Opinião

A colaboração premiada após a lei "anticrime"

Autores

  • André Luís Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor de Direito Penal no IDP-Brasília sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

  • Raul Linhares

    é advogado criminalista doutorando e mestre em Direito Público (Unisinos/RS) e especialista em Direito Tributário (Estácio de Sá/RJ).

4 de março de 2020, 6h31

A tão comentada lei "anticrime” (Lei 13.964/2019) trouxe significativas modificações em legislações penais e processuais penais pátrias, algumas delas com repercussões profundas no sistema de Justiça, a exemplo do acordo de não persecução penal e do juiz das garantias (de implementação temporariamente suspensa por decisão do ministro Luiz Fux).

Essa lei, entretanto, incorre em um equívoco básico: objetiva tratar de inúmeras temáticas (tempo máximo de pena e regras de execução, crimes em espécie, juiz das garantias, medidas cautelares, cadeia de custódia, crimes hediondos, acordo de não persecução penal e cível etc.), tropeçando na complexidade de cada um. Em vez de se promover uma reforma individualizada de cada matéria, com debates profundos em cada qual, se constrói uma “colcha de retalhos” e, justamente por isso, algumas reformas necessárias deixaram de ser feitas.

O instituto da colaboração premiada não escapou dessa nova lei e, também nesse ponto, apesar de se promover a regulação de alguns aspectos importantes do instituto, em outros, a lei "anticrime” foi omissa.

1. As principais inovações da lei "anticrime” na colaboração premiada
Em alguns dos seus dispositivos, a lei "anticrime” introduziu na Lei do Crime Organizado (Lei 12.850/2013) uma regulação legal de práticas e entendimentos já consolidados pela jurisprudência e pela doutrina. Exemplo disso é encontrado na inserção do artigo 3º-A, que classifica a colaboração premiada como um negócio jurídico processual, meio de obtenção de prova, a pressupor utilidade e interesse públicos — categorias já disseminadas no estudo da colaboração.

Em relação ao procedimento para a celebração do acordo de colaboração, é salutar a exigência da nova lei de que haja fundamentação pela autoridade pública quando rejeitar a proposta de acordo de colaboração, bem como a expressa vedação à utilização das informações fornecidas pelo proponente quando não celebrado o acordo por iniciativa da autoridade pública[1] (o que já defendemos em obra sobre o tema[2]). Devem igualmente ser comemoradas a previsão da nulidade de cláusula de renúncia ao direito de recurso (especificamente, em relação à impugnação da decisão de homologação[3]) e o mandamento de que o magistrado não interfira diretamente em cláusulas do acordo (constatando a ilicitude de cláusula do acordo, deve devolve-lo às partes para que promovam sua adequação[4]), pontos também já defendidos pela jurisprudência e pela doutrina.

No que se refere às sanções premiais, foram preservados os prêmios já aplicados originariamente. Contudo, passou-se a restringir a aplicação da imunidade processual (“não denúncia”) ao caso de colaboração sobre fato desconhecido previamente pelo Ministério Público[5] — restrição que, sob hipótese alguma, deve importar em revisão de acordos pretéritos, aplicando-se a nova normatividade apenas aos casos futuros.

Outra significativa (e necessária) alteração legislativa que interfere diretamente nas sanções premiais diz respeito àquilo que deve ser examinado pelo magistrado quando da homologação do acordo. Agora, além do que já se exigia (exame de regularidade, legalidade e voluntariedade), exige-se, nos termos da nova lei, o exame da “adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos parágrafos 4º e 5º” do artigo 4º da Lei do Crime Organizado.[6]

Tal exigência não se fazia presente na versão anterior da Lei do Crime Organizado, prevalecendo no Supremo Tribunal Federal o entendimento de que seria legítima a pactuação de sanções premiais extralegais, desde que não fossem mais prejudiciais ao colaborador do que as previstas em lei.[7]

Entendemos que não mais existe espaço para sanções extralegais nos acordos de colaboração premiada. Afinal, o comando legal exige do magistrado, no juízo de homologação, que verifique a adequação dos “benefícios” pactuados com aqueles estabelecidos no rol legal; impondo, na segunda parte do mesmo dispositivo, a nulidade das cláusulas que violem os critérios legais de cumprimento de pena, quando a sanção premial importar em privação da liberdade.

Outra polêmica resolvida pela nova lei se refere à impossibilidade de que seja recebida a denúncia (ou a queixa-crime) com base exclusivamente nas declarações do colaborador,[8] temática que também estava sujeita a entendimentos divergentes em nossa Suprema Corte — parte dos ministros admitiam o recebimento da denúncia fundada exclusivamente nas declarações do colaborador; outra parte, não.

A nova lei igualmente não ignorou o recente pronunciamento do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Agravo Regimental no Habeas Corpus 157.627, oportunidade na qual se afirmou o direito do delatado de apresentar memoriais escritos depois de apresentados os memoriais pelo colaborador. Com a lei "anticrime", se passa a assegurar esse direito de pronunciamento posterior do delatado em relação a todas as fases do processo.[9]

Ainda consideramos dignos de nota os parágrafos 17 e 18, inseridos pela nova lei no artigo 4º da Lei do Crime Organizado, que expressamente disciplinam a possibilidade de que o acordo homologado seja rescindido em caso de omissão dolosa pelo agente colaborador e a exigência de que o colaborador cesse seu envolvimento com a prática criminosa relacionada com o objeto do acordo.[10]

2. As lacunas legais sobre o acordo de colaboração premiada
Apesar de alguns reconhecidos avanços, a lei "anticrime” promoveu uma regulação apenas parcial do instituto da colaboração premiada. Ou seja, algumas das lacunas legais existentes desde o surgimento da colaboração premiada continuam a existir. Entre essas lacunas, podem ser mencionadas:

i. Referência à possibilidade de revisão
A Lei do Crime Organizado, mesmo com a reforma da nova lei, apenas faz tímida referência à possibilidade de rescisão do acordo de colaboração premiada. Entretanto, em caso de descumprimento pelo agente colaborador, sempre que possível for, deve-se conferir preferência à revisão (“recall”) do acordo, geralmente com o redimensionamento das sanções premiais. Desse modo, preserva-se o interesse público no resultado da colaboração, permanecendo o agente a colaborar com a atividade persecutória estatal.

ii. Estabelecimento de critérios para a rescisão/revisão
Ainda deveria a legislação estabelecer critérios dos quais decorra a possibilidade de rescisão e revisão do acordo, bem como qual deve ser o resultado de um segundo descumprimento do acordo já objeto de revisão (espécie de “reincidência”). Atualmente, apenas se encontra referência expressa à possibilidade de rescisão no caso de omissão dolosa e de continuar o colaborador a praticar os atos ilícitos relacionados com a colaboração. Deve-se, por segurança jurídica, aprofundar as hipóteses para tanto.

iii. Procedimento para a rescisão/revisão do acordo
O acordo de colaboração premiada é de prestação futura e, em certos casos, indefinida em sua totalidade (não há como, de antemão, se estabelecer todo o conteúdo a ser produzido, o que se vai delimitar com precisão no decorrer da instrução). Diante disso, é preciso que se compreenda que nem todo fato desaprovado pela autoridade celebrante deve importar em rescisão ou mesmo em revisão do acordo. Deve-se demonstrar a má-fé do colaborador, o dolo na conduta incompatível com a postura de colaboração. Para isso, é indispensável a instrução processual, garantindo-se a ampla defesa e o contraditório.

Ainda hoje não se dispõe de balizas legais para se avaliar a (in)existência de descumprimento do acordo pelo colaborador, a maior ou menor gravidade do descumprimento e se tal descumprimento deve importar em rescisão do acordo ou em sua revisão. Essa temática é objeto de exame pioneiro pelo ministro Edson Fachin, no Inquérito 4.483, ainda pendente de decisão.

iv. Reforma da normativa sobre retratação
A Lei do Crime Organizado, em seu artigo 4º, parágrafo 6º, estabelece que “as partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.” Ou seja, entende-se que ambas as partes podem se retratar e que as provas produzidas até então apenas não poderão ser utilizadas contra o colaborador.

Entretanto, é inconcebível que possa o Ministério Público ou a polícia se retratar da proposta de acordo e, ainda assim, utilizar as provas fornecidas pelo colaborador contra terceiros delatados (como parece estabelecer o dispositivo legal). A lei "anticrime" parece ter se atentado para isso, expressamente proibindo a utilização das informações e provas fornecidas pelo colaborador se o acordo não for celebrado por iniciativa da autoridade pública.[11] Entretanto, não se revogou o parágrafo 6º do artigo 4º — o que entendemos ser necessário.

Mais do que isso, entendemos que, mesmo em caso de retratação pelo agente colaborador, não se deveria admitir a utilização das provas por ele fornecidas contra terceiros. Até a assinatura do acordo (ou seja, durante a fase de meras tratativas), todas as informações e os documentos fornecidos pelo colaborador o são exclusivamente para fins de negociação (cada parte deve convencer a outra da utilidade do acordo). Se o colaborador fornece informações e documentos de boa-fé, mas, ao final, não se convence da utilidade da celebração do acordo, não pode a atividade de negociação exercer efeitos incriminatórios contra terceiros. É por meio do acordo (não da negociação) que a autoridade adquire legitimamente o material probatório. Além disso, se a retratação por parte do Ministério Público é plenamente possível e não deve produzir qualquer efeito, da mesma forma deve se entender a retratação do colaborador.

3. Conclusivamente
Admite-se que algumas lacunas referentes ao acordo de colaboração premiada foram preenchidas pela lei "anticrime”. Entretanto, não se deve ignorar que outras lacunas ainda permanecem.

A falta de normatividade a disciplinar de maneira completa o acordo de colaboração premiada é prejudicial ao sistema de Justiça, à sociedade e à própria higidez do instituto da colaboração, pois permite a celebração indiscriminada de acordos, com cláusulas oriundas exclusivamente da criatividade da autoridade celebrante, a dar origem a processos contra agentes delatados sem o necessário substrato probatório, além daquilo mencionado pelo colaborador — o que se viu de forma muito nítida na operação "lava-jato". Ao final, é a própria função simbólica do Direito Penal (simbólica não no sentido de seu uso político, mas de transmissão da mensagem de proteção de bens jurídicos) que é prejudicada.

Com a lei "anticrime", o legislador brasileiro perdeu a chance de promover uma profunda reforma no instituto da colaboração premiada, o que se espera que venha a ocorrer o quanto antes.

[1] "Art. 3º-B, § 1º A proposta de acordo de colaboração premiada poderá ser sumariamente indeferida, com a devida justificativa, cientificando-se o interessado. (…) § 6º Na hipótese de não ser celebrado o acordo por iniciativa do celebrante, esse não poderá se valer de nenhuma das informações ou provas apresentadas pelo colaborador, de boa-fé, para qualquer outra finalidade".

[2] CALLEGARI, André Luís; LINHARES, Raul Marques. Colaboração Premiada: lições práticas e teóricas. De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019.

[3] "Art. 4º, § 7º-B. São nulas de pleno direito as previsões de renúncia ao direito de impugnar a decisão homologatória".

[4] "Art. 4º, § 8º O juiz poderá recusar a homologação da proposta que não atender aos requisitos legais, devolvendo-a às partes para as adequações necessárias".

[5] "Art. 4º, § 4º Nas mesmas hipóteses do caput deste artigo, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se a proposta de acordo de colaboração referir-se a infração de cuja existência não tenha prévio conhecimento e o colaborador:

I – não for o líder da organização criminosa;

II – for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo.

§ 4º-A. Considera-se existente o conhecimento prévio da infração quando o Ministério Público ou a autoridade policial competente tenha instaurado inquérito ou procedimento investigatório para apuração dos fatos apresentados pelo colaborador".

[6] "Artigo 4º, § 7º Realizado o acordo na forma do § 6º deste artigo, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: (…) II – adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§ 4º e 5º deste artigo, sendo nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do art. 33 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo § 5º deste artigo;"

[7] É pertinente a referência à divergência manifestada pelo ministro Gilmar Mendes, ao defender a necessidade de respeito ao rol legal de sanções premiais, mesmo que o resultado não seja favorável ao investigado/acusado: “[…] o princípio da legalidade também é importante in malam partem. Em nosso sistema, a ação penal pública é obrigatória e indisponível. O Ministério Público não pode escolher quem vai acusar, ou desistir de ações em andamento. As hipóteses de perdão e de redução da pena são legalmente previstas. O juiz não pode absolver ou relevar penas de forma discricionária.” (STF, Pet 7.074 QO, relator: ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 29 de junho de 2017, acórdão eletrônico DJe-085 divulgado em 2 de maio de 2018 e publicado em 3 de maio de 2018).

[8] "Art. 4º, § 16. Nenhuma das seguintes medidas será decretada ou proferida com fundamento apenas nas declarações do colaborador:

I – medidas cautelares reais ou pessoais;

II – recebimento de denúncia ou queixa-crime;

III – sentença condenatória."

[9] "Art. 4º, § 10-A Em todas as fases do processo, deve-se garantir ao réu delatado a oportunidade de manifestar-se após o decurso do prazo concedido ao réu que o delatou".

[10] "Art. 4º, § 17. O acordo homologado poderá ser rescindido em caso de omissão dolosa sobre os fatos objeto da colaboração.

§ 18. O acordo de colaboração premiada pressupõe que o colaborador cesse o envolvimento em conduta ilícita relacionada ao objeto da colaboração, sob pena de rescisão".

[11] "Art. 3-B, § 6º Na hipótese de não ser celebrado o acordo por iniciativa do celebrante, esse não poderá se valer de nenhuma das informações ou provas apresentadas pelo colaborador, de boa-fé, para qualquer outra finalidade".

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