Opinião

Ressignificando (de uma vez por todas) o conceito de legitimidade ad causam

Autores

  • Rodrigo Nery

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (com ênfase em Direito Processual Civil) pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq/UnB Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) integrante e orador da primeira equipe da UnB na 1ª Competição Brasileira de Processo (CBP) e advogado.

  • João Pedro de Souza Mello

    é doutorando e mestre em Direito pela UnB e sócio do Aguiar e Mello Advogados.

6 de dezembro de 2021, 6h35

Embora pareça uma discussão superada pela doutrina brasileira, a definição da natureza jurídica da legitimidade ad causam e a sua colocação dentro das postulações processuais ainda são fruto de grave dissenso. De uma breve análise de algumas obras que estudam o assunto foram percebidas ao menos duas correntes doutrinárias, destacadas a seguir.

A primeira é a que compreende a legitimidade ad causam como uma das condições da ação. Trata-se de visão consolidada especialmente sob a égide do CPC de 1973, tendo como adeptos, entre outros, José Frederico Marques (com base no código anterior) [1] e Cândido Rangel Dinamarco [2]. Essa visão foi muita influenciada pelos escritos de Enrico Tullio Liebman [3].

Dentro dessa vertente, há a visão expressa de alguns autores no sentido de que a ausência de uma das condições da ação enseja a inexistência do processo. É o que defende, por exemplo, Teresa Arruda Alvim ao afirmar que "as sentenças proferidas em processos instaurados por meio de ação, sem que tenham sido satisfeitas uma ou mais condições da ação — legitimidade (…) — , não podem ser consideradas nulas, mas inexistentes" [4]

A segunda vertente, por sua vez, é a que compreende a legitimidade como um requisito ou pressuposto processual. Por todos, vale mencionar Fredie Didier Júnior [5]. É de se destacar, entretanto, que esse mesmo autor, seguindo as linhas do que pregara Calmon de Passos ainda em 1960 [6], já afirmou que a verificação da legitimidade ad causam ordinária seria uma análise atinente ao mérito do processo [7]. Em obra recente, a seguir comentada com mais profundidade, vemos Pedro Henrique Nogueira reforçar essa posição, mas distinguindo legitmidade ad causam de legitimidade processual, considerando a primeira como uma questão meritória e a segunda como uma categoria processual [8].

Percebe-se que o conceito de legitimidade passou por modificações com o passar dos anos. Essas transformações residem no escopo da sua classificação como um fenômeno de Direito material ou processual [9].

Atualmente, o CPC estabelece a legitimidade como instituto de Direito processual, e aqui não se nega que a ampla divergência existente entre as visões doutrinárias citadas acima tenha influenciado o legislador no momento de estabelecer essa escolha conceitual. De acordo com o que foi estabelecido no código, indubitavelmente o legislador a classificou como requisito ou pressuposto de validade do processo (artigos 17 e 485, VI, do CPC), embora isso possa ainda ser polêmico. De todo modo, não há dúvidas de que a opção legislativa foi classificar a legitimidade como um fenômeno do Direito processual.

Ocorre que, como visto, autores adeptos da segunda corrente citada acima afirmam que a noção clássica de legitimidade ad causam ordinária estaria associada ao mérito do processo. Somente a legitimação extraordinária é que seria uma categoria do Direito processual [10] .

Essa visão se justifica em razão do próprio conceito clássico da legitimidade que é criticado pelos autores. A legitimidade ad causam ordinária, como "pertinência sujetiva da ação" [11], que dependeria de uma "necessária relação entre o sujeito e causa" [12], inevitavelmente seria um fenômeno de Direito material, e não de Direito processual [13].

Esse é o raciocínio correto, pois quando se entende que um determinado sujeito não tem pertinência subjetiva com o direito material alegado em juízo, a conclusão é a de que ele não teria direito. Nas palavras de Calmon de Passos: "(…) A qualidade do autor como titular do direito ajuizado é evidentemente uma questão de mérito, que deve ser tratada preliminarmente a qualquer outras. Se não está provado que o autor é credor da dívida que afirma existir, seria perder tempo provar a existência da mesma. (…) Resolvendo, assim, sôbre a legitimação, o juiz decide o mérito da causa" [14].

Entretanto, da análise do nosso ordenamento percebe-se a possibilidade de se conceber uma nova noção de legitimidade ad causam, completamente dissociada do mérito do processo. Seria uma ressignificação da ideia de legitimidade, em sua rotulação clássica.

O autor que defende uma visão semelhante a essa é Pedro Henrique Nogueira, em importante artigo já citado acima, que foi publicado em 2020. Segundo destaca, a legitimidade de agir, de natureza processual, restringe-se à análise da legitimação para propor a demanda. Nas suas palavras, "estão legitimados a demandar aqueles que pleiteiam direito subjetivo próprio" [15]. E completa: "Excepcionalmente, legitimam-se certos sujeitos a litigar em nome próprio a respeito de direitos subjetivos alheios; são os substitutos processuais" [16]. Esse entendimento já era defendido antes pela doutrina, valendo menção a Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero e Sérgio Arenhart ao destacarem que "o que importa é a afirmação do autor e não a correspondência entre a afirmação e a realidade, que já é problema de mérito" [17].

O posicionamento exposto acima é o mais adequado, ante a evolução das compreensões doutrinárias existentes. Pedro Henrique Nogueira vai até mais além, estudando outras espécies de legitimidade ("vg., legitimidade para intervir como assistente, legitimidade para intervir como amicus curiae etc." [18]), abordando também as legitimidades dinâmicas [19], assuntos que extrapolam o escopo da breve análise aqui feita.

O ponto que aqui se busca observar é o seguinte: não há mais como se falar em legitimidade como categoria atinente ao mérito da demanda. As interpretações que consideram uma visão de legitimidade que inevitavelmente está associada à existência ou não do direito afirmado em juízo não podem prevalecer no atual cenário processual, especialmente no que concerne às teorias que sequer percebem que estão defendendo um fenômeno que possui natureza meritória.

Por isso, divergindo suavemente de Nogueira nesse ponto, entendemos que a legitimidade de agir, seguindo o conceito por ele defendido, não se configura como uma visão distinta da visão clássica de legitimidade ad causam (essa que pertenceria ao rol das questões meritórias). Na realidade, a legitimidade de agir, sem adentrar na questão das outras legitimidades processuais, é uma ressignificação da clássica legitimidade ad causam.

Ou seja, o que houve, na verdade, foi uma modificação conceitual, e não o surgimento de novos conceitos que seriam aptos a coexistir com esse conceito tradicional de legitimidade ad causam. Conforme entendemos, superar essa noção meritória de legitimidade é um passo importante, até em razão da própria desnecessidade de continuar adotando um conceito que não possui relevância alguma no Direito Processual Civil. Qual a finalidade de um conceito de legitimidade associado ao mérito do processo?

Por fim, vale aqui mencionar algumas razões para justificar a ressignificação aqui apontada.

Em primeiro lugar, a legitimidade ad causam deve ser vista como um fenômeno estabelecido pela constituição, a se considerar inconstitucional eventual proibição legal ou jurisprudencial de o autor pleitear em juízo direito que alega ser de sua própria titularidade. Todos podem pleitear em juízo direito que alegam ser de sua titularidade, mesmo que não sejam efetivamente titulares desse direito, o que será analisado pelo Judiciário.

Em segundo lugar, o CPC define a legitimidade ad causam ordinária como um fenômeno de Direito processual, e não de Direito material, o que possibilita uma ressignificação do conceito de legitimidade, a ter coerência com a previsão estabelecida no código (artigo 17 c/c artigo 485, VI, do CPC);

Em terceiro lugar, há um fenômeno que se encaixaria perfeitamente na ideia de legitimidade, que é justamente o poder de pleitear determinada providência jurisdicional com base na alegação de direito próprio, o que não pode ser tolhido pelo ordenamento jurídico processual, sob pena de flagrante inconstitucionalidade;

Em quarto e último lugar, a legitimidade ad causam extraordinária já é operacionalizada sob essa lógica. Concebe-se legitimidade extraordinária como o poder de atuar em juízo em nome próprio defendendo interesse jurídico que se alega ser de outrem [20]. Bastaria aplicar esse mesmo raciocínio à legitimidade ordinária (com a revisão conceitual ora sugerida): legitimidade ordinária é o poder de propor a demanda em nome próprio pleiteando tutela jurisdicional relacionada a um suposto direito que se alega ser próprio.

Que se coloque, portanto, uma pá de cal na discussão sobre a manutenção da legimidade ad causam como questão associada ao mérito no direito processual brasileiro. É necessário, de uma vez por todas, ressignificar essa ideia de legitimidade, a fazer ela mesma ser compatível com a previsão do CPC, como uma alegação de natureza processual, e não de Direito material. Fazendo referência à citação de Cícero feita por Fredie Didier Júnior em 2000, "até quando, ó Catilina, abusarás de nossa paciência" [21]?


[1] MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. Campinas: Millennium, 1998, p. 303.

[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil: volume II. 7ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 357 e seguintes.

[3] Sobre a influência de Liebman no Direito Processual Civil brasileiro, especialmente no CPC de 1973, cf. BUZAID, Alfredo. A influência de Liebman no Direito Processual Civil brasileiro. In: Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, São Paulo. v.72, v.1, 1977, p. 139.

[4] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 7ª ed. ver., ampl. e atual., com notas de referência ao Projeto Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 357.

[5] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 18ª ed. Salvador: Editora JusPodvm, 2016, v.1, p. 306-309.

[6] PASSOS, José Joaquim Calmon de. A ação no direito processual civil brasileiro. Tese apresentada à Faculdade de Direito da Universidade da Bahia, concorrendo à cátedra de Direito Judiciário Civil (1960). Salvador: JusPodivm, 2014, p. 42.

[7] Ao menos nesse trabalho especificamente: DIDIER JR., Fredie. Um réquiem às condições da ação. Estudo analítico sobre a existência do instituto. Revista Forense, v. 351. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 74. Em trabalho com base no CPC de 2015, cf. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 18ª ed. Salvador: Editora JusPodvm, 2016, v.1, p. 359.

[8] NOGUEIRA, Pedro Henrique. Primeiras reflexões sobre a legitimidade processual no Código de Processo Civil brasileiro. Revista de Processo. Vol. 305/2020, p. 63-82, julho/2020, p.4.

[9] Sobre o tema, Cf. PASSOS, José Joaquim Calmon de. A ação no direito processual civil brasileiro. Tese apresentada à Faculdade de Direito da Universidade da Bahia, concorrendo à cátedra de Direito Judiciário Civil (1960). Salvador: JusPodivm, 2014, passim.

[10] Sobre a legitimidade extraordinária, cf. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 18ª ed. Salvador: Editora JusPodvm, 2016, v.1, p. 360.

[11] LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. 3ª ed. Vol. 1. Tradução e notas de Cândido Rangel Dinamarco. São paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 211

[12] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil: volume II. 7ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 357.

[13] A própria doutrina já aponta essa variável há vários anos. Por todos, embora ainda não se desvencilhando completamente da concepção clássica de legitimidade, cf. as palavras de Donaldo Armelin: "Aliás, nos casos de legitimidade direta ou ordinária, onde essa qualidade tem como arrimo a alegada própria titularidade do direito, difícil seria separar a legitimidade do próprio mérito" (ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no Direito Processual Civil brasileiro. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais,1979, p. 83).

[14] PASSOS, José Joaquim Calmon de. A ação no Direito Processual Civil brasileiro. Tese apresentada à Faculdade de Direito da Universidade da Bahia, concorrendo à cátedra de Direito Judiciário Civil (1960). Salvador: JusPodivm, 2014, p. 42.

[15] NOGUEIRA, Pedro Henrique. Primeiras reflexões sobre a legitimidade processual no Código de Processo Civil brasileiro. Revista de Processo. Vol. 305/2020, p. 63-82, julho/2020, p. 4.

[16] Idem.

[17] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil, volume 1. Teoria do Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p.212.

[18] NOGUEIRA, Pedro Henrique. Primeiras reflexões sobre a legitimidade processual no Código de Processo Civil brasileiro. Revista de Processo. Vol. 305/2020, p. 63-82, julho/2020, p. 4.

[19] Ibidem, p. 9.

[20] "Legitimado extraordinário é aquele que defende em nome próprio interesse de outro sujeito de direito" (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 18ª ed. Salvador: Editora JusPodvm, 2016, v.1, p. 347).

[21] DIDIER JR., Fredie. Um réquiem às condições da ação. Estudo analítico sobre a existência do instituto. Revista Forense, v. 351. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 65.

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