CONTROVÉRSIAS JURÍDICAS

Investigação defensiva e princípio da ampla defesa

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

19 de agosto de 2021, 8h03

Tema que suscitou intenso debate na comunidade jurídica diz respeito à possibilidade do Ministério Público realizar e presidir procedimentos de investigação criminal, independentemente da atribuição constitucional dos órgãos de Polícia Judiciária.

Por um lado, dispõe o art. 144, § 1º, IV e § 4º, da CF que cabe à Polícia o exercício de tal função. Por outro, o art. 129, incisos VI e VIII, da CF trazem a possibilidade do Ministério Público expedir notificações dos procedimentos de sua competência e requisitar diligências investigatórias. Além do art. 129, I, da CF lhe conferir titularidade exclusiva da ação penal pública.

Ainda, diz a Constituição que o Ministério Público é instituição permanente e essencial ao regime democrático, incumbindo-lhe a defesa dos interesses indisponíveis da sociedade (CF, 127, caput). Nossa Carta Magna exige do Poder Público, por meio de seus órgãos e instituições, a proteção eficiente dos bens jurídicos, sendo princípio constitucional implícito a proibição de proteção deficiente de bens jurídicos como a vida, o patrimônio, a segurança, a honra e a probidade (CF, 5º, caput, e art. 37, caput, §§ 4º e 5º).

Nesse contexto, o Ministério Público surge como instituição essencial à eficaz prestação jurisdicional.

Desse modo, toda e qualquer interpretação relacionada ao exercício da atividade do Ministério Público deve primar pela necessidade de que tal instituição cumpra sua atribuição da forma mais abrangente possível. Diga-se, também, que a CF, art. 129, VII, VIII, IX permite que o Ministério Público realize controle externo da atividade policial; requisite diligências investigatórias e, autonomamente, instaure inquérito policial; e explicita que as atribuições trazidas no texto constitucional são exemplificativas, não exaurindo o rol de atribuições da instituição.

Do ponto de vista legal, o CPP, arts. 12; 27; 39, § 5º; e 46, § 1º nos mostra que o inquérito policial não é indispensável à propositura da ação penal, podendo ser substituído por outros elementos de prova. Desta forma, se a ação penal pode ser embasada em outras provas, não há razão fundamentada que sustente a impossibilidade de que o seja em provas colhidas pelo próprio órgão, por intermédio de seu poder constitucional de requisição e notificação para a tomada de depoimentos. O CPP, art. 47 ainda é mais enfático ao permitir que o Ministério Público requisite diretamente documentos complementares ao inquérito policial ou peças de informação, bem como quaisquer outros elementos de sua convicção.

“Aliás, na Declaração da IX Conferência Nacional dos Direitos Humanos (art. 22), consta expressamente o incentivo que deve ser dado aos poderes investigatórios do Ministério Público, para o fim de uma proteção mais adequada aos direitos humanos. No mesmo sentido, o relatório da Organização das Nações Unidas. Do mesmo modo, em decisão singular do eminente Min. Celso de Melo, em autos de medida cautelar (STF – HC nº 89.837-8) ”.[1]

Quanto ao argumento de que a CF, art. 144, § 1º, IV conferiu com exclusividade as funções de polícia judiciária da União à Polícia Federal, há de se dizer que não necessariamente significa excluir o Ministério Público das atividades de investigação, vez que a expressão “com exclusividade” se destina apenas a delimitar o âmbito de atribuições das polícias estaduais, as quais não poderão exercitar a atividade policial na esfera federal[2]. Por outro lado, Eugênio Pacelli sustenta que se trata de indicação de exclusividade para exercício de polícia judiciária dentre as polícias da União:

“A Constituição da República, a todas as luzes, não contempla nenhuma privatividade da investigação em mãos da Polícia, consoante se vê no Capítulo que cuida da Segurança Pública (arts. 144 e seguintes, CF). A palavra exclusivamente, que se encontra no citado art. 144, § 1º, da CF, nada mais faz esclarecer que no âmbito das polícias da União – Polícia Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícia Militar e Polícia Rodoviária Federal -, caberia apenas à primeira (a Polícia Federal) a função de Polícia Judiciária. Nada mais. Por isso, não poderia assim dispor, como dispõe, a Lei nº 12.830/13, reservando a investigação criminal às autoridades competentes. A menos que se considere ressalvado o poder de requisição de providências e de diligências por parte do Ministério Público, já que é nesse sentido a Lei Complementar nº 75/93, fora do alcance da Lei nº 12.830/13”.[3]

O STF pôs fim à controvérsia no julgamento do RE 593.727/MG, de relatoria original do então Min. Cesar Peluso, redirecionado para o acórdão do Min. Gilmar Mendes, em 14/05/2015, com reconhecimento de repercussão geral. Foi decidido pela legalidade da investigação promovida pelo Ministério Público, desde que respeitados os direitos e as garantias fundamentais do cidadão por prazo razoável, por prazo razoável e com possibilidade de controle pelo Poder Judiciário.[4]

Como bem salienta Guilherme Nucci, a previsão de controle jurisdicional dos atos do Ministério Público foi ratificada pela L. nº 13.964 ao prever que a abertura de qualquer investigação criminal deverá ser comunicada ao juiz de garantias, que por sua vez, terá a atribuição de conferir sua legalidade e fiscalizá-lo:

“A partir da reforma introduzida pela Lei 13.964, ficou estabelecido que qualquer investigação criminal deve ser formalmente comunicada ao juiz das garantias, que passará a fiscalizá-lo, controlando sua legalidade (art. 3º-B, IV, CPP). Por ora, o juiz das garantias não será implementado, por força da liminar do STF. Entretanto, espera-se que as investigações criminais do MP sejam do conhecimento do juiz que atua fiscalizando os inquéritos policiais”[5].

Sedimentado o entendimento da constitucionalidade das investigações criminais presididas pelo Ministério Público com base na interpretação sistemática de princípios e regras da CF, cabe analisar idêntica possibilidade conferida à defesa com base nos princípios constitucionais do devido processo legal (CF, 5º, LIV) e ampla defesa (CF, 5º, LV). Com isso, deu-se início ao debate sobre a investigação criminal defensiva.

Com base no princípio do equilíbrio das partes no processo penal e da imparcialidade e inércia jurisdicional, se o STF reconheceu ao Ministério Público a possibilidade de produzir provas paralelamente ao inquérito policial não se pode negar à defesa o direito de buscar por meios lícitos o esclarecimento da verdade real. Não é por demais lembrar que art. 155, do CPP estabeleceu o princípio da livre apreciação das provas pelo juiz, estatuindo que este formará sua convicção pela livre apreciação das provas.

“É mais que hora de autorizar a defesa a produzir prova extra-autos de inquérito. Afinal, o procedimento investigatório criminal (PIC) não advém de lei, mas de uma complexa interpretação de que o Ministério Público pode investigar, casando-se normas constitucionais e outras infraconstitucionais”[6]

Sendo o Ministério Público o dominus litis, o titular da ação penal; a defesa se valerá do princípio constitucional da ampla defesa, para ter as mesmas possibilidades de produzir as provas que lhe interessar. Além da observância dos princípios do processo penal, a institucionalização da investigação defensiva é também conveniente como matéria de política criminal, vez que desafogaria a polícia judiciária da instauração de inquéritos policiais para instruir futura queixa-crime.

O próprio advogado produziria a prova que instruiria a queixa-crime. Caso houvesse vício na produção da prova, a própria parte e seu representante seriam os prejudicados com a rejeição da queixa-crime e processos criminais por falsificação, denunciação caluniosa, falsa imputação de crimes, calúnia, injúria, dentre outros.

Inclusive, o Conselho Federal da OAB editou o Provimento 188/18, regulamentando a prerrogativa do advogado em realizar diligências investigatórias para a instrução em procedimentos administrativos ou judiciais. Em seu art. 1º conceitua investigação defensiva como o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvida pelo advogado, com ou sem a assistência de um consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de seu constituinte.

Mesmo não tendo força legal, o Provimento 188 serve como diretriz de atuação dos advogados, passando a estes a responsabilidade pelo sigilo das informações colhidas, garantindo ao cidadão o respeito aos seus direitos fundamentais (dignidade, privacidade, intimidade) – art. 5º do Provimento.

Para que as informações obtidas sejam publicadas, será indispensável a anuência expressa do investigado (Provimento 188, art. 6º, parágrafo único) e em observância à Lei 13.964/19 todos os atos deverão ser comunicados ao juiz de garantias.

Se as provas e os documentos particulares são aptos ao oferecimento de denúncia, também devem ser para a instruir a defesa, afinal de contas a verdade é uma só, esteja com a acusação, esteja com a defesa e toda prova que ajudar a esclarecê-la deve ser considerada.

 


[1] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal, 25ª edição, Editora Gen/Atlas, 2021, p. 75.

[2] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 27ª edição, Editora SaraivaJur, 2020, p. 163.

[3] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal, 25ª edição, Editora Gen/Atlas, 2021, p. 74.

[4] “O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria e por prazo razoável, investigação de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso país, os Advogados (Lei 8.906/94, art. 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no estado Democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição”.

[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal, 18ª edição, Editora Gen/Forense, 2021, p. 188.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal, 18ª edição, Editora Gen/Forense, 2021 p. 191

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