárias?

P.S.: No dia em que terminamos de escrever este artigo, o STF decide a chamada "tese do século", de uma forma em que contribuintes e União não levaram tudo que queriam em decorrência da modulação de efeitos. Sabe-se, porém, que perda de receita houve pelo passado e haverá pela retirada de parte da base de cálculo do PIS e da Cofins. Se política é a arte do possível e as finanças públicas serão ainda mais afetadas, a busca pela reforma tributária persiste sem a terceira morte apontada?

 


[1] SMITH, A. A Riqueza das Nações. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 145.

[2] PINKER, Steven. O novo iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do iluminismo. Trad. por Laura Teixeira Motta e Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

[3] SOUZA NETO, Cláudio Peira. Democracia em crise no Brasil: Valores constitucionais, antagonismo político e dinâmica constitucional. Rio de Janeior: Eduerj, 2019, p. 295.

[4] POCHMANN, Márcio. Desigualdade e Justiça Tributária. Brasília, 15/5/2008. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2008/05/197_1548-DesigualdadeJusticaTributaria-CDES.pdf> Acesso em: 03/02/2016.

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