Ambiente Jurídico

MP da Liberdade Econômica, a resolução CGSIM 51/19 e o licenciamento ambiental

Autor

  • Talden Farias

    é advogado professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

3 de agosto de 2019, 14h57

Spacca
Talden Farias [Spacca]O Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (CGSIM) editou a Resolução 51/2019, a qual versa sobre a definição de baixo risco para os fins da Medida Provisória 881/2019, mais conhecida como MP da Liberdade Econômica. A resolução se propõe a definir o conceito de baixo risco para fins da dispensa de exigência de atos públicos de liberação para operação ou funcionamento de atividade econômica, nos moldes do que dispõe o inciso I do artigo 3º da MP citada:

artigo 3º. São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do artigo 170 da Constituição:
I – desenvolver, para sustento próprio ou de sua família, atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de atos públicos de liberação da atividade econômica;
(…)

Coube a essa norma apontar as atividades isentas de uma série de atos administrativos autorizativos, o que diz respeito aos mais variados setores e procedimentos da gestão pública, inclusive na área ambiental, sanitária e urbanística. É nesse sentido o § 5º do artigo 1º da MP:

Para fins do disposto nesta Medida Provisória, consideram-se atos públicos de liberação da atividade econômica a licença, a autorização, a inscrição, o registro, o alvará e os demais atos exigidos, com qualquer denominação, por órgão ou entidade da administração pública na aplicação de legislação, como condição prévia para o exercício de atividade econômica, inclusive o início, a instalação, a operação, a produção, o funcionamento, o uso, o exercício ou a realização, no âmbito público ou privado, de atividade, serviço, estabelecimento, profissão, instalação, operação, produto, equipamento, veículo, edificação e outro.

Ao editar essa normativa o CGSIM age nos termos do inciso II do § 2º do artigo 3º da MP, uma vez que ainda não foi baixado ato do Poder Executivo federal sobre o assunto, devendo a regra ser aplicável a qualquer atividade empresarial [1]. Inclusive, o inciso III desse dispositivo prevê a hipótese de existência de regulamentação estadual, distrital ou municipal sobre o assunto, de maneira que essas entidades poderão cuidar do assunto, apenas devendo dar conhecimento ao Ministério da Economia. O artigo 10 da MP inseriu o § 5º da Lei 11.598/2007 (a qual estabelece diretrizes e procedimentos para a simplificação e integração do processo de registro e legalização de empresários e de pessoas jurídicas e cria a Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – REDESIM), versando também sobre a hipótese de dispensa de atos administrativos em razão de classificação por ato do Poder Executivo Federal, quando tão somente bastará a autodeclaração de enquadramento [2].

É evidente que o objetivo da norma é incentivar as atividades econômicas por meio da desburocratização, o que implicará em menos gasto de dinheiro e de tempo por parte dos empreendedores titulares das atividades consideradas de baixo risco. Daí o estabelecimento de garantias e diretrizes de livre mercado por parte da Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, a qual constitui o núcleo dessa MP [3]. Com efeito, trata-se da tentativa de constituir uma ordem econômica onde a presença do Estado seja a menor possível, tendo por inspiração os valores relacionados à economia liberal [4].

Sendo assim, o ponto de maior destaque da MP é a possibilidade de dispensa atos públicos de liberação para os empreendimentos de baixo risco, matéria que foi regulamentada pela resolução do CGSIM, cujo Anexo I elencou uma vasta gama de atividades consideradas dessa maneira. Acontece que várias dessas atividades estão sujeitas ao licenciamento ambiental, processo administrativo por meio do qual o Poder Público controla as atividades que degradam ou que simplesmente podem degradar, consoante estabelece a Lei 6.938/81 (que dispôs sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e criou o Sistema Nacional do Meio Ambiente):

artigo 10. As atividades econômicas potencial ou efetivamente causadoras de impactos ao meio ambiente, como qualquer outra capaz de interferir nas condições ambientais, estão sujeitas ao controle estatal.
(…)

Com efeito, as atividades potencial ou efetivamente causadoras de impactos ao meio ambiente, como qualquer outra capaz de interferir nas condições ambientais, estão sujeitas a ele. Ocorre que várias das atividades apontadas na relação são consideradas dessa maneira, sendo ou podendo ser exigível a licença ambiental, cabendo citar a gravação de música e edição de som, a indústria de calçados e indústria têxtil com área de até 2.500 m2, a panificação, a produção de espetáculos circenses e similares, o reparo e manutenção de veículos (pintura, funilaria etc), o serviço de usinagem, tornearia e solda com área de até 2.500 m2, dentre inúmeras outras. Eis aí o conflito: pode uma resolução, com base em uma MP, eximir os empreendedores do licenciamento ambiental?

O entendimento pela isenção não parece razoável, ainda que guarde fundamento em lei, o que se dá por diversas razões. Em primeiro lugar, a função de controlar as atividades efetiva ou potencialmente poluidoras está expressamente estabelecida pelo inciso V do §1º do artigo 225 da Constituição Federal, que reza que, para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente equilibrado, incumbe ao Poder Público “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”. Em vista disso, o licenciamento tem base constitucional e não pode ser suprimido por uma lei, a não ser que essa norma apresente um outro instrumento capaz de assegurar a proteção do meio ambiente com igual ou maior qualidade.

Não se pode ignorar que a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação” está prevista no inciso VI do artigo 170 da Lei Fundamental como um princípio da ordem econômica. Isso significa que qualquer estipulação prévia da ausência ou mesmo de diminuição do controle ambiental, além de nociva ao meio ambiente, é inconstitucional, já que desrespeita os dispositivos citados. Não é por outra razão que o Supremo Tribunal Federal já deliberou que a atividade econômica não pode se desenvolver sem consonância com a questão ecológica [5].

O caput do artigo 225 da Carta Magna determina que o Poder Público e a coletividade têm a obrigação de atuar na defesa e na preservação do meio ambiente tendo em vista o direito das gerações presentes e futuras, constituindo-se, portanto, o núcleo do Direito Ambiental brasileiro [6]. Na realidade, cuida-se de um direito fundamental previsto no dispositivo constitucional citado, e reconhecido como tal pela doutrina e pela jurisprudência, estando, assim, revestido do manto da inalienabilidade e da irrenunciabilidade [7].

De mais a mais, não se pode esquecer que esse é considerado pela doutrina como o mais importante instrumento de política ambiental do país [8]. Por fim, resta dizer que a MP não revogou nem alterou o artigo 10 da Lei 6.938/81.

Isso implica dizer que os atos normativos que eximem previamente todo um segmento do econômico de fazer o licenciamento são incompatíveis com a ordem legal e constitucional vigente. Portanto, no que pertine à exclusão da exigência de licença ambiental a MP da Liberdade Econômica e a Resolução CGSIM 51/2019 não podem ser aplicadas, pois disciplinaram matéria fora de sua órbita de competência.

De fato, incumbe apenas ao órgão licenciador analisar se aquela atividade é ou não efetiva ou potencialmente poluidora — estando, por conseguinte, sujeita ou não ao licenciamento ambiental —, o que deve ser feito dentro de um critério de discricionariedade técnica [9]. A impossibilidade de dispensa genérica e antecipada desse instrumento já foi tratada em outro artigo nosso aqui.

É claro que o Estado pode e deve procurar desburocratizar o licenciamento ambiental e estimular a livra iniciativa e a livre concorrência, conquanto o limite seja a manutenção do grau de qualidade do controle ambiental. Isso indica que é possível conceder isenções de taxa, eliminar ou concentrar etapas e otimizar procedimentos, a exemplo de outras medidas analisadas em artigo nosso aqui publicado, mas jamais poderá estabelecer a dispensa tecnicamente imotivada do licenciamento ambiental.


1 artigo 3o. (…) § 2º. Para fins do disposto no inciso I do caput: I – ato do Poder Executivo federal disporá sobre a classificação de atividades de baixo risco a ser observada na ausência de legislação estadual, distrital ou municipal específica; II – na hipótese de ausência de ato do Poder Executivo federal de que trata o inciso I do § 2º, será aplicada resolução do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – CGSIM, independentemente da aderência do ente federativo à Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – Redesim; e III – na hipótese de existência de legislação estadual, distrital ou municipal sobre a classificação de atividades de baixo risco, o ente federativo que editar ou tiver editado norma específica, encaminhará notificação ao Ministério da Economia sobre a edição de sua norma (…).

2 artigo 4o. Os órgãos e entidades que componham a Redesim, no âmbito de suas competências, deverão manter à disposição dos usuários, de forma presencial e pela rede mundial de computadores, informações, orientações e instrumentos que permitam pesquisas prévias às etapas de registro ou inscrição, alteração e baixa de empresários e pessoas jurídicas, de modo a prover ao usuário certeza quanto à documentação exigível e quanto à viabilidade do registro ou inscrição. (…) § 5º. Ato do Poder Executivo federal disporá sobre a classificação de atividades de baixo risco, válida para todos os integrantes da Redesim, observada a Classificação Nacional de Atividade Econômica, hipótese que, a autodeclaração de enquadramento será requerimento suficiente, até que seja apresentada prova em contrário.

3 artigo 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do artigo 170 da Constituição: I – desenvolver, para sustento próprio ou de sua família, atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de atos públicos de liberação da atividade econômica (…).

4 artigo 2º. São princípios que norteiam o disposto nesta Medida Provisória: I – a presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas; II – a presunção de boa-fé do particular; e III – a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas.

5 “(…)A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. – A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a ‘defesa do meio ambiente’ (CF, artigo 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural” (ADI 3540 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 01/09/2005, DJ 03-02-2006 PP-00014 EMENT VOL-02219-03 PP-00528).

6 De acordo com a feliz expressão de Herman Benjamin, o caput do artigo 225 da Constituição Federal é a “mãe de todos os direitos ambientais da Constituição brasileira” (BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiental e ecologização da Constituição brasileira. Direito constitucional ambiental brasileiro. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 130).

7 “(…) – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral” (ADI 3540 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 01/09/2005, DJ 03-02-2006 PP-00014 EMENT VOL-02219-03 PP-00528).

8 OLIVEIRA, Antônio Inagê de Assis. Introdução à legislação ambiental brasileira e licenciamento ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 367 e RIBEIRO, José Cláudio Junqueira. O que é licenciamento ambiental. RIBEIRO, José Cláudio Junqueira (org). Licenciamento ambiental: herói, vilão ou vítima? Belo Horizonte: Arraes, 2015, p. 10.

9 “As limitações à atividade administrativa abrangem, inclusive, a denominada discricionariedade técnica, no âmbito da qual se atribui à Administração o poder de fixar juízos de ordem técnica, mediante o emprego de noções e métodos específicos das diversas ciências ou artes. Tal poder é assegurado a algumas agências reguladoras com eminente função técnica, como as que atuam nas áreas de energia elétrica, telecomunicações e exploração de petróleo. Embora se revele possível o controle de legalidade nesses casos, sempre poderá haver alguma margem eminentemente discricionária, particularmente quando presente o intuito de auxiliar a Administração quanto aos critérios de conveniência e oportunidade, não parecendo razoável o entendimento de que “nunca” haverá espaço para a discricionariedade” (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 84).

Autores

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    é advogado e professor de Direito Ambiental da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), doutor em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Autor do livro "Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos" (7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019).

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