Prescrição: Quem é o guardião da lei ordinária? STJ ou STF?
13 de fevereiro de 2020, 8h00
Discutirei hoje um assunto novo. O Supremo Tribunal Federal decidiu no dia 5 de fevereiro que
“Nos termos do inciso IV do artigo 117 do Código Penal, o acórdão condenatório sempre interrompe a prescrição, inclusive quando confirmatório da sentença de primeiro grau, seja mantendo, reduzindo ou aumentando a pena anteriormente imposta."
Já há sete votos a favor da tese. Foram dissidentes os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.
O ministro Dias Toffoli pediu vista e o decano estava ausente. Aqui pretendo — doutrinariamente — mostrar que os votos majoritários desbordam do conceito de jurisdição constitucional. Não vou discutir o mérito. Apenas adianto, acompanhado da melhor doutrina, que o STF não fez a melhor interpretação do inciso IV do artigo 117 do CP. Afinal, a boa tradição do direito já significou o conceito de “acórdão condenatório”.
O que interessa, mesmo, é a seguinte questão: pode o STF definir "enunciado de tese" em julgamento de Habeas Corpus em que não há nenhuma matéria constitucional em discussão? [1]
O Supremo Tribunal tem competência constitucional para se manifestar sobre a legislação ordinária nos casos de Recurso Extraordinário sobre validade da lei local contestada em face de lei federal. No caso específico do HC — e este é o ponto — o STF tem, é claro, competência para julgar o writ, uma vez que julga habeas corpus que tem como coator o Superior Tribunal de Justiça.
Contudo — e aqui começa o problema — uma coisa é julgar o habeas corpus. Já outra é criar tese em um julgamento como esse. Quero mostrar que o STF não pode criar uma tese que viola competências constitucionais (de uniformização de jurisprudência federal).
Em 2014, o STJ decidiu que os condenados na Ação Penal 470, o processo do mensalão, presos em regime semiaberto não precisariam cumprir 1/6 da pena para terem direito a trabalhar fora da prisão. O que fez o Supremo? Seguiu o que o STJ decidira. Eu falei (ver aqui), à época, que o STF simplesmente fez — corretamente — o que deveria: seguiu a jurisprudência do STJ (ver também André Karam Trindade, que escreveu sobre isso). Não havendo questão constitucional, STF deve seguir o que disse o STJ. Isso causa estranheza, certo? Vejamos.
No caso da prescrição, no modo como foi discutida, não havia matéria constitucional envolvida. Mas, então, por que o STF alterou o sentido de lei ordinária? Sim, sei que havia, em jogo, o direito de ir e vir (liberdade), ou duração razoável do processo. Correto. Em HC, sempre há. Porém, lembro que no caso do regime semiaberto, de 2014, igualmente estava em jogo a liberdade e o direito ao trabalho. E nem por isso o STF alterou o entendimento do STJ.
Pelo nosso sistema constitucional, quem diz o sentido da lei ordinária é o STJ. Se a decisão do STJ ferir a Constituição, o STF entra em campo. No caso da prescrição, o STF deveria dizer se havia coação ou não. A 6ª Turma do STJ errara? Ou errara, antes, a 1ª Turma do STF que entendera que o acórdão condenatório sempre interrompe a prescrição? Quem primeiro alterou o entendimento sobre a matéria foi a 1ª Turma do STF, que alterou entendimento do STJ, porém sem invocar matéria constitucional. Portanto, quem errou na sequência foi o STJ, ao seguir entendimento que alterou sua própria posição — dele, STJ — por causa do que disse a 1ª Turma do STF (o STJ renunciou a sua competência institucional). O assunto, no STF, face às discrepâncias, foi ao Plenário.
Traduzindo, o que de fato ocorreu foi que o STF deu nova interpretação a uma matéria infraconstitucional consolidada no STJ. E transformou uma simples questão ordinária em matéria constitucional, sem que tivesse uma “questão constitucional”.
Eis a questão. A vingar a tese proposta no julgamento, tudo pode ser questionado no STF. Sim, o habeas corpus é remédio constitucional. Mas isso não transforma qualquer matéria por ele ventilada em uma “questão constitucional”. Ou estou equivocado?
O artigo 117, IV, cujo sentido, até essa recente virada de entendimento, tinha o apoio da doutrina (quem dá bola para doutrina?) e do próprio STJ e do STF (até o dia em que alterou o entendimento sobre a matéria), não tem mácula constitucional. Aliás, nem o STF disse que tinha matéria constitucional (sobre “matéria constitucional”, embora tratasse de matéria de recursos e não de HC, vale a pena ler o acórdão AI 162.245 AgR do STF).
É verdade que sempre haverá fumaça constitucional nos atos normativos infraconstitucionais. Porém, disso não se extrai que se pode abrir as portas da Corte Constitucional para que se interprete legislação de cunho infraconstitucional, nos casos em que a questão constitucional — senão inexistente — é, no máximo, reflexa. Aliás, o STF não admite considerar questões em que a constitucionalidade aparece como meramente reflexa (tema 660). É disso que se trata, aqui. Não estou vinculado ao mérito sobre prescrição. Discuto jurisdição. E questiono a panjurisdição constitucional.
Por isso, temos de ir mais fundo. Há um precedente (ao que vi, nunca seguido pelo próprio STF), cujo voto condutor é da lavra do ministro Gilmar Mendes (RE 638.115-CE), no qual o tribunal considerou que o conceito de “questão constitucional” deveria ser ampliado. Na ocasião, discutiu-se se a interpretação de lei (sobre vantagens de “quintos” incorporados) poderia ser matéria de RE. Era questão de interpretação de lei ou matéria constitucional? O procurador-geral da República deu parecer dizendo que matéria infraconstitucional não enseja RE.
Mas o STF deu provimento ao RE com fundamento de que a interpretação do STJ ao dispositivo de lei ordinária estava equivocada. Em resumo, para o STF, ao interpretar erroneamente uma lei ordinária, o STJ, naquele caso, contrariou a ordem constitucional.
O voto do ministro Gilmar, acompanhado pela maioria (vencidos Luiz Fux, Cármen Lúcia e Celso de Mello) é muito bem fundamentado na doutrina alemã: “Uma decisão judicial que, sem fundamento legal, afete situação individual, revela-se igualmente contrária à ordem constitucional, pelo menos ao direito subsidiário da liberdade de ação (Auffanggrundrecht) (Schlaich, Klaus. Das Bundesverfassungsgericht, Munique, 1985, p. 108). Se se admite, como expressamente estabelecido na Constituição, que os direitos fundamentais vinculam todos os poderes e que a decisão judicial deve observar a Constituição e a lei, não é difícil compreender que a decisão judicial que se revele desprovida de base legal afronta algum direito individual específico, pelo menos o princípio da legalidade”. (grifei) Correto. Nada a acrescentar.
Todavia, o próprio ministro traz, com Schlaich, a — também correta — ressalva: “Se se admitisse que toda decisão contrária ao direito ordinário é uma decisão inconstitucional, ter-se-ia de acolher, igualmente, todo e qualquer recurso constitucional interposto contra decisão judicial ilegal”.
Prestemos, pois, muita atenção a essa ressalva acima!
Sigo. Diz o ministro Gilmar, “enquanto essa orientação prevalece em relação a leis inconstitucionais, não se adota o mesmo entendimento no que concerne às decisões judiciais. Por essas razões, procura o tribunal formular um critério que limita a impugnação das decisões judiciais mediante recurso constitucional”.
Observemos o que disse o ministro: “exige-se um critério”!
Segue Gilmar: “Sua admissibilidade dependeria, fundamentalmente, da demonstração de que, na interpretação e aplicação do direito, o juiz desconsiderou por completo ou essencialmente a influência dos direitos fundamentais, que a decisão se revela grosseira e manifestamente arbitrária na interpretação e aplicação do direito ordinário ou, ainda, que se ultrapassaram os limites da construção jurisprudencial (Cf., sobre o assunto, Schlaich, op.cit). Não raras vezes, observa a Corte Constitucional que determinada decisão judicial afigura-se insustentável, porque assente numa interpretação objetivamente arbitrária da norma legal [BverfGE 64, 389 (394)]”.
Aqui, o critério é claro: “a interpretação da lei infra deve ser objetivamente arbitrária”.
Assim, complementa o ministro, “a ideia de que a não observância do direito ordinário pode configurar uma afronta ao próprio direito constitucional tem aplicação também entre nós”.
Correto. Nenhum tribunal, incluso o STJ, pode fazer interpretação arbitrária.
Por quê? O ministro Gilmar explica: “a decisão ou ato sem fundamento legal ou contrário ao direito ordinário viola, dessa forma, o princípio da legalidade. No caso, a decisão judicial que determina a incorporação dos quintos carece de fundamento legal e, portanto, viola o princípio da legalidade”. E foi o que decidiu o STF naquele dia.
Observemos. Levando em conta os fundamentos determinantes, na verdade, teríamos que o STF decidiu que “todas as vezes em que uma decisão do STJ for afrontosa à legalidade, exsurge disso uma questão constitucional, representada pela afronta ao princípio da legalidade”. Aplicou, pois, o critério da exigência da interpretação objetivamente arbitrária (que, se eu fosse definir, diria ser o contrário do que se chamou, na famosa súmula 400, de “interpretação razoável”, conforme explico em Verdade e Consenso).
Recordemos, de novo, a exigência do critério. Não é qualquer decisão do STJ ou de outro tribunal, em matéria ordinária, que dá ensejo à intervenção do STF. Veja-se que o tribunal alemão fala em interpretação objetivamente arbitrária (objektiv willkürlicher Auslegung der angewenderen Norm)”. Isto ocorre quando for ferido o princípio da legalidade inscrito na Constituição. Todavia — e esse é o ponto — parece claro que isso não se aplica a uma interpretação que a doutrina majoritariamente diz que é correta em relação à prescrição.
A posição do STF, no caso da prescrição — e em qualquer outra similar — somente seria aceitável de tivesse estabelecido, antes, qual era a questão constitucional em jogo. Como fez, aliás, o ministro Gilmar no precedente do caso dos “quintos”. Mutatis, mutandis, no caso dos “quintos”, o STF considerou, nos fundamentos determinantes, que a interpretação do STJ era objetivamente equivocada.
Na realidade, definir se o STF pode fixar tese vinculante em julgamento de HC sem uma questão constitucional em jogo perpassa diversos problemas teóricos além dos já apontados neste texto, em especial, se toda decisão do plenário do STF deve ser dotada de efeito vinculante, inclusive em HC.
Essa discussão foi significativa na ocasião da Rcl 4.335; contudo, houve promulgação da Súmula Vinculante 26 eliminando a divergência. E ali havia nítida matéria constitucional. Ocorre que no julgamento do HC 127.900 (interrogatório é o último ato da instrução penal na Justiça militar), o STF fixou tese vinculante no bojo do próprio HC. Examinando o tema, Georges Abboud, de forma percuciente, alertou para os riscos desse posicionamento, uma vez que, além de fixar sua tese, o STF estabeleceu que seu entendimento seria vinculante devendo ser estendido ao processo eleitoral e a todos os procedimentos penais especiais.
Porém, naquele caso, do ponto de vista constitucional, havia claramente presente a questão da garantia da ampla defesa e do devido processo legal. Todavia, pergunta Abboud, o STF irá conhecer reclamações de decisões contrárias ao que ele estabeleceu no HC 127.900? Não tenho notícias de casos que tais. Mais: todos os HCs decididos pelo Plenário do STF terão o mesmo efeito vinculante? Esse efeito vinculante se estende a todos os julgados do Plenário que apreciarem algum writ constitucional? [2]
Aqui um ponto: ao menos no HC 127.900 o habeas corpus garantiu direitos; no caso da prescrição, restringiu direitos, o que nos obriga a exigir do STF respostas às indagações de Abboud [3] para buscarmos o mínimo de integridade jurídica.
Por quê? Porque tese significa efeito vinculante. Só que isso pode fragilizar ou anular a sistemática da Súmula Vinculante. Ou seja, em vez de observar todos os requisitos da SV, o STF criaria teses vinculantes sem os requisitos daquela.[4]
Despiciendo lembrar que o problema, neste caso, é agravado porque o habeas serve para buscar liberdade e direitos. E não o contrário. Além do mais, prescrição é matéria que sempre é limite ao poder estatal. Uma decisão jurisprudencial não pode contrariar toda a principiologia que sustenta a legislação (diga-se, amparada pela Constituição Federal). Pode uma interpretação extensiva de lei ordinária feita pelo STF fazer retroceder uma garantia fundamental-individual?
Estas reflexões buscam um debate sobre o papel dos tribunais. Um debate prático-doutrinário. E também sobre o papel do habeas corpus, antes que o transformemos em instrumento de contra garantia. Não esqueçamos que foi em sede de HC que foi retirada a garantia da presunção da inocência em 2016.
Claro que o STF pode fazer interpretação de lei ordinária. O ministro Gilmar demonstrou bem isso. Mas será que isso se aplica em qualquer caso, especialmente em sede de HC, sem que haja interpretação arbitrária do STJ? E nos casos de mandado de segurança? Sem uma “questão constitucional”?
Claramente há condicionantes institucionais que limitam o exercício da atividade interpretativa, inclusive, a do STF. Pois se ao STF for permitido se pronunciar por último também sobre a lei federal (sempre), estaríamos então como que diante de uma espécie de poder de dicta. Sempre que provocado, o Soberano pode reivindicar o seu poder de dicta para afirmar sua interpretação soberana da lei?
Se tudo é constitucional, nada mais é. Porque isso abre uma caixa de pandora que fragiliza a função autêntica da Suprema Corte: e a de guardiã da Constituição.
Se me perguntarem, e voltarei a isso em outro texto, parto sempre de uma perspectiva das garantias. Por isso, no mérito, fico com Lewandowski e Gilmar.
Numa palavra convidativa para o debate: só quando existir uma interpretação objetivamente arbitrária do STJ é que o STF pode redefinir ou fixar interpretação (tese) em caso de HC. No mais, tem de apenas julgar o writ a partir do sentido fixado na jurisprudência do STJ.
Ou seja, somente no caso de uma arbitrariedade interpretativa é que o STF poderá transformá-la em uma questão constitucional por violação do artigo que trata da legalidade na Constituição Federal. São as condicionantes institucionais.
Lembrete final: Antes que alguém diga “— mas, no caso, o STF apenas confirmou uma decisão do STJ que negara o HC”, lembro que o STJ negou o HC porque a 1ª Turma do STF construiu essa nova tese à qual a 6ª Turma do STJ aderiu e da qual, em consequência, a Defensoria interpôs HC. Simples assim.
Em termos sistêmicos, vingando a tese do STF, a partir de agora, qualquer matéria decidida pelo STJ poderá ser alterada pelo STF, mesmo que não contenha uma “questão constitucional”. E todos correrão ao STF. O STJ será rito de passagem. A ver se vale o risco.
[1] Agradeço ao parceiro Marcio Paixão, brilhante advogado gaúcho, quem me instigou a escrever sobre o assunto.
[2] Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 3.ed., SP: RT, 2019, p. 1002.
[3] Sobre o assunto, Abboud, op.cit, p. 623.
[4] Abboud, op.cit, p. 1105.
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