Tributação da mulher na Constituição: o caso do salário-maternidade no STF
22 de janeiro de 2020, 8h03
A tributação da família e a desigualdade de gênero no mercado de trabalho retornam ao centro da agenda de debates públicos.
O relatório sobre desigualdade de gênero, publicado no dia 17/12/19, traz a triste constatação de que o Brasil, de um total de 153 países, ocupa a 92ª posição no ranking global de desigualdade de gênero[2]. Na verdade, não se trata de um fenômeno exclusivo brasileiro. A desigualdade de gênero, embora tenha apresentado uma diminuição no último ano, de acordo com o relatório do WEF, levará 99 anos para acabar.
Os desafios a serem enfrentados no combate à desigualdade de gênero se refletem em diversas áreas, como é o caso da representação política feminina, setor de especial destaque deste último relatório[3], e da desigualdade no mercado de trabalho, no que houve aumento em nível global. No ranking de igualdade salarial entre homens e mulheres, o Brasil ocupa a 130ª posição.
Em números recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, do IBGE, viu-se que mulheres com o primeiro filho veem seus salários reduzidos em aproximadamente 24%. E se for mãe de três ou mais filhos, estas perdas podem chegar a 40% dos rendimentos.[4] Ou seja, quantos mais filhos, menos as mulheres são remuneradas no mercado de trabalho.
A natalidade é condição de existência de qualquer sociedade e, por isso mesmo, o Constituinte reafirmou, em distintas passagens, as garantias de proteção à família.
Nesta proteção constitucional à família, dentre os benefícios previdenciários, tem-se o chamado salário-maternidade, que se presta como modalidade de política pública que tem alcance direto sobre o meio ambiente do trabalho, ao lado de outros, como: a garantia de estabilidade para a gestante desde a confirmação da gravidez até 5 (cinco) meses após o parto; o intervalo para amamentação até que o bebê complete 6 (seis) meses de vida; e a proibição de exercício de atividades insalubres por gestantes e lactantes, recentemente ratificada pelo STF, no julgamento da ADI 5938[5] (arts. 391 a 400 da Consolidação das Leis Trabalhistas).
O salário-maternidade encontra-se previsto na Constituição de 1988 como típico “benefício previdenciário”, conforme os arts. 6º, 7º, incisos XVIII e XX, e 201, inciso II[6].
Com efeito, o salário-maternidade não se aplica apenas à mulher gestante, mas também à mulher ou ao homem no caso de adoção, nos termos da Lei nº 12.873/13, possibilitando o alcance do “benefício” aos indivíduos de famílias formadas por casais homoafetivos, por exemplo.
O mesmo se diga em relação ao caso de falecimento da segurada ou segurado que fizer jus ao recebimento do salário-maternidade, ocasião em que o cônjuge ou companheiro (a) sobrevivente, que tenha a qualidade de segurado, poderá receber o “beneficio” por todo o período ou pelo tempo restante.
Entretanto, é inequívoco que o salário-maternidade, devido a condições biológicas (ao menos até presente o momento, somente as mulheres podem engravidar), é um fator de alta relevância para a redução das desigualdades de gênero e proteção das mulheres no mercado de trabalho, ainda que não logre o êxito em mantê-las no emprego após o período de licença.[7] Em vários países, atualmente, as mulheres são remuneradas para ter filhos.
No passado, o salário-maternidade era de inteira responsabilidade do empregador, que se via obrigado a arcar com a integralidade da remuneração da empregada durante todo seu período de afastamento. Obviamente, isso gerava uma distorção de gênero no mercado de trabalho, pois, do ponto de vista do empregador, a contratação de mulheres se tornava demasiado onerosa em comparação à contratação de homens.
A Convenção nº 103 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 18 de junho de 1965 e promulgada pelo Decreto n° 58.820, de 14 de julho de 1966, passou a prever, em seu art. 4°, item 8, que, “Em hipótese alguma, deve o empregador ser tido como pessoalmente responsável pelo custo das prestações devidas às mulheres que ele emprega”.
Em vista disso, no item 4, do art. 4º, a Convenção prevê que as prestações devem ser concedidas por meio de um sistema de seguro social ou fundo público. Assim, o legislador brasileiro retirou o ônus do empregador em relação ao custeio da remuneração da mulher durante o período de afastamento em função de licença-maternidade.
Desde então, o custeio do salário-maternidade nos 120 (cento e vinte) dias de afastamento passou a ficar a cargo da previdência social, e não do empregador. Apenas a forma de pagamento será feita por intermédio do empregador.
Provado o pagamento, abre-se para o empregador o direito de compensação, conforme determina o art. 72, da Lei n° 8.213/91, com as alterações previstas pela Lei nº 10.710/03.[8] Excluem-se do regime de compensação apenas os empregadores microempreendedores individuais (MEI´s), porquanto nestes casos o salário-maternidade é pago pela previdência social, na forma do §3º, do art. 72, da Lei n° 8.213/91.[9]
No caso em exame indaga-se se, no conteúdo da expressão “folha de salários”, prevista no art. 195, inciso I, “a”, da CF, nele se insere o salário-maternidade. Esta é, pois, toda a discussão que se coloca à apreciação do STF no julgamento do RE nº 576.967, cuja votação iniciou-se em 06/11/19.
A questão constitucional tem origem no fato de o art. 18, inciso I, “g”, da Lei nº 8.213/91 incluir o salário-maternidade entre as prestações devidas pelo Regime Geral da Previdência Social (RGPS), ao passo que o art. 28, §2º e §9º, “a”, da Lei nº 8.212/91 determina que o salário-maternidade, ao contrário de outros “benefícios” previdenciários, integra o salário-de-contribuição, para fins de incidência de contribuições previdenciárias, na parcela a cargo do trabalhador.[10]
No que concerne às contribuições previdenciárias do empregador, o art. 22, inciso I, da Lei nº 8.212/91, menciona as “remunerações pagas, creditadas ou devidas a qualquer título, […] destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma”.[11]
No processo, debate-se se a contribuição previdenciária deve ser recolhida durante o período de pagamento do salário-maternidade, como base de cálculo da contribuição previdenciária sobre folha de salários, a cargo do empregador. Para o recorrente, o valor não possuiria natureza remuneratória, porquanto a empregada resta fora das atividades.
Ora, em relação à base de incidência para as contribuições para custeio da seguridade social a cargo do empregador, tem-se previsão expressa no art. 195, inciso I, “a”, da CF, como folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, de forma que somente o que se enquadre neste conceito poderá compor a materialidade de incidência da contribuição previdenciária.
A interpretação da extensão do conceito de “folha de salários” ao “salário-maternidade” deve acompanhar o exame de coerência com o modelo de seguridade social adotado pelo Constituinte de 1988. Daí que somente numa interpretação conforme a Constituição pode ser empregado o disposto no art. 22, inciso I, da Lei nº 8.212/91.
A partir da interpretação dos dispositivos do art. 201, caput e § 11 (os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e consequente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei) e do art. 195, inciso I, “a”, da CF, o STF fixou, como repercussão geral, no julgamento do RE nº 565.160, que só devem compor a base de cálculo da contribuição previdenciária, a cargo do empregador, aquelas parcelas pagas com habitualidade (Tema 20: “A contribuição social a cargo do empregador incide sobre ganhos habituais do empregado, quer anteriores ou posteriores à Emenda Constitucional nº 20/1998”).[12] E, como se sabe, a lei não faz qualquer ressalva ao conceito de ganho habitual.
Como bem ressaltou o Relator do RE nº 576.967, Ministro Luís Roberto Barroso, na sessão de julgamento de 06/11/19, por não se tratar de contraprestação pelo trabalho ou de retribuição paga diretamente pelo empregador ao empregado em razão do contrato de trabalho, o salário-maternidade não se adequa ao conceito de folha de salários e, consequentemente, não compõe a base de cálculo da contribuição social a cargo do empregador, prevista no art. 195, inciso I, “a”, da CF.
Quanto à habitualidade, o Relator esclareceu o que se sugere óbvio a muitos: não há que se falar em recebimento do salário-maternidade habitualmente, porquanto há limitações biológicas para que a mulher engravide como “habitualidade”. Tem razão.
Após o voto do Ministro Relator acolhendo a tese do recorrente, no sentido de reconhecer que o salário-maternidade não se amolda à materialidade de incidência prevista art. 195, inciso I, “a”, da CF, no que foi acompanhado pelos Ministros Luiz Edson Fachin, Rosa Weber e Cármen Lúcia, e da divergência dos Ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, pediu vista dos autos o Ministro Marco Aurélio. A votação, portanto, está em 4 votos a 3 pela não incidência de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade. Agora, a sessão de 05/02/20 iniciará com o voto-vista do Ministro Marco Aurélio e a tomada de votos dos demais Ministros.
Como anotou o Ministro Marco Aurélio, quando do pedido de vista efetuado na sessão plenária de 06/11/19: “É possível conceber-se contribuição social a cargo do empregador se ele não satisfaz a parcela geradora dessa mesma contribuição social? Já que o ônus é da previdência? O sistema não fecha…”
Estamos convencidos de que uma Constituição que considera a família como a base da sociedade (art. 226), e traz garantias de proteção à maternidade, de licença à gestante e proteção do mercado de trabalho da mulher (art. 6º e 7º), de se ver, atribui verdadeira garantia de imunidade tributária ao benefício do salário-maternidade.
Quando o art. 195 da CF determina que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, autoriza o custeio coletivo de direitos sociais garantidos, cujo interesse extrapola a esfera de determinados grupos, alcançando toda a sociedade. Contudo, não pode incorrer em excesso, discriminação ou quebra de isonomia.
Apenas para que se tenha ideia do potencial discriminatório, ao se argumentar que o recebimento de salário-maternidade integra o cálculo do “benefício”, a ser considerado no cálculo da aposentadoria da trabalhadora, deveria ser objeto de incidência da contribuição previdenciária, isto findaria por privilegiar mulheres sem filhos sobre aquelas com filhos, pois a cada um destes a mulher teria que trabalhar mais seis meses, para atingir a quantidade de salários-de-contribuição.
Pelo princípio da solidariedade aplicado às contribuições previdenciárias, o custeio por toda a sociedade representa o interesse coletivo. Nenhum outro benefício recebeu do Constituinte sucessivas reafirmações quanto o salário-maternidade. Daí não ser possível argumentar que o Constituinte não admita o seu pagamento com o afastamento da beneficiária ou beneficiário, nos casos de adoções ou de ausência. Ora, mesmo a segurada desempregada que mantenha vínculo com a previdência social deve ter direito ao “benefício”, nos termos dos arts. 15, 71-B, III, e 73, da Lei nº 8.213/91.
A solidariedade social sustenta o modelo de seguridade criado pelo Constituinte de 1988, de modo a permitir contribuições sem contrapartida por uma questão de lógica jurídica, há que sustentar igualmente o salário-maternidade imune a contribuições previdenciárias, por falta de “habitualidade”, contando-se para os fins de aposentadoria o tempo de fruição da licença-maternidade da gestante.
Destaque-se que a mesma solidariedade social que embasa a contribuição previdenciária dos inativos serviu de justificativa recente para que o Supremo Tribunal Federal infirmasse o direito à desaposentação com o correspondente recálculo do benefício, por parte dos aposentados que permanecem no mercado de trabalho[13], a evidenciar não só que (i) o mesmo raciocínio pode ser reproduzido no presente caso, como também que (ii) há recursos no sistema provenientes de recolhimentos sem contrapartida.
O salário-maternidade não pode ser considerado como um “benefício” previdenciário concedido à mulher como se fosse um “privilégio”. Cuida-se de um direito social garantido pelo dever estatal de proteção à família, o que só vem a reforçar o interesse legítimo de custeio por parte de toda sociedade. Por isso, o salário-maternidade considera-se verdadeira política pública de proteção à família, como corroboram as alterações trazidas ao instituto pela Lei nº 12.873/13. Não devemos esquecer que a assistência social tem por objetivo a proteção à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice (art. 203, inciso I, da CF); ao que o salário-maternidade é, antes de tudo, uma forma de proteção social da criança, individualmente, e da família, na sua totalidade.
[1] Ver: https://www.conjur.com.br/2019-dez-18/toffoli-pauta-grandes-temas-stf-semestre-2020
[2] Disponível em: http://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2020.pdf
[3] “This year’s index highlights areas where policy-makers need to focus greater attention. At the federal level, greater political representation – and in some nations, any representation at all – for women is a pressing need.”
[4] Ver: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?edicao=26413&t=conceitos-e-metodos
[5] Tribunal Pleno, Relator Ministro Alexandre de Moraes, DJ de 28/11/19.
[6] “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XVIII – licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; […]
XX – proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
II – proteção à maternidade, especialmente à gestante;”
[7] Cf. o estudo de Cecília Machado e Valdemar Neto, intitulado “The Labor Market Consequences of Maternity Leave Policies: Evidence from Brazil”, realizado no âmbito da Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV EPGE). Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/17859
[8] “Art. 72 (…)
§1º Cabe à empresa pagar o salário-maternidade devido à respectiva empregada gestante, efetivando-se a compensação, observado o disposto no art. 248 da Constituição Federal, quando do recolhimento das contribuições incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço.”
[9] “Art. 72 § 3º O salário-maternidade devido à trabalhadora avulsa e à empregada do microempreendedor individual de que trata o art. 18-A da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, será pago diretamente pela Previdência Social.”
[10] “Art. 28. Entende-se por salário-de-contribuição:
§ 2º O salário-maternidade é considerado salário-de-contribuição. (…)
§ 9º Não integram o salário-de-contribuição para os fins desta Lei, exclusivamente: (…)
a) os benefícios da previdência social, nos termos e limites legais, salvo o salário-maternidade;”
[11] “Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de: I – vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa.”
[12] STF, Tribunal Pleno, Relator Ministro Marco Aurélio, DJ de 23/08/17.
[13] STF, Tribunal Pleno, RE nº 661.256, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Relator p/ acórdão Min. Dias Toffoli, DJ de 28/09/17.
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