Olhar econômico

Como ficam as relações de trabalho diante das MPs 927 e 936 e ADIs 6.342 e 6.363

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

28 de maio de 2020, 8h19

Spacca
O início de 2020 foi marcado por notícias de erupção na China de doença causada por uma nova espécie de vírus, a Covid-19, que se irradiou para a Europa e para as Américas [1]. A OMS declarou, em 30/01, Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional; e, em 11/03, pandemia. Agora em finais de maio, segundo essa mesma organização, os Estados Unidos da América ostentam o maior número de infectados (1 525 186) e mortos (91 527); enquanto que o Brasil, o segundo maior (291 579 de infectados e 18 859 mortos) [2].

No Brasil, as reações governamentais federais foram as seguintes: (i) Lei 13.979, de 06/02/2020, sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da Covid-19; e (ii) Decreto Legislativo 06 de 20/03 do mesmo ano, que declarou a ocorrência do estado de calamidade pública.

No início do último decêndio de março, shoppings centers, bares etc. passaram a suspender suas atividades, motivando preocupação com as relações de trabalho. Em 22/03/2020, o Governo do Estado de São Paulo decretou quarentena, nos termos do Decreto 64.881, que paralisou vários setores da economia, tais como, comércio em geral, bares, restaurantes e hotéis.

Pela Medida Provisória 927, de 22/03/2020, o Presidente da República adotou oito medidas trabalhistas de enfrentamento da pandemia: teletrabalho, antecipação de férias individuais, concessão de férias coletivas, aproveitamento e antecipação de feriados, banco de horas, suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho, direcionamento do trabalhador para qualificação e diferimento do recolhimento do FGTS. No dia seguinte, por força da MP 928, foi revogado o artigo 18 da MP anterior, que possibilitava suspensão tout court dos contratos de trabalho independentemente de pagamento de benefício ou auxílio ao empregado. A grande expectativa de empregados, empregadores, sindicatos e sociedade em geral, somente foi dissipada com a publicação, em 01/04/2020, da MP 936, que contemplou a possibilidade de redução dos salários e jornadas ou suspensão dos contratos de trabalho, desde que houvesse pagamento de benefício emergencial pelo Governo e ajuda compensatória mensal pelo empregador.

Novo sobressalto representou a concessão de medida liminar monocrática pelo STF na ADI 6.363, no sentido de que os “acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária de contrato de trabalho […] deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração, para que este, querendo, deflagre a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes.” Certamente os empregadores, por insegurança, sentir-se-iam tolhidos em adotar o mecanismo previsto na MP 936 que aliviaria a problemática. Em boa hora, em 17/04/2020, o STF reunido em sessão plenária, em cognição sumária, manteve inalterados os artigos da MP 936. Pode-se dizer que, formalmente, essa MP observou os estritos limites do artigo 62 da Constituição Federal, uma vez que a urgência e a relevância são indiscutíveis. Ademais a apreciação pelo STF dá segurança jurídica. Entretanto, diversos aspectos das MPs 927 e 936 merecem reflexão aprofundada, o que será feito, deste ponto em diante.

Como é consabido as MPs podem ser rejeitadas ou simplesmente perder sua eficácia, caso não convertidas em lei no prazo máximo de 120 dias (descontados os períodos de recesso do Congresso). Caso isso ocorra, o Congresso Nacional deverá, nos 60 dias seguintes à revogação ou perda de eficácia, aprovar Decreto Legislativo determinando como ficarão as relações jurídicas decorrentes das MP e, em caso de inércia, ficarão automaticamente preservadas essas relações jurídicas, ex vi do art. 62, §3º. e 11, da Constituição Federal. Isso ocorrerá com relação às MPs em questão, por terem sido adequadamente adotadas.

A decisão liminar monocrática acerca da necessidade de manifestação sindical foi superada pelo entendimento majoritário dos integrantes do STF, que face à excepcionalidade do momento se torna justificável a adoção de acordos individuais para implementação das alternativas contidas, em especial, na MP 936, apesar do detrimento ao princípio constitucional da irredutibilidade salarial, cuja exceção, via de regra, somente pode ser efetivada por meio de convenções ou acordos coletivos de trabalho com a presença do sindicato. No entanto, na implementação das medidas oriundas das MPs 927 e 936, é imprescindível a rigorosa observância da forma (acordo individual escrito e sinalagmático), dos prazos (comunicação em 10 dias aos sindicatos e Ministério da Economia) e não existência de defeitos no negócio jurídico (coação, simulação, dolo e outros). Todo cuidado é pouco na implementação das medidas citadas, pois há possibilidade de ocorrência de judicialização de casos decorrentes da aplicação das MPs sob exame, apesar do risco de imposição do ônus sucumbencial, conforme a Lei 13.467/2017 (Reforma Trabalhista). Não é aconselhável promover rescisão dos contratos de trabalho com base nos arts. 501 e 486 da CLT, ou seja, com fundamento na força maior ou no factum principis (fato do príncipe), que, respectivamente, permitiriam a redução das verbas rescisórias devidas e o pagamento de parte delas pelo Estado. Apesar de os artigos recém citados contemplarem tal possibilidade em determinadas circunstâncias, há a interpretação de que os governos estaduais e municipais apenas tenham repassado medidas de saúde pública indicadas pela OMS.

Segue-se análise pontual de questões problemáticas das MPs:

1.Teletrabalho: Pode ser adotado por ato do empregador, que comunicará ao empregado com 48 horas de antecedência. O fornecimento de equipamentos para realização dessa modalidade de trabalho deve ser feita contratualmente (art. 75-C da CLT e MP 927,art. 4º, §3º); sendo recomendado evitar a criação de novas vantagens. Consoante o art. 62, III, da CLT e o art. 4º, §1º, da MP 927 não há controle de jornada em regime de teletrabalho, não fazendo o empregado jus a horas extras. Não sendo essa regra absoluta, caso o extrapolar da jornada contratual for aferível por sistemas tecnológicos, poderá materializar-se o dever de pagar horas extras, adicionais e reflexos.

2. Antecipação de férias individuais e concessão de férias coletivas: Os valores das férias e do terço constitucional ficam diferidos para o quinto dia útil subsequente ao início das férias e ao dia 20 de dezembro, respectivamente. Há de se ter em mente que a antecipação de períodos futuros poderá ocasionar desdobramentos indesejáveis no contrato de trabalho. Em caso de rescisão do contrato, antes do período aquisitivo das férias antecipadas, não será possível o desconto do período nas verbas da rescisão, ficando o risco da antecipação por conta exclusiva do empregador. Prosseguindo o contrato por muito tempo, há de se considerar ademais que a antecipação das férias e longos períodos sem descanso poderá contribuir para aumentar acidentes do trabalho e doença profissional; além de queda de produtividade.

3. Antecipação de feriados: Unilateralmente, o empregador pode antecipar feriados não religiosos; e, com anuência do empregado, os feriados religiosos. Tendo em vista que algumas unidades da Federação e Municípios anteciparam os feriados de Corpus Christi e Consciência Negra, há de se cuidar que caso tais feriados já tiverem sido antecipados, que não ocorra duplo descanso correspondente a um único feriado.

4. Banco de horas: Conforme a MP 927, em caso de interrupção, por ato individual do empregador, é possível fazer constar de banco de horas, os horários da atividade interrompida, para compensação em 18 meses, a se iniciar 6 meses após o final do período de calamidade. Entretanto, 18 meses podem ser insuficientes para o cumprimento de todas as horas. Mesmo que isso não ocorra, sobrelabor diário de 2 horas, por longo período, pode acarretar patologias e/ou incrementar risco de acidentes. Por outro lado, embora possível o desconto de horas negativas, caso no entretempo ocorra rescisão do contrato de trabalho, lembre-se que tal assunto não é pacífico no Judiciário trabalhista.

5. Suspensão das exigências administrativas em segurança e saúde do trabalho: A realização de exames médicos, exceto o demissional, permanecerá suspensa. Na impossibilidade de se realizar o exame demissional, valerá o último, desde que feito nos 180 dias anteriores. Entretanto, a realização do exame demissional é extremamente relevante para comprovar, oportuna e futuramente, que o empregado, ao ser dispensado, não manifestava patologias ocupacionais, nem portava sequelas derivadas de acidente do trabalho.

6. Adiamento do recolhimento do FGTS: O empregador poderá efetuar o recolhimento do FGTS de março, abril e maio, em seis parcelas mensais, a contar de 07/ 2020. Não pode ser olvidado, no entanto, que beneficiário do diferimento, deve prestar as informações sociais até 20/06/2020.

7. Redução de jornada e salário: Flexibilizando-se o preceito constitucional, facultou-se a celebração de acordos individuais, com duração máxima de 90 dias, para redução de jornadas e salários até 25% para todos os empregados e de 50% ou 70% para os empregados que recebem menos que R$ 3.135,00 ou mais que R$ 12.202,12. Para os demais, a redução somente pode ocorrer mediante a celebração de convenção ou acordo coletivo de trabalho. O governo pagará aos que celebrarem a redução, benefício emergencial de preservação de emprego e renda, equivalente ao valor reduzido, mas que terá como base de cálculo a parcela do seguro desemprego, a que o empregado teria direito se dispensado fosse.

8. Suspensão do contrato de trabalho: Com critério similar a redução de jornada e salário, a suspensão pode ser aplicada aos empregados que recebem menos que R$ 3.135,00 ou mais que R$ 12.202,12. Para os demais, a redução somente pode ocorrer mediante a celebração de convenção ou acordo coletivo de trabalho. Deve ser observado que as empresas que tiveram faturamento bruto superior a R$ 4.800.000,00, em 2019, devem pagar ajuda mensal correspondente a 30% da remuneração do empregado, tendo esse pagamento natureza indenizatória (MP 936), pois não haverá contraprestação por parte do empregado, que a receberá, mesmo sem trabalhar. O governo pagará benefício emergencial de 70% ou 100%, dependendo do faturamento da empresa em 2019, tendo também como base de cálculo a parcela do seguro desemprego a que o empregado teria direito.

Caso decorra da pandemia aumento na judicialização de conflitos trabalhistas, como tem sido profetizado, lembre-se, à guisa de conclusão: (i) que a suspensão do art. 29 da MP 927, nos termos da apreciação pelo STF, de 27/05/2020, implica que a contaminação pelo COVID-19 não possa ser considerada doença ocupacional, desde que haja comprovação de fornecimento dos materiais de proteção (máscaras, luvas, álcool em gel, local para assepsia e distanciamento); e que (ii) a aplicação das MPs sob exame exige adequada interpretação de seus comandos legais, além da exata observância de seus requisitos formais.

O presente artigo segue as linhas mestras e a fundamentação da conferência do Professor Renato Villa Custódio, feita no Programa de Conferências on-line do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (CEDES), em 22/05/2020


[1] Ver: Rodas, João Grandino, Mudanças no Direito do Trabalho em decorrência da Covid-19, Revista Eletrônica Conjur, 21/05/2020. https://www.conjur.com.br/2020-mai-21/olhar-economico-mudancas-direito-trabalho-decorrencia-covid-19

[2] Fonte: Relatório 123, https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200522-covid-19-sitrep-123.pdf?sfvrsn=5ad1bc3_4&ua=1

Todos acessados em 26/05/2020

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    é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

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