Limite Penal

Não há tutela da inocência sem plena revisão criminal

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6 de agosto de 2021, 9h45

A questão da suficiência probatória merece ser alvo de atenção sob diversas perspectivas e nas mais variadas fases processuais desde o recebimento da denúncia e a concessão de medidas cautelares, até o momento da condenação. Além disso, é preciso enfatizar a importância da prova na revisão criminal, isto é, após o trânsito em julgado da sentença condenatória penal.

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Legenda

O alcance não obtido, até o momento, pelo estudo da prova em âmbito revisional e, mais especificamente, do standard probatório aplicável é reflexo da forma incipiente pela qual a própria revisão criminal é historicamente abordada no processo penal brasileiro. Ainda que não se trate de algo deliberado, o fato é que, decorridos 30 anos da promulgação da Constituição, a revisão não ocupa tantas páginas nos manuais quanto outros meios de impugnação, mesmo que seu escopo esteja diretamente relacionado à proteção do inocente e da justiça da decisão.

A revisão criminal é o último instrumento disponível ao cidadão para restituição de seu status de inocência, destinado a corrigir situações de injustiça extrema: as condenações indevidas. Nessa perspectiva, o raciocínio que tem lugar em sede revisional deveria se orientar pelos mesmos parâmetros de suficiência probatória de que se valem os julgadores para a determinação dos fatos na ausência da coisa julgada. Essa seria a única maneira eficaz de reverter uma condenação injusta, enviesada ou epistemologicamente frágil.

Ocorre que o ordenamento jurídico brasileiro ainda carece de uma expressa previsão legal de standard de prova penal, a qual consolidaria "a escolha por um sistema racional para legitimação e limitação do poder punitivo estatal" [1]. Por isso, indagar sobre um standard probatório para a revisão criminal implica questionar quais valores e políticas estão envolvidos em se tratando da determinação dos fatos no sistema brasileiro em cujo contexto se verifica elevado número de condenações [2] e no qual não se dispõe de critério objetivo predeterminado de suficiência probatória para a desconstituição da presunção de inocência.

Como princípio informador do processo penal, a presunção de inocência determina a preferência por um maior risco de erros que consistam em absolvições injustas do que em condenações indevidas [3]. No entanto, a garantia em si nada diz sobre qual o grau de suficiência probatória necessário para a sua desconstituição. É nesse sentido que se pode dizer que sua efetividade concreta depende de mecanismos processuais capazes de lhe garantir operatividade. E mais: a tutela constitucional da inocência tem seu núcleo ameaçado ante a ausência de previsão de standards probatórios que imponham um rigor especialmente mais elevado para a condenação.

Em vista disso, na medida em que a revisão criminal é um mecanismo voltado para a desconstituição da coisa julgada nos casos de condenações tidas como injustas, e considerando que um sistema democrático pressupõe, para a condenação criminal, um grau mais elevado de suficiência probatória, a pretensão revisional, uma vez admitida, deve ser analisada de forma a responder às seguintes perguntas: A condenação atende a este standard mais elevado? O status de inocência do réu foi respeitado na ação e na sentença condenatórias?

Na apreciação da revisão criminal, portanto, a garantia fundamental à presunção de inocência incide como regra de juízo, "seja emprestando critério axiológico de interpretação legal ('favor rei'), seja, ainda, como forma de dirimir dúvida fática (in dubio pro reo)" [4]. Afinal, se a reanálise da prova implicar dúvida sobre o atendimento do standard, a desconstituição da condenação é medida que se impõe [5]

Na imersão empírica para traçar um debate sobre as revisões criminais no Brasil, alguns dos fatores que surgem com significativa influência no julgamento são a jurisprudência restritiva ao reexame fático-probatório e as súmulas dos tribunais. Nesse sentido, no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, independentemente da necessidade do procedimento de justificação criminal, vigora o Enunciado nº 67 [6], o qual visivelmente viola a presunção de inocência enquanto regra de juízo na apreciação do pedido revisional: "Na revisão criminal a dúvida não beneficia o peticionário".

Em análise efetuada sobre os julgamentos de ações revisionais proferidos ao longo de um ano, por três tribunais da federação (TJ-MG, TRF-1 e STJ), verificou-se, quantitativamente: a predominância do resultado de improcedência das revisões (percentual 80%, devidamente explorado em estudo realizado pelos autores sobre o tema), além de escassas referências ao standard probatório exigido nas ações revisionais.

Após a leitura dos acórdãos constatou-se, nas poucas decisões que trataram de maneira mais apurada do tema probatório, a preponderância de um standard elevado em detrimento do requerente, de forma diametralmente oposta ao que determina a tutela da inocência. Desse modo, a análise qualitativa confirma a lógica consagrada na Súmula 67 do TJ-MG, seja por sua efetiva incidência na fundamentação das decisões daquele tribunal, seja no âmbito do TRF da 1ª Região e, em certa medida, no próprio Superior Tribunal de Justiça.

A ideia fica mais clara a partir da análise do seguinte trecho de decisão do TJMG, em sede revisional:

"(…) Para que os novos elementos tenham a força para desconstituir a decisão condenatória transitada em julgado é mister que sejam conclusivos, demonstrando cabalmente a inocência do condenado, não bastando aqueles que apenas debilitem a prova ou causem dúvidas no espírito do julgador, havendo, na realidade, uma inversão do ônus da prova. Se o peticionário, através de seu advogado, não fez isso, não demonstrando de forma incontestável que é inocente e que a sua condenação foi um erro judiciário, induzido por falsas declarações da vítima e testemunhas, sua condenação não tem como ser rescindida em sede revisional" [6].

Noutro acórdão, proferido pelo mesmo tribunal, extrai-se do voto vencedor da Revisão Criminal 1.0000.16.086679-4/000 [8], que a improcedência é fundada na ausência de "certeza quanto à alegada inocência”, pois os elementos probatórios “quando muito, lançam nada mais do que alguma dúvida quanto à autoria, mas não certeza da injustiça da condenação". Ao final, afirma-se, textualmente, que: "Diversamente do que foi sustentado na exordial, a dúvida não favorece a defesa em sede de revisão criminal, oportunidade em que prevalece o princípio in dubio pro societate".

No TRF da 1ª Região, chama a atenção o julgamento da RvCr 0069340-80.2011.4.01.0000 [9], que rejeita o pleito revisional pela inexistência de "qualquer elemento forte o suficiente para caracterizar uma das hipóteses previstas nos inícios I, II e III, do art. 621 do CPP".

No tocante ao STJ, foram observadas situações pontuais em que os elementos de prova da inocência aportados à ação revisional foram subestimados diante do contexto probatório, o que pode revelar uma tendência à rejeição das teses fáticas rivais àquela versão condenatória acobertada pela coisa julgada. Nas Revisões Criminais nº 731/RJ [10], 2.150/AC [11] e 4.565/DF [12], as apreciações feitas pelo Superior Tribunal de Justiça demonstraram que, ainda se houvesse o reconhecimento da alegação autoral, a comprovação observada pelo acórdão condenatório permanece sustentada por outros elementos de prova, notadamente a prova pericial, aceita sem questionamentos ou aprofundamentos, como se fosse a "expressão da verdade" [13].

A tendência dos tribunais a raramente julgarem procedentes as ações revisionais é objeto de estudo pela psicologia cognitiva, sendo atribuída ao chamado efeito de reiteração: pesquisas demonstram que a confiança na veracidade de uma assertiva aumenta naturalmente se esta assertiva é repetida [14]. Como observam Findley e Scott, esse efeito é, por sua vez, ligado a vieses retrospectivos e de resultados (hindsight e outcome bias), que são distorções criadas pela memória no processo de reconstrução de um evento, sobretudo quando já diante da ciência de seu resultado (no caso, a condenação). Os autores atentam, ainda, para uma tendência dos tribunais a considerarem inofensivos os erros detectados na decisão, o que é justificado por uma combinação de distorções cognitivas que se reiteram até o momento da condenação. Existe, portanto, uma predisposição a considerar a condenação inevitável, bem como a reputá-la uma boa decisão, apesar de equívocos procedimentais ou até constitucionais [15].

Trata-se de um raciocínio judiciário problemático que parece estar relacionado, também entre nós, ao grande número de acórdãos de improcedência à revisão criminal. Raciocínios nesse sentido estabelecem, erroneamente, que a procedência revisional se justifica somente quando há demonstração categórica de inocência do apenado, o que contraria a própria lógica da formação do juízo penal afinal, não apenas a prova de inocência acarreta absolvição, mas também a insuficiência de prova da hipótese acusatória. Enfim, esta maneira de apreciar o pleito revisional esvazia seu escopo e ofende a norma de juízo decorrente da garantia fundamental à presunção de inocência, a qual se refere:

"(…) Ao exame da noção de “suficiência” do conjunto probatório acostado aos autos criminais dos quais emergiu a decisão condenatória definitiva impugnada. Assim, p. ex., todas as vezes em que a revisão se fundar na alegação de “prova nova”, deverá o Tribunal ad quem reexaminar se com essa prova o juízo de suficiência anterior, que levou à condenação definitiva, restará mantido. Esse instante cognitivo realizado pelo Tribunal também é manifestação da presunção de inocência como norma de juízo" [16].

Em geral, na avaliação dos acórdãos que analisaram o pleito à desconstituição da condenação criminal, o que se constata é que, para além do aspecto estrutural do sistema de Justiça e das dificuldades de produção de prova existentes para a defesa desde antes da coisa julgada, há uma compreensão equivocada do instituto da revisão criminal no sistema de justiça. O apreço à coisa julgada ou a reticência (in)consciente do significado de sua desconstituição por vezes intensifica sobremaneira o standard de prova imposto ao proponente, o que se materializa na exigência de uma prova categórica e decisiva para a restituição do status de inocência, em um nível que sequer costuma ser esperado do órgão acusatório como condição para a decisão condenatória.

A revisão criminal se situa "numa linha de tensão entre a segurança jurídica instituída pela imutabilidade da coisa julgada e a necessidade de desconstituí-la em nome do valor justiça" [17].  Porém, é certo que a coisa julgada não pode ser mantida em detrimento do status de inocência. E, muito menos, por força de distorções cognitivas que conduzem à manutenção de injustiças epistêmicas [18].

Assim sendo, seja por força das agendas de pesquisa ou pelo compromisso democrático que arduamente alcança o Direito, a atenção às revisões criminais é urgente. Na sociedade civil, iniciativas como o Innocence Project Brasil e os trabalhos desempenhados pelas Defensorias Públicas em muito corroboram a pertinência e a necessária aproximação entre o Direito probatório e a revisão criminal.

Trata-se, principalmente, de frisar que direitos fundamentais do processo penal não se concretizam espontaneamente e, sim, com a consciência de que há, para além dos autos e termos técnicos, a liberdade de alguém sob discussão. Afinal, enquanto for mais fácil condenar alguém do que desconstituir uma condenação errônea, o status da inocência não estará protegido no processo penal brasileiro. 

*Este texto expõe parcialmente uma das conclusões de pesquisa desenvolvida por Vinicius Nabak, sob orientação das coautoras desse trabalho; resume, ainda, o conteúdo parcial de artigo em fase de revisão para publicação.

 


[1] VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Standard probatório para condenação e dúvida razoável no processo penal: análise das possíveis contribuições ao ordenamento brasileiro. Revista GV, São Paulo, v. 16, n. 2, mai./ago. 2020, p. 19.

[2] Em números absolutos, existiam sob tramitação no Judiciário brasileiro cerca de 1,8 milhões de processos em fase de execução penal no ano de 2019, ao passo que no ano anterior o número era de 1,6 milhões desses processos. Cf. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2020: ano-base 2019. Brasília: CNJ, 2020, p. 259; e CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2019: ano-base 2018. Brasília: CNJ, 2019, p. 221.

[3] FERRER BELTRÁN, Jordi. Prueba sin convicción: estándares de prueba y debido proceso. 1ª ed. Madri: Marcial Pons, 2021, p. 147-149.

[4] MORAIS, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. 1ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[5] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 9ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1127.

[6] BRASIL. TJMG. Enunciados de súmula criminal aprovados pelo Grupo de Câmaras Criminais (anteriores à vigência do atual Regimento Interno – Resolução do Tribunal Pleno nº 003/2012). Belo Horizonte, s.d., p. 15.

[7] TJMG – Revisão Criminal 1.0000.15.049792-3/000, Rel. Des. Edison Feital Leite, 3º Grupo de Câmaras Criminais, j. 17/07/2017, publicação da súmula em 18/08/2017.

[8] TJMG – Revisão Criminal 1.0000.16.086679-4/000, Rel. Des. Marcílio Eustáquio Santos, Grupo de Câmaras Criminais, j. 18/09/2017, publicação da súmula em 29/09/2017.

[9] TRF1 – RVCR 0069340-80.2011.4.01.0000, Rel. Des. Fed. Cândido Ribeiro, 2ª Seção, e-DJF1 30/01/2014.

[10] STJ, RvCr 731/RJ, Rel. Min. Jane Silva, 3ª Seção, j. 27/08/2008, DJe 07/04/2009.

[11] STJ, RvCr 2.150/AC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 3ª Seção, j. 25/11/2015, DJe 02/12/2015.

[12] STJ, RvCr 4.565/DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 3ª Seção, j. 24/04/2019, DJe 15/05/2019.

[13] KUNII, Paulo Akira; HERDY, Raquel; BRUNI, Aline Thaís. O que podemos aprender com os erros periciais? Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 20 nov. 2020. Disponível em [https://www.conjur.com.br/2020-nov-20/limite-penal-podemos-aprender-erros-periciais].

[14] FINDLEY, Keith A. SCOTT, Michael S. The multiple dimensions of tunnel vision in criminal cases. Legal Studies Research Paper Series. Paper No. 1023. Wiscosin Law School, June 2006, p. 317;319.

[15] FINDLEY, Keith A. SCOTT, Michael S. op. cit., p. 320 e 321.

[16] MORAIS, Maurício Zanoide de. op. cit, p. 508.

[17] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14ª edição. São Paulo: Saraiva Jur, 2017, p. 1096.

[18] FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power & the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press, 2007.

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