Ambiente jurídico

Análise dos efeitos da Lei de Liberdade Econômica no licenciamento ambiental

Autor

  • Talden Farias

    é advogado professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

25 de janeiro de 2020, 8h03

Spacca
No dia 20 de setembro de 2019 foi editada a Lei n. 13.874 (Lei da Liberdade Econômica – LLE), a qual instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabeleceu garantias de livre mercado, dentre outras providências, tendo também alterado diversos outros dispositivos legais com o intuito de facilitar o fluxo das atividades econômicas.

Como a LLE também se aplica ao Direito Ambiental, o objetivo deste artigo é analisar as consequências da aplicação da norma sobre o licenciamento ambiental, uma vez que este é considerado o mais importante instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente.

Impossibilidade de exigência de certidão não prevista em lei
O inciso XII do art. 3º da LLE determinou a impossibilidade de exigência de certidão sem previsão expressa em lei, seja por parte da Administração Pública direta ou indireta. É claro que o objetivo é atender ao espírito geral da norma, que pretende simplificar os processos e procedimentos administrativos, bem como coibir exigências dispensáveis ou desnecessárias:

Art. 3º. São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:

(…)

XII – não ser exigida pela administração pública direta ou indireta certidão sem previsão expressa em lei.

Esse dispositivo, no entanto, possui um reflexo imediato sobre o licenciamento ambiental e sobre a atuação dos órgãos ambientais. É que a Resolução n. 237/97 do CONAMA estabeleceu a exigência de apresentação da certidão de uso e ocupação do solo ou certidão de conformidade ou de viabilidade municipal:

Art. 10 – O procedimento de licenciamento ambiental obedecerá às seguintes etapas:

(…)

§ 1º – No procedimento de licenciamento ambiental deverá constar, obrigatoriamente, a certidão da Prefeitura Municipal, declarando que o local e o tipo de empreendimento ou atividade estão em conformidade com a legislação aplicável ao uso e ocupação do solo e, quando for o caso, a autorização para supressão de vegetação e a outorga para o uso da água, emitidas pelos órgãos competentes.

O intuito da exigência era não permitir a desassociação do licenciamento à legislação urbanística e, em especial, ao licenciamento urbanístico, já que essas políticas são consideradas complementares e integrativas. É que essa certidão indica os tipos de atividade que podem ser desenvolvidas no local indicado, estabelecendo dessa forma a adequação da construção, utilização ou parcelamento do solo pretendido em relação ao zoneamento urbanístico da área.

Cumpre esclarecer que para qualquer edificação, utilização, desmembramento ou parcelamento do solo o interessado deverá requerer a devida licença urbanística ao Município, pois esse é o ente responsável pela execução da política de desenvolvimento urbano, consoante determina o art. 182 da Lei Fundamental. Destarte, os alvarás de construção, de demolição e de reforma continuam a ser exigidos, até porque as licenças ambientais nunca fizeram as vezes dessas autorizações.

A diferença agora é que os processos de licenciamento ambiental e urbanístico não terão mais esse tipo de integração, o que deve resultar em maior agilidade no procedimento. Todavia, não se pode deixar de mencionar que existe a possibilidade de se obter uma licença e a outra não, visto que são procedimentos independentes, não sendo possível o empreendedor alegar direito subjetivo a uma pelo simples fato de ter obtido a outra.

Impossibilidade de exigência de medida compensatória ou mitigatória abusiva ou descabida
A LLE dispôs sobre a impossibilidade de exigência de compensações abusivas, descabidas ou desproporcionais em matéria de Direito Ambiental e de Direito Urbanístico. Isso guarda relação direta com o licenciamento ambiental, uma vez que não são raras as vezes em que se exige o cumprimento de obrigações que não guardam qualquer relação com o objeto do processo administrativo em questão:

Art. 3º.:

(…)

XI – não ser exigida medida ou prestação compensatória ou mitigatória abusiva, em sede de estudos de impacto ou outras liberações de atividade econômica no direito urbanístico, entendida como aquela que:

a) (VETADO);

b) requeira medida que já era planejada para execução antes da solicitação pelo particular, sem que a atividade econômica altere a demanda para execução da referida medida;

c) utilize-se do particular para realizar execuções que compensem impactos que existiriam independentemente do empreendimento ou da atividade econômica solicitada;

d) requeira a execução ou prestação de qualquer tipo para áreas ou situação além daquelas diretamente impactadas pela atividade econômica; ou

e) mostre-se sem razoabilidade ou desproporcional, inclusive utilizada como meio de coação ou intimidação; e

Os direcionamentos apontados pela Administração Pública como condição para a concessão da licença ambiental e como condição da validade da licença ambiental concedida podem ser de duas ordens: as primeiras são as medidas mitigadoras e as segundas as medidas compensatórias. As medidas mitigadoras são direcionamentos com o objetivo de diminuir ou de evitar determinado impacto negativo ou de aumentar determinado impacto positivo, ao passo que em relação aos impactos ambientais impossíveis de serem evitados devem ser propostas as medidas compensatórias propriamente ditas.

Esse dispositivo vai ao encontro ao Projeto da Lei Geral de Licenciamento Ambiental, que prevê a possibilidade de interposição de recurso administrativo no período de até 30 (trinta) dias para a revisão das condicionantes ambientais ou do seu prazo de cumprimento, além de estabelecer a impossibilidade de o empreendedor ficar responsável pelo desenvolvimento de políticas públicas[1]. Trata-se de uma medida necessária, pois ajuda a evitar as exigências desproporcionais ou sem base legal, que por vezes não passam de verdadeiros disparates dos órgãos ambientais a que o empreendedor se submete para não comprometer o cronograma de investimentos ou para não perder o timing do negócio.

Com efeito, não faz sentido algum exigir medidas compensatórias não diretamente relacionadas aos impactos ambientais causados pela atividade poluidora, uma vez que é preciso configurar a existência do nexo de causalidade. Logo, é possível exigir condicionantes sociais, desde que os impactos sociais a serem compensados ou mitigados tenham relação direta com a atividade poluidora.

Exigência de estabelecimento de prazo e concessão automática de ato administrativo autorizativo
A LLE dispõe sobre a exigência de estabelecimento de prazo e sobre a concessão automática de ato administrativo autorizativo na hipótese de seu descumprimento:

Art. 3º.

(…)

IX – ter a garantia de que, nas solicitações de atos públicos de liberação da atividade econômica que se sujeitam ao disposto nesta Lei, apresentados todos os elementos necessários à instrução do processo, o particular será cientificado expressa e imediatamente do prazo máximo estipulado para a análise de seu pedido e de que, transcorrido o prazo fixado, o silêncio da autoridade competente importará aprovação tácita para todos os efeitos, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei;

(…)

A respeito disso, o art. 1º dispõe o seguinte:

(…)

§ 5º. O disposto no inciso IX do caput do art. 3º desta Lei não se aplica aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, exceto se:

I – o ato público de liberação da atividade econômica for derivado ou delegado por legislação ordinária federal; ou

II – o ente federativo ou o órgão responsável pelo ato decidir vincular-se ao disposto no inciso IX do caput do art. 3º desta Lei por meio de instrumento válido e próprio.

(…)

Os prazos do licenciamento ambiental já se encontram previstos na Resolução 237/97 do CONAMA:

Art. 14 – O órgão ambiental competente poderá estabelecer prazos de análise diferenciados para cada modalidade de licença (LP, LI e LO), em função das peculiaridades da atividade ou empreendimento, bem como para a formulação de exigências complementares, desde que observado o prazo máximo de 6 (seis) meses a contar do ato de protocolar o requerimento até seu deferimento ou indeferimento, ressalvados os casos em que houver EIA/RIMA e/ou audiência pública, quando o prazo será de até 12 (doze) meses.

O problema é que a Lei Complementar 140/2011 veda a concessão de licença ambiental por decurso de prazo, de maneira que o dispositivo em análise não pode ser aplicado ao caso:

Art. 14. Os órgãos licenciadores devem observar os prazos estabelecidos para tramitação dos processos de licenciamento.

(…)

§ 3o. O decurso dos prazos de licenciamento, sem a emissão da licença ambiental, não implica emissão tácita nem autoriza a prática de ato que dela dependa ou decorra, mas instaura a competência supletiva referida no art. 15.

Entretanto, é possível cogitar a possibilidade de aplicação da exigência de estabelecimento de prazo em relação aos atos administrativos autorizativos concedidos pelos chamados órgãos intervenientes no licenciamento ambiental, como FUNAI, ICMBio e IPHAN.

Possibilidade de isenção de atos públicos de liberação por parte da Administração Pública
A LLE dispõe sobre a possibilidade de isenção de atos públicos de liberação por parte da Administração Pública:

Art. 3º. 

I – desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica;

(…)

Certamente esse é exatamente o ponto de maior destaque da LLE, mormente no que diz respeito ao licenciamento ambiental: a possibilidade de dispensa dos chamados atos públicos de liberação para os empreendimentos considerados de baixo risco. Tais atos estão classificados pela lei da seguinte forma:

Art. 1º.

(…)

§ 6º. Para fins do disposto nesta Lei, consideram-se atos públicos de liberação a licença, a autorização, a concessão, a inscrição, a permissão, o alvará, o cadastro, o credenciamento, o estudo, o plano, o registro e os demais atos exigidos, sob qualquer denominação, por órgão ou entidade da administração pública na aplicação de legislação, como condição para o exercício de atividade econômica, inclusive o início, a continuação e o fim para a instalação, a construção, a operação, a produção, o funcionamento, o uso, o exercício ou a realização, no âmbito público ou privado, de atividade, serviço, estabelecimento, profissão, instalação, operação, produto, equipamento, veículo, edificação e outros.

O art. 9º da lei inseriu o § 5º da Lei 11.598/2007 (a qual estabelece diretrizes e procedimentos para a simplificação e integração do processo de registro e legalização de empresários e de pessoas jurídicas e cria a REDESIM), versando também sobre a hipótese de dispensa de atos administrativos em razão de classificação por ato do Poder Executivo Federal, quando tão somente bastará a autodeclaração de enquadramento[2]. A respeito da regulamentação das atividades de baixo risco, a LLE dispõe o que se segue:

Art. 3º

(…)

§ 1º Para fins do disposto no inciso I do caput deste artigo:

I – ato do Poder Executivo federal disporá sobre a classificação de atividades de baixo risco a ser observada na ausência de legislação estadual, distrital ou municipal específica;

II – na hipótese de ausência de ato do Poder Executivo federal de que trata o inciso I deste parágrafo, será aplicada resolução do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (CGSIM), independentemente da aderência do ente federativo à Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim); e

III – na hipótese de existência de legislação estadual, distrital ou municipal sobre a classificação de atividades de baixo risco, o ente federativo que editar ou tiver editado norma específica encaminhará notificação ao Ministério da Economia sobre a edição de sua norma.

O CGSIM editou a Resolução 51/2019, a qual versa sobre a definição de baixo risco para os fins da LLE. A resolução se propõe a regulamentar o conceito de baixo risco para fins da dispensa de exigência de atos públicos de liberação para operação ou funcionamento de atividade econômica.

Coube a essa norma apontar as atividades isentas de uma série de atos administrativos autorizativos, o que diz respeito aos mais variados setores e procedimentos da gestão pública. O anexo I dessa norma elencou uma série de atividades que seriam tidas como de baixo impacto ambiental em diversos segmentos da Administração Pública, inclusive nas áreas ambiental, sanitária e urbanística.

Ao editar essa normativa o CGSIM age nos termos do inciso II do § 1º do art. 3o da lei, uma vez que ainda não foi baixado ato do Poder Executivo federal sobre o assunto, devendo a regra ser aplicável a qualquer atividade empresarial. Como regra geral a regulamentação do CGSIM parece caminhar bem, já que a maioria das atividades relacionadas não dependem mesmo de licença ambiental.

Acontece que algumas das atividades apontadas no Anexo I da resolução mencionada são consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras, sendo exigível a licença ambiental – seria o caso das seguintes atividades: gravação de música e edição de som, a indústria de calçados e indústria têxtil com área de até 2.500 m2, panificação, produção de espetáculos circenses e similares, reparo e manutenção de veículos (pintura, funilaria etc), serviço de usinagem, tornearia e solda com área de até 2.500 m2, dentre várias outras. A despeito de se tratar de uma exceção, o fato é que pode ocorrer conflito entre as exceções criadas pelo CGSIM e a legislação ambiental.

Em caso de divergência incumbe ao órgão licenciador analisar se aquele empreendimento é ou não efetiva ou potencialmente poluidor, o que deve ser feito dentro de um critério de discricionariedade técnica, pois somente os órgãos ambientais possuem a expertise necessária para discorrer sobre grau de poluição dos empreendimentos. Demais, cuida-se de um instrumento com espeque constitucional e legal, que não pode ser suprimido dessa forma, como já se analisou em artigo anterior, isso sem falar na interferência indevida da norma em um ato próprio do Poder Executivo.

Não se pode esquecer que o inciso III do § 1º do art. 3º da lei considera a hipótese de o Estado, o Distrito Federal ou o Município possuírem entendimento diferente acerca da classificação das atividades de baixo risco. Por sua vez, os princípios da prevenção e da precaução recomendam cautela em relação à dispensa antecipada de licenciamento ambiental, a não ser que seja apresentado um outro instrumento capaz de assegurar a proteção do meio ambiente com igual ou maior qualidade.

É claro que o Estado pode e deve procurar desburocratizar o licenciamento ambiental e estimular a livra iniciativa e a livre concorrência, conquanto o limite seja a manutenção da qualidade do controle ambiental. Sendo assim, a Resolução CGSIM n. 51/2019 não pode passar por cima das normas estaduais, distritais e municipais que classificam um empreendimento como poluidor, a não ser que se consiga provar que não há possibilidade de poluição nesse caso.

* Este trabalho é dedicado a André Luiz Cavalcanti Cabral e Pedro de Menezes Niebuhr, dois grandes estudiosos da Lei de Liberdade Econômica.


[1] Conferir o art. 13 da quarta versão do Projeto de Lei Geral de Licenciamento Ambiental.

[2] Conferir no § 5º do art. 4º da LLE.

Autores

  • é advogado, consultor jurídico e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE. Doutor em Direito da Cidade pela UERJ com estágio de doutoramento sanduíche junto à Universidade de Paris 1 - Pantheón-Sorbonne. Autor do livro "Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos" (7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019) e de outras obras na área.

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