Opinião

Ainda e sempre a legitimidade ad causam: continuação das reflexões

Autores

  • Rodrigo Nery

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (com ênfase em Direito Processual Civil) pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq/UnB Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) integrante e orador da primeira equipe da UnB na 1ª Competição Brasileira de Processo (CBP) e advogado.

  • João Pedro de Souza Mello

    é doutorando e mestre em Direito pela UnB e sócio do Aguiar e Mello Advogados.

12 de dezembro de 2021, 15h11

No último dia 6, publicamos nesta Conjur um artigo contendo nossas reflexões sobre a legitimidade ad causam no Direito brasileiro [1], com base no repertório doutrinário atual. De todo o retorno que tivemos, de vários colegas estudiosos [2], percebemos que alguns pontos podem ser acrescentados às ideias por nós defendidas [3].

Como dissemos, deve-se entender que teria ocorrido uma modificação conceitual da legitimidade ad causam, a fazer com que ela seja considerada como um fenômeno de direito processual, e não de direito material. Nas nossas próprias palavras, legitimidade ad causam seria "o poder de pleitear determinada providência jurisdicional com base na alegação de direito próprio" [4].

Esse conceito já era defendido pela doutrina, valendo menção a Pedro Henrique Nogueira [5]. A nossa proposta, contudo, buscou trazer uma visão sob a perspectiva constitucional, no sentido de que esse instituto deve ser entendido como um atributo "estabelecido pela própria constituição, a se considerar inconstitucional eventual proibição legal ou jurisprudencial do autor de pleitear em juízo  direito que alega ser de sua própria titularidade" [6]. Outro ponto defendido foi, como dito, o de que não haveria se falar em um conceito de legitmidade de agir e outro de legitimidade ad causam existindo simultaneamente. Em verdade, deve-se entender que houve uma ressignificação da ideia de legitimidade ad causam, desassociando esse instituto da seara do Direito material [7].

Ocorre que, das reflexões que nos foram trazidas após a publicação do trabalho, percebemos que o posicionamento acima merece um pequeno (mas relevantíssimo) ajuste. É sobre isso que falaremos neste adendo.

A legitimidade ad causam deve ser vista, em verdade, como a prerrogativa constitucional de ir ao Poder Judiciário pleitear determinado provimento jurisdicional em seu próprio benefício, independentemente do fundamento desse pleito. Em outras palavras: trata-se do poder de pleitear provimento jurisdicional em nome próprio e em seu próprio benefício.

A diferença dessa visão para a defendida no artigo anterior é bem simples: para a aferição da legitimidade ad causam, não se deve verificar o conteúdo da causa de pedir, ainda que somente in statu assertionis. Somente se verifica o pedido que é feito, e isso com a finalidade de aferir se ele visa a beneficiar quem o realizou.

A justificativa para a nossa mudança de posicionamento é a seguinte: a constatação de que qualquer análise quanto à fundamentação do pleito jurisdicional inevitavelmente dará origem a um provimento meritório. Se o pedido não possui fundamento, a análise será de mérito. Por outro lado, se o pedido é ou não é em benefício próprio, não há como dizer que, nesse caso, há análise meritória.

Um exemplo bem simples serve para explicar essa nova visão. Vamos a ele. Um sujeito ajuíza uma demanda pleiteando um valor a título de suposta indenização com base em uma relação jurídica contratual da qual ele não participa. Aplicando o conceito de legitimidade acima defendido, as conclusões às quais chegamos são as seguintes: 1) o autor dessa ação é legítimo, pois pleiteia um provimento jurisdicional em interesse próprio; 2) qualquer outra análise que verifica o fundamento desse pleito será uma análise meritória.

A ideia de legitimidade, se vista sob a ótica do Direito material, "é uma qualidade do sujeito aferida em função de  ato jurídico, realizado ou a ser praticado" [8]. Como bem pontuou Donaldo Armelin, "a legitimidade não se restringe a um campo específico do direito, tendo penetração em todas as áreas" [9].

A nossa proposta, entretanto, diverge da noção clássica de legitimidade ad causam, tal como adotada no processo civil brasileiro pela doutrina especificamente consolidada sob a égide do CPC de 1973 [10]. Como dito, é uma ressignificação. Busca-se atribuir novo sentido ao conceito, com o objetivo de tornar coerente a sua previsão pelo próprio CPC como fenômeno de Direito Processual (artigo 17 c/c artigo 485, VI, do CPC).

Conforme observado no nosso texto anterior, há um fenômeno que pode ser plenamente rotulado como legitimidade ad causam, que é justamente a autorização constitucional de um determinado sujeito ir ao Judiciário pleitear um provimento, não com base em um suposto direito que alega ser seu, mas, sim, em seu benefício. Se se constatar que não haveria pleito em seu benefício, esse sujeito não seria legítimo para ajuizar a demanda. É irrelevante, para fins de legitimidade, o direito alegado ser ou não de quem alega, ainda que in statu assertionis.

Por essa razão, ainda que defendendo posicionamento distinto do nosso, talvez tenha razão Cândido Rangel Dinamarco quando afirma que a legitimidade, a rigor, se insere no interesse de agir, visto que a sua ausência "traduz-se na ausência de utilidade do provimento jurisdicional de determinado sujeito" [11]. Adaptando essa reflexão para que nela se insira o conceito de legitimidade ora defendido, realmente ela estaria adequada, pois só seria legítimo quem pleiteia algo judicialmente em benefício próprio, independentemente de alegar direito seu ou de terceiro como fundamento [12].

 


[1] NERY, Rodrigo. MELLO, João Pedro. Ressignificando (de uma vez por todas) o conceito de legitimidade ad causam. Conjur. 6 de dezembro de 2021, n.p. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-06/nery-mello-ressignificando-conceito-legitimidade-ad-causam#_ftn15.  

[2] Vale menção especial ao amplo debate que tivemos com Felipe Berkenbrock Goulart, a quem agradecemos muito a cuidadosa análise do nosso último escrito.

[3] O título do presente texto é em homenagem a um famoso trabalho de Barbosa Moreira, autor que nos serve de inspiração: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ainda e sempre a coisa julgada. In: Direito Processual Civil (ensaios e pareceres). Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1971.

[4] NERY, Rodrigo. MELLO, João Pedro. Ressignificando (de uma vez por todas) o conceito de legitimidade ad causam. Conjur. 6 de dezembro de 2021, n.p. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-06/nery-mello-ressignificando-conceito-legitimidade-ad-causam#_ftn15

[5] NOGUEIRA, Pedro Henrique. Primeiras reflexões sobre a legitimidade processual no Código de Processo Civil brasileiro. Revista de Processo. Vol. 305/2020, p. 63-82, julho/2020, p. 4

[6] NERY, Rodrigo. MELLO, João Pedro. Ressignificando (de uma vez por todas) o conceito de legitimidade ad causam. Conjur. 6 de dezembro de 2021, n.p. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-06/nery-mello-ressignificando-conceito-legitimidade-ad-causam#_ftn15

[7] NERY, Rodrigo. MELLO, João Pedro. Ressignificando (de uma vez por todas) o conceito de legitimidade ad causam. Conjur. 6 de dezembro de 2021, n.p. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-06/nery-mello-ressignificando-conceito-legitimidade-ad-causam#_ftn15

[8] ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no Direito Processual Civil brasileiro. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais,1979, p. 11.

[9] Ibidem, p. 10.

[10] Por todos, vale citar Barbosa Moreira, que ainda antes do surgimento do CPC de 1973 já definia legitimação como "a coincidência entre a situação jurídica de uma pessoa, tal como resulta da postulação formulada perante o órgão judicial, e a situação legitimante prevista na lei para a posição processual que essa pessoa se atribui, ou que ela mesma pretende assumir" (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. In: Direito Processual Civil: ensaios e pareceres. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 59). Conceituando situação legitimanente: "Em regra, a situação legitimante é definida pela própria situação jurídica que se submete ao órgão judicial como objeto do juízo, vista no seu duplo aspecto ativo e passivo" (Idem, p. 59).

[11] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil: volume II. 7ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 359.

[12] Como bem observado por Felipe Berkenbrock Goulart ao definir o raciocínio ora exposto.

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