Opinião

O procedimento do reconhecimento pessoal será, enfim, observado?

Autores

  • Eduardo Januário Newton

    é defensor público do estado do Rio de Janeiro e mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

4 de novembro de 2020, 6h35

O presente artigo visa a examinar as razões que explicam, ainda que não de forma exaustiva, o enfraquecimento das normas processuais que disciplinam o reconhecimento pessoal, disciplinado nos artigos 226 a 228 do CPP, e que pode ser realizado tanto na fase do inquérito policial quanto no curso da ação penal.

Após longos anos de interpretação jurisprudencial — sem nenhum rigor epistemológico — de que as regras impostas pelo artigo 226, do CPP traduziam mera recomendação, a comunidade jurídica foi surpreendida com a decisão da 6° Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Habeas Corpus nº 598.886/SC, julgado no último dia 27, de relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, no qual concluiu-se que um decreto condenatório não pode ser lastreado em um reconhecimento fotográfico.

O entendimento acima referido resultou na absolvição de uma pessoa definitivamente condenada pelo crime de roubo. O fato de o remédio heroico ter servido de substitutivo da revisão criminal já chama atenção, mas o caso se torna verdadeiramente paradigmático ao ser publicamente reconhecida a fragilidade do atual estado da arte investigativo no país.

No caso ora comentado, havia uma condenação transitada em julgado pelo crime de roubo, fundada em um reconhecimento fotográfico — o que, diga-se de passagem, sequer tem previsão legal, mas até então era pacificamente admitido pelos tribunais, mesmo sem a observância da ritualística prevista no artigo 226, do CPP. A 6° Turma do STJ afirmou que não se poderia admitir uma condenação embasada em um acervo probatório constituído por uma prova nula e, por conseguinte, restabeleceu o estado de inocência do réu.

Além de reverberar efeitos para o caso concreto, a decisão retromencionada transmitiu uma mensagem à comunidade jurídica, no sentido de que a aplicação de uma sanção criminal ao arrepio do ordenamento jurídico não tem respaldo constitucional.

Esse cenário de ilegalidade no reconhecimento pessoal, que foi repudiado pela 6° Turma do Superior Tribunal de Justiça, pode ser examinado por diversos prismas.

Preliminarmente, faz-se necessário superar um falso dilema, gerido pela equivocada ideia de que o cumprimento da lei impediria uma tramitação célere dos processos penais e, em consequência, contribuiria para a impunidade do sistema penal. Indubitavelmente, a celeridade é tencionada pelo texto constitucional, porém não se trata de um valor absoluto. A razoável duração do processo, que se encontra positivada no artigo 5º, inciso LXXVIII, da CF implica no cumprimento dos prazos processuais e, principalmente, no respeito ao devido processo legal. Ao se debruçar sobre essa questão temporal, Aury Lopes Júnior traz considerações que são simplesmente ignoradas por quem sustenta que a celeridade é atrapalhada pela observância da lei:

"Não podemos sacrificar a necessária maturação, reflexão e tranquilidade do ato de julgar, tão importante na esfera penal. Tampouco acelerar a ponto de atropelar direitos e garantias do acusado. Em última análise, o processo nasce para demorar (racionalmente, é claro) como garantia contra julgamentos imediatos, precipitados e no calor da emoção[1].

A garantia da razoável duração do processo não se destina apenas a assegurar que uma ação penal não se dilate no tempo ad infinitum, seja para o réu — preso ou solto, mas sobre o qual balança mortífera a espada de Dâmocles — , seja para a sociedade, que necessita e almeja ver o conflito dirimido. Na verdade, a razoável duração do processo também se aplica para o não açodamento da marcha processual, com a necessária maturação e a realização dos atos dentro do prazo prescrito, evitando um processo fast food, conforme já criticado por aqui [2], aqui [3] e aqui [4], que mitiga ou mesmo anula as demais garantias, trasmuda o processo em uma linha de montagem fordiana, equipara o advogado ou defensor a um estorvo intolerável e transforma o acusado em um objeto que precisa ser despachado com urgência pelo sedex.

Ademais, a tipicidade procedimental é fruto do princípio da legalidade e, por essa razão, não pode ser considerada um obstáculo. Essa consideração negativa da legalidade não foi ignorada por Luciano de Oliveira:

"Em resumo, continuamos a nos apegar aos privilégios uns grandes, outros miúdos que todos desfrutamos no âmbito de nosso raio de ação e influência. E a própria lei, ressalvadas as proclamações inflamadas na rua, é percebida em nossa cultura, antes de tudo, como um estorvo a ser contornado. Isso é um ponto importante a ser realçado: a percepção da lei como negatividade. Não esta ou aquela lei, eventualmente injusta, mas o princípio mesmo de norma impessoal e válida para todos" [5].

Pontuada a inexistência de qualquer confronto entre a celeridade e o devido processo legal, ingressaremos no segundo prisma do exame da realidade censurada pelo Superior Tribunal de Justiça. Para tanto, é imprescindível superar um ideário, próprio do processo civil sobre as nulidades, equivocadamente importado ao âmbito do processo penal. Fruto de um pensamento que defende a existência de uma teoria geral do processo, o que se verifica na disciplina das nulidades do processo penal é o uso performático do "princípio" do pas de nullité sans grief como forma de revestir um ato de vontade, e não um ato decisório. Dessa forma, são afastadas as nulidades processuais em razão de uma suposta deficiência na demonstração do prejuízo. Ora, no caso decidido pelo STJ, alguém teria dúvida da existência do prejuízo? O Supremo Tribunal Federal, com a MC na ADPF nº 347, não reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário?

A forma como se desenvolve a investigação no Brasil, muitas vezes, atropelando os procedimentos previstos no CPP, foi censurada pelo STJ e enfrenta uma questão interessante, qual seja: o artigo 226, inciso II, do CPP não denota um aconselhamento do legislador. A norma procedimental possuir força cogente. Essa postura decisória não pode se restringir ao dispositivo mencionado. Prazos processuais devem ser irrestritamente cumpridos, sob pena de incidir as devidas sanções. Aliás, se esse raciocínio tivesse sido observado pelo STF, não haveria sido adotada, por maioria, conclusão decisória notoriamente equivocada sobre o descumprimento do prazo nonagesimal previsto no artigo 316 do CPP [6].

Ainda sobre essa rotineira e desenvergonhada superação do procedimento previsto no artigo 226, CPP, para o reconhecimento pessoal, há de se destacar a possibilidade de enfrentar o tema a partir do aporte doutrinário realizado por Alexandre Morais da Rosa. Com base na teoria dos jogos, ainda que tardiamente, o STJ reconheceu que a jogada ilegal não pode ser mais tolerada:

"A teoria das nulidades, articulada pelo senso comum teórico, não consegue entender que o desenrolar do jogo processual prevalece sobre o resultado. Mesmo com uma vitória processual, no fundo, o que há é uma fraude. Daí que se aponta a metáfora do 'doping' como novo significante a ser, quem sabe, aprofundado e empregado na compreensão democrática de devido processo legal substancial, lido conforme a Teoria dos Jogos e 'fair play'. Precisamos superar – e reitero – os juristas fixados no 'complexo de Lance Armstrong', os quais podem até ganhar, não fosse a vitória um engodo" [7].

O terceiro aspecto que impende ressaltar na decisão do STJ, e também na realidade investigativa, é que o tribunal superior reconheceu a complexidade da vida em sociedade e a insuficiência de respostas pautadas exclusivamente no saber jurídico. Esse dado é importantíssimo quando considerado o bacharelismo como marca nacional. O fato de a psicologia, mais especificamente o fenômeno das falsas memórias, ter embasado o voto do relator não pode ser ignorado. Em um momento em que cursos jurídicos ou ensinam a memorizar ou se tornam locais em que professores relatam o desprezo ao ser humano, o STJ frisou que o conhecimento exclusivamente jurídico é, quando muito, suficiente para a realização de graves erros judiciários.

O entendimento jurisprudencial adotado antes do emblemático HC nº 598.886/SC sustentava que as regras previstas no artigo 226 do CPP não passavam de recomendação. Isso significava, em termos práticos, uma autorização para que o reconhecimento, na esfera policial e judicial, fosse realizado ao arrepio da lei.

Na teoria, o ato de reconhecimento compreende dois momentos: a prévia descrição da pessoa a ser reconhecida e a posterior identificação, que deve ser realizada na forma line-up (o acusado deve ser apresentado ao lado de outras pessoas com características físicas semelhantes).

Na prática, todavia, muitas vezes, pula-se a etapa de prévia descrição da pessoa a ser reconhecida, e o ato resume-se à apresentação de uma única pessoa (modalidade show-up), já etiquetada pelas autoridades como suspeita da prática do crime. Outras vezes, a etapa da prévia descrição é substituída pela apresentação de uma fotografia do suspeito pelas autoridades policiais e, ato contínuo, a pessoa, já apresentada na imagem, fotográfica, é submetida ao ato de reconhecimento. E o mais grave: às vezes, o reconhecimento é feito exclusivamente mediante imagem fotográfica na forma show-up. Resultado? O induzimento conduz ao reconhecimento! Todavia, torna-se questionável a legalidade da produção da prova e confiabilidade do seu resultado [8].

As consequências desse procedimento ilegal são bastante danosas, haja vista que a prova testemunhal é considerada a principal prova do processo penal, principalmente nos crimes de competência da Justiça estadual, em que raramente existem perícias ou outros meios probatórios. Destarte, a palavra da vítima/testemunha goza de especial relevância, e se houver reconhecimento do réu, o resultado imperioso é a condenação.

A defesa, há tempos, preconiza a importância de que o ato de reconhecimento de pessoas adote o procedimento legal, mas a jurisprudência insistia em transmudar uma nítida questão de ilicitude para o campo das nulidades, e sob o famigerado mantra da ausência de prejuízo, convalidada os reconhecimentos ilegais.

Ademais, "o estudo da epistemologia, psicologia cognitiva e da neurociência põem em xeque a eficácia e precisão da percepção e da memória humana" [9]. Desta feita, vamos além: mesmo com a observância de todos os procedimentos legais inerentes ao ato de reconhecimento, ainda se corre o risco de incidir em erro judiciário, haja vista que a memória humana é falha, quiçá se não respeitarmos os parâmetros legais mínimos para um reconhecimento seguro. 

Reconhecemos a existência de problemas estruturais no sistema de Justiça que dificultam a adequação do ato de reconhecimento às exigências legais. Todavia, não pode ser o réu ser penalizado pelas falhas do Judiciário. Por óbvio, se o Estado quer condenar alguém, precisa fornecer condições adequadas para o desenvolvimento do devido processo legal. 

Destarte, por todas as reflexões acima lançadas, podemos afirmar que o HC nº 598.886/SC é paradigmático, inclusive porque a parte final do decidido no referido HC possui nítida vocação erga omnes.

De fato, o Superior Tribunal de Justiça alertou à comunidade jurídica que situações como a oriunda do Estado de Santa Catarina não podem mais se repetir; daí, determinou a intimação de diversos órgãos públicos. Não se trata de situação isolada ou extraordinária: o descumprimento do artigo 226, do CPP é uma realidade do cotidiano. Assim como o relator, ministro Rogério Schietti Cruz, realizou um inventário de equívocos realizados pelo STJ em julgados anteriores, é preciso que as instituições públicas realizem um exercício de autocrítica.

O paciente absolvido no Habeas Corpus nº 598.886/SC teve a sorte de, além ter sido defendido com muito esmero e técnica pelo defensor público do Estado de Santa Catarina, Thiago Yukio Guenka Campos, teve seu processo analisado com estrita observância do procedimento que disciplina o reconhecimento pessoal.

Que todos os necessitados possam ter Defensoria Pública ao alcance: é hora de cumprir a Constituição e implementar a instituição em todas as comarcas. Que todos que busquem o Poder Judiciário possam obter justiça: é mais do que a hora de cumprir da lei!

 


[1] LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. Fundamentos da instrumentalidade garantista. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 28.

[5] OLIVEIRA, Luciano. A lei é o que o Senhor Major quiser! Algumas achegas sociológicas ao princípio da legalidade no Brasil. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco & ADEODATO, João Maurício (coordenadores). Princípio da legalidade. Da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 122.

[7] ROSA, Alexandre Morais. Procedimento e nulidades no jogo processual penal. Ação, jurisdição e devido processo legal. Florianópolis: EMais, 2018. p. 207.

[8] DI GESU, Cristina. Prova penal e falsas memórias. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2014, p.155 e ss.

[9] FERNANDES, Lara Teles. Prova testemunhal no processo penal: uma proposta interdisciplinar de valoração. 2 ed. Florianópolis: Emais, 2020, p.170.

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